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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.37 no.59 São Paulo fev. 2015

 

ESPECIAL

 

Geraldo de barros: jogar com o tempo

 

 

Silvana Rea*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

 

 

Se só guardamos lembranças dos momentos tristes ou alegres, enlouquecemos. Felizmente existem os restos.
Geraldo de Barros

 

Nos anos 1996-1998, o artista brasileiro Geraldo de Barros dedica-se à série de fotografias "Sobras", feita com a ajuda de sua assistente após uma sequência de isquemias cerebrais que o levaram a perder a fala e parte dos movimentos. Trata-se não apenas de seu último trabalho fotográfico. Antes, é sua derradeira obra e seu retorno à fotografia após quase quatro décadas dedicadas à pintura, artes gráficas, design de móveis e desenho1.

De fato, ele se dedicara à fotografia no início de sua carreira, em 1946 (entre 1946 e 1947 inicia as Fotoformas). Mas depois da exposição "Fotoformas", em 1950, no Museu de Arte de São Paulo-MASP, não retoma esse campo de pesquisa ao longo dos anos seguintes. Até que ele encontra, guardadas em uma caixa, fotos de passeios e viagens em família feitas por ele nas décadas de 1950 e 1970. Aqui, fiel a seu compromisso experimental, Geraldo inventa uma técnica: recorta os negativos, intervêm sobre eles com tinta e os remonta entre lâminas de vidro, criando diferentes tipos de colagens.

 

 

Em "Sobras", portanto, ele retoma imagens não mais lembradas, fragmentos de sua vida registrados pela câmera em um instante congelado, em um tempo igualmente fragmentado, para efetuar uma intervenção na própria memória – memória afetiva. Como a igualmente foto de família "A mãe no Jardim de Inverno", encontrada por Barthes entre pertences encaixotados, surge a necessidade de remontar o tempo. Geraldo, então, justapõe personagens, recria situações e paisagens – constrói novas possibilidades de leitura.

 

 

No processo de recordar e recortar, ele traça com tinta uma moldura branca ou preta, destaca momentos chamando-os à percepção e simultaneamente cria espaços vazios sem fundo, nos quais os elementos da composição correm o risco de cair, de serem engolidos pelo esquecimento, na iminência de perecer. São fotos suspensas em um tempo igualmente suspenso, atemporal. Na mistura de realidade e ficção, o vínculo exemplar com a questão do tempo e da memória.

Ora, se uma fotografia é um fragmento do real reproduzido, a alteração do negativo para criar uma nova realidade leva a linguagem fotográfica ao seu limite, subvertendo sua vocação inicial. Contraria-se, aqui, a ideia de repetição mecânica do instante que nunca mais poderá ser vivido existencialmente. Pois ao alterar o negativo, Geraldo interfere diretamente na matriz, impedindo novas reproduções do material anterior. E uma vez modificada a referência ao fato vivido no passado, cria-se outro momento, uma vivência a partir da qual ele não faz mais estritamente uma foto, faz forma, faz imagem.

 

 

É fato que entre uma imagem e a realidade estão presentes muitas outras imagens, invisíveis, porém operantes, posto que há em toda imagem algo que a excede. Como sobras que a ultrapassam, mesmo quando são restos esquecidos em uma caixa na memória. O exercício do olhar sempre nos mostra um conjunto de não vividos, de esquecidos à espera de seu momento de aparição, que uma nova leitura revela.

Por outro lado, quando nos encontramos diante de qualquer obra visual, estamos frente a uma montagem de tempos heterogêneos. Porque a visualidade coloca-nos na simultaneidade da experiência presente e da memória por ela convocada, onde o presente e o passado reconfiguram-se, continuamente. E mais, devemos também reconhecer que como elemento de permanência, do futuro, ela nos sobreviverá; e que o elemento transitório somos nós.

Ao realizar uma montagem dos negativos fotográficos, Geraldo também compõe uma forma em ritmo visual e, portanto, temporal. Afinal, a montagem é uma forma de manipular o tempo, por ser um processo pelo qual o passado não desaparece, mas se reincorpora, reinterpretado no presente. Isso porque qualquer imagem nos apresenta a história da qual é contemporânea, mas também nos leva de volta a algo anterior, que a própria elaboração da obra havia encoberto, uma memória recalcada da qual ela seria o retorno.

"Sobras" apresenta uma dimensão afetiva e existencial humana que está invisível (ou recalcada) na poética construtiva concretista e na pop art, opções de Geraldo de Barros em sua trajetória artística. Portanto, curioso pensar que essa série se desenvolve em situação de relevantes limites físicos, a poucos anos de seu falecimento.

Ora, sabemos já, desde Freud (1915/1969, p. 327), que "no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade". Essa é uma das inexoráveis questões do homem, espremido entre o desejo de não ter fim e a finitude corporal. A fotografia fixa o tempo, como o "instante decisivo" de Cartier-Bresson, e "embalsama o tempo", como afirma André Bazin. Evidencia o que está morto no "isso foi" de Barthes, para quem a vida e a morte são o paradigma do disparo que separa a pose inicial do resultado final. Geraldo de Barros, ao intervir em negativos antigos, recupera um tempo perdido (ou morto) e o recompõe no presente, criando um novo traço de memória para o futuro. Transforma o passado dando a ele uma forma nova, antes que ele desapareça no esquecimento. E o faz tomando o tempo em suas mãos. Faz, destruindo ao mesmo tempo que constrói, morte e vida. A nova imagem é o vestígio que resta, algo que "sobra" de sua passagem pelo mundo, marcas afetivas de uma vida em família. Testemunho que fica na memória de quem a vê, Geraldo de Barros consegue jogar com o tempo fazendo desse jogo sua obra, eludindo a constatação de que temos um fim. Não seria essa a maior e mais bem-sucedida ficção humana?

 

Referências

Barthes, R. (2008). A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Didi-Huberman, G. (2000). Devant les temps. Paris: Les Éditions de Minuit.         [ Links ]

______. (2011). L' éxperience des images. Bry-sur-Marne: INA Éditions.         [ Links ]

______. (2013). Before the image, before time: the sovereignty of anachronism. In Groom, A. (Org.). Time. Londres: Whitechappel.         [ Links ]

Eisenstein, S. (2002). A forma do filme. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Fernandes Jr., R. (2006). (AS)simetrias. In De Barros, G. Sobras. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

Freud, S. (1969). Reflexões para os tempos de guerra e morte. In E.S.B. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (Vol. XIV). (Trabalho original publicado em 1915).         [ Links ]

Rouille, A. (2009). A fotografia: entre o documento e a arte contemporânea. São Paulo: Senac.         [ Links ]

 

 

* Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, doutora em Psicologia da Arte pela USP.
1 Em vida de intensa atividade criativa e de pesquisa, em 1948 cria o Grupo XV, com Yoshiya Takaoka e Athaide de Barros, de influência expressionista. Em 1952, ele participa da criação do movimento Ruptura, marco inicial da arte concreta no Brasil. De 1954 a 1967, seguindo o ideal de integrar a arte na vida cotidiana, preconizado pela Bauhaus, dedica-se à fábrica de móveis Unilabor, de autogestão operária. Em 1964, ele idealiza sua própria fábrica, a Hobjeto, onde o consumidor adquiria móveis industrializados de acordo com suas próprias necessidades e desejos. Em 1966, juntamente com Wesley Duke Lee e Nelson Leirner, funda o Grupo Rex, marcado pelo humor e pela crítica ao sistema de arte.