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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.60 São Paulo jul./dez. 2015

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

João A. Frayze-Pereira

Editor

 

 

Caro leitor,

Neste ano de 2015, a ide completa quarenta anos. É uma data que expressa a maturidade de uma revista destinada a publicar textos que considerem a aproximação da psicanálise com a cultura, retomando o espírito de Freud que consagrou ensaios não apenas à literatura e às artes, mas ao exame de diversas questões socioculturais. Ao reler os primeiros exemplares da revista, desde o número inaugural de 1975, ano de chumbo para a sociedade brasileira, observamos que a ide já demonstrava feições de criação bem formada, contando com bons trabalhos assinados por alguns dos nossos colegas, que mereceriam ser relidos. Entre eles, há o artigo de Amina Maggi, publicado em 1980, que nos inspirou a definir o tema deste número, segredo. E, no clima de comemoração do aniversário da ide, decidimos fotografá-lo e reapresentá-lo neste numero, tal como foi publicado pela primeira vez. Amina Maggi, falecida precocemente em 1988, membro da nossa Sociedade e professora da USP, de quem tive o privilégio de ser aluno e, posteriormente, participante de seus grupos de estudos e supervisão, analisa a questão das "áreas secretas" no filme de Bernardo Bertolucci - Último tango em Paris. Trata-se de um trabalho que examina a tendência contemporânea a tornar visível a intimidade dos indivíduos cuja exposição, não raro, atinge o limite da obscenidade. No âmbito da sociedade contemporânea, também chamada "sociedade do espetáculo" (Debord), cuja origem remonta à moderna "sociedade disciplinar" (Foucault), não se pode dizer que exista algum detalhe da realidade que não possa ser registrado e exibido. O que foi tematizado por Michelangelo Antonioni no filme Blow up, isto é, o trajeto de um fotógrafo que casualmente se tornou detetive e voyeur, pode-se ver hoje como um fato cultural. Ou seja, a obscenidade pouco a pouco se viu deslocada a uma experiência de controle e manipulação, passando de tema ou conteúdo (o sexo) para o uso de certas técnicas ("técnicas de obscenidade") que têm por função tornar visível tudo. Nessa medida, pode-se dizer que, desde o final do século 18, quando se consolidou o "poder disciplinar", também se instalou um gradual processo de banalização da obscenidade por meio de técnicas que diluem o sentido do obsceno. Em princípio, o indivíduo moderno, disciplinado, torna-se unidimensional, aquele que não possui segredos. Porém, o que significa o segredo? Do ponto de vista etimológico, segundo Arnaud Lévy (1976, p. 118), a palavra segredo ("do latim secretum [...] particípio passado do verbo secerno que significa separar, pôr de lado") articula um complexo conjunto de significados ambivalentes, correspondentes a um momento do desenvolvimento psíquico em que o indivíduo se confronta com sua identidade de sujeito, momento no qual o segredo é um "saber-que-se-esconde-do-outro". Assim, através da etimologia, é possível perceber a multiplicidade de funções do "segredo": se o segredo confere a quem o detém um poder sobre o outro, também é o meio desse poder; pode ser um bem precioso, o mais pessoal e íntimo, assim como a coisa má a esconder, fonte de vergonha e ameaça para a integridade narcísica; pode ser também um meio de proteção contra a suposta agressividade do outro; e, finalmente, pode ser algo desconhecido, pressentido pelo indivíduo, ainda não pensado por ele. Assim, o lugar do segredo é o da desmesura do desejo, dos sonhos impossíveis, das paixões por um objeto e da memória de certas experiências corporais. E, às vezes, quando essa íntimaintimidade é ameaçada, será necessário que o sujeito tenha coragem para afirmá-la; confrontado com situações-limite, para protegê-la, deverá manter silêncio, dissimular ou mentir; ou, ainda, como recurso extremo, poderá ser levado a se exilar nos territórios da psicose (O'dwyer de Macedo, 1999, p.13). Porém, se o segredo possui uma significação nuclear no desenvolvimento do psiquismo, o que é admitido por Freud e por inúmeros psicanalistas atuais, é porque é a condição mesma de possibilidade do pensamento se exercer. Mais do que isso, esclarece Piera Aulagnier (1976), é a condição de se realizar com prazer, prazer que não é dado pelo conteúdo, mas pela própria atividade de pensar. Assim, "prazer de pensar" e "liberdade de pensar em segredo" são sinônimos mentais e condição sem a qual se torna impossível ao sujeito constituir-se, diferenciando-se do outro. Isso significa que perder essa condição implica a perda de si mesmo. Ter segredos, portanto, é um direito do sujeito.

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Na abertura deste número o leitor encontrará a sessão Memória. Nela, registramos as lembranças e reflexões de alguns dos membros da primeira Comissão Editorial da ide - Chaim José Hamer, Deodato Curvo de Azambuja, Myrna Pia Favilli e Luiz Tenório de Oliveira Lima. São depoimentos que nos foram generosamente oferecidos em dois encontros recentes, nos quais ficaram evidentes a emoção e o entusiasmo que acompanharam o processo de criação da revista. Também nessa sessão, está o belo escrito histórico de Amina Maggi - O último tango em Paris: áreas secretas -, que nos apresenta uma análise ainda bastante atual. Em seguida, apresentam-se os artigos elaborados a propósito do tema em pauta - segredo. Os primeiros três trabalhos, também focados em filmes, são assinados por autoras com estilos psicanalíticos distintos na aproximação ao cinema, uma criação cultural contemporânea da psicanálise. E, avançando a reflexão, publicamos um artigo que desenvolve uma crítica sofisticada da cultura da imagem e, inadvertidamente, pelo eixo da ficção e da política, guarda relações com o artigo seguinte, cuja articulação entre fotografia, abjeção e segredo é muito impactante. Ainda nessa vertente, seguem-se trabalhos que consideram a questão do segredo em campos distintos - das artes plásticas à literatura, passando pela música e pela religião - e que estão atentos aos vínculos possíveis com a psicanálise. Finalmente, apresentam-se mais dois trabalhos que realizam, psicanalítica e literariamente, uma reflexão sobre a questão do si mesmo, do prazer e da dor.Além dos artigos que abordaram o tema em pauta, reunidos sob o título Outras pautas seguem as sessões Literárias, criada para alojar a contribuição de colegas que se dedicam a escrever ficção, Artigos, que versa sobre outros temas relacionados à cultura sob a ótica da psicanálise, e Resenhas, dedicada a livros, recentemente publicados, que podem interessar aos psicanalistas.

Nossa crença inicial de que o tema abordado nesse número da ide seria instigante confirmou-se com os artigos aqui publicados. O campo definido por eles é multifacetado e a sua complexidade seguramente abrirá aos leitores diferentes caminhos para uma saborosa reflexão.

 

REFERÊNCIAS

Castoriadis-Aulagnier, P. (1976) Le droit au secret : conditions pour pouvoir penser. Nouvelle Revue de Psychanalyse, 14,141-157.         [ Links ]

Lévy, A. (1976). Évaluation étymologique et sémantique du mot "secret". Nouvelle Revue de Psychanalyse, 14,117-129.         [ Links ]

O'Dwyer de Macedo, H. Do amor ao pensamento. São Paulo: Via Lettera, 1999.         [ Links ]

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