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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.37 no.59 São Paulo fev. 2015

 

RESENHAS

 

Interpretações: entre a literatura e a psicanálise

 

 

Renato Tardivo*

Universidade de São Paulo
Centro Universitário São Camilo

Endereço para correspondência

 

 

Passos, C. R., Rosembaum, Y. (Orgs.). Interpretações – crítica literária e psicanálise. Cotia: Ateliê Editorial, 2014. 256 p.

 

Interpretações – crítica literária e psicanálise reúne ensaios sobre o complexo parentesco entre essas duas áreas. Com efeito, as reflexões do livro não incorrem nos dois problemas mais frequentes quando psicanálise e literatura são relacionadas: 1O) a recusa prévia da possibilidade de diálogo, sobretudo por parte dos literatos, que podem ver na psicanálise apenas uma terapêutica ou um fazer normativo; 2O) a aplicação direta de conceitos da psicanálise à literatura, de modo que o analista encontre no texto aquilo que ele próprio escondeu. Ao contrário, abordando diversas perspectivas dessa relação, os ensaios são divididos em duas seções: "O ato interpretativo", que inclui reflexões sobre os dois fazeres, tendo a interpretação como mediadora; e "Faces da interpretação", que apresenta análises cuidadosas de obras literárias. Assinam os textos da primeira parte: Alfredo Bosi, Adélia Bezerra de Meneses, Camille Dumoulié, Caterina Koltai, João Frayze-Pereira e Joel Birman. E, na segunda: Cleusa Rios P. Passos, José Miguel Wisnik, Márcia Marques de Morais, Philippe Willemart, Roberto Zular e Yudith Rosembaum. Não sendo possível falar de todos, a seguir, comentarei alguns desses textos.

Abre o conjunto o ensaio de Alfredo Bosi: "Psicanálise e crítica literária – proximidade e distância". Recorrendo a clássicos da literatura e a importantes pensadores da cultura, Bosi coteja possibilidades e limites implicados na relação entre as duas áreas. Entre os limites, talvez o mais significativo apontado pelo crítico seja o seguinte: "A Psicanálise conhece para curar, é uma ciência com vistas a uma terapêutica; a crítica literária, ao contrário, ao que eu saiba, nunca curou ninguém do vício de escrever, que continua compulsivo e impune" (p. 20).

No ensaio seguinte, Adélia Bezerra de Menezes empreende um mergulho na práxis da interpretação presente nos dois campos e, como se continuasse o texto de Bosi, encaminha a reflexão do primeiro capítulo. Escreve a autora:

No paralelo que vim montando entre Interpretação literária e Interpretação psicanalítica, sempre ressaltando as semelhanças, há que se fazer uma distinção; uma diferença entre a práxis do crítico literário e a do psicanalista. É que, no caso específico da Psicanálise, há uma intenção terapêutica no uso da palavra. [...] Essa eficácia terapêutica, no entanto, no encontro analítico, talvez se deva menos a uma "vontade interpretativa" do que a um movimento de verbalizar, a um nomear, a uma passagem à palavra [...] Assim, nem seria propriamente a interpretação que conta, mas mais propriamente a possibilidade que se oferece da presença de um outro atento, e que – para usarmos os termos de Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas – "ouve com devoção" (pp. 42-43).

Ou seja, dessa perspectiva, vislumbra-se uma psicanálise cujo fim não é a cura pelo conhecimento, mas a vivência de um método que, em seu fazer específico, assemelha-se à literatura.

Em "Uma visita aos sonhos na arte: Grete Stern e Henri Matisse", João Frayze-Pereira propõe, no âmbito da psicanálise implicada, aquela que "respeita a singularidade da obra e constrói interpretação para ela, derivando-a dela, na justa medida dela" (p. 71), duas aproximações: primeiro com uma série de fotomontagens da fotógrafa alemã Grete Stern, depois com uma mostra de obras de Matisse. As interpretações propostas pelo autor são precisas em sua poeticidade, e os sonhos visitados, na arte, comunicam-se com os sonhos, tais quais compreendidos pela psicanálise.

Talvez o ensaio mais denso do livro seja "Escrita e ficção em psicanálise", de Joel Birman. O autor empreende um resgate da história da psicanálise, retoma aspectos importantes do pensamento de Freud, pontua as obras em que as questões aparecem e, em um texto esclarecedor, fundamenta a tese da "presença inequívoca da dimensão ficcional no fundamento do psiquismo" (p. 93). O deslocamento da teoria da sedução para a teoria do fantasma empreendido pela psicanálise, quer dizer, a distinção proposta por Freud entre realidade psíquica e realidade material, traz como decorrência a dimensão ficcional do psiquismo, cuja ordem é sexual, é atravessado pelo desejo e contém os fantasmas – mediadores entre o sujeito e o acontecimento real. Dessa perspectiva, problematizam-se todas as modalidades de registro, não apenas em psicanálise ou literatura, mas na história, que seria, portanto, também ela atravessada pela ficção. E, mais além:

Da mesma forma que a história perderia assim a dimensão estrita das regras do positivismo documental, a biografia seria também permeada pelo registro da ficção. Por isso mesmo, qualquer autobiografia seria necessariamente da ordem da autoficção, na qual é o sujeito ficcional o que estaria sempre em pauta. Seria esta modalidade de sujeito que estaria em cena não apenas na experiência psicanalítica, como também nas narrativas realizadas sobre esta experiência. (p. 111)

A seção dedicada às análises apresenta ensaios que acrescentam sentidos ao leitor que já tomou contato com as obras e funcionam como convite à leitura daquelas que o leitor ainda não conhece. A temática do espelho, cara tanto à literatura quanto à psicanálise, o Unheimlich, o Édipo, enfim, esses e outros temas relevantes comparecem nas interpretações lançadas às obras de, entre outros, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Chico Buarque.

A temática da interpretação atravessa todos os ensaios, tanto os teóricos quanto os analíticos, não apenas enquanto aquilo de que se fala, mas também pelo modo como se fala. Com efeito, não há outra maneira de abordar a interpretação senão interpretando. E, nesse aspecto, a confluência entre crítica literária e psicanálise é mesmo inegável.

 

 

Endereço para correspondência
RENATO TARDIVO
Rua André Ampére, 153, cj. 63. Brooklin Paulista
04562-080 – São Paulo – SP
tel.: 11 9 9687 5222
E-mail: rctardivo@uol.com.br

Recebido em: 10/11/2014
Aceito em: 05/12/2014

 

 

* Escritor e psicanalista. Mestre e doutorando em Psicologia Social da Arte (IP-USP). Professor da Faculdade de Psicologia do Centro Universitário São Camilo, autor dos livros de contos Do avesso (Com-Arte/USP) e Silente (7Letras), e do ensaio Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê Editorial/Fapesp).