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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.60 São Paulo jul./dez. 2015

 

MEMÓRIA

 

"Último Tango em Paris" - Áreas Secretas

 

 

Amina Maggi

 

 


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Não pretendo querer interpretar Bertolucci, nem crer que os meus achados são os únicos possíveis. Diante de urna obra de arte aberta cada um pode ter suas próprias vivências e observações.

Relato aqui minha visão, absolutamente pessoal, sobre as constantes alusões as áreas secretas de pessoas e de situações humanas neste filme(1). Será então ao redor delas que centrarei minha análise, começando pelo primeiro triângulo amoroso constituído por Jeanne (Maria Schneider), seu namorado cineasta (Jean Pierre Leaud) e o amante Paul (Marlon Brando); passando depois para a segunda situação triangular entre Paul, recentemente viúvo de Rosa que deixará definitivamente a este e ao amante Marcelo (Massimo Girotti), suicidando-se.

É de conhecimento de todos que, apesar desta obra cinematográfica ter sido realizada em 1972, só foi permitida sua entrada no Brasil sete anos depois. Curiosamente o destino do próprio filme foi de ficar ele também em "áreas secretas" para os brasileiros, que não podiam atingi-lo, pelo veto da censura.

Eram as cenas eróticas entre a moça e seu amante a causa das polêmicas a respeito da pornografia ou não da obra. E realmente tudo o que pode acontecer durante um coito, mesmo sendo este "a tergo", e ali descrito do começo ao fim, sem que a câmara se desvie um só instante da dupla, antes, ao longo e depois do orgasmo. O amante a pega inteira no colo; ensaboa seus prósperos seios, seu corpo todo. Pede que ela enfie os dedos em seu anus e assim ela o faz, após ter o cuidado de cortar as unhas, para que a introdução e o movimento rítmico sejam sem entraves. Bertolucci chega ate a gastar vários metros de película para nos gratificar com outra intimidade: a suavidade com a qual ele faz xixi, sentado na privada, e a decisão com que puxa a descarga. Freqüentemente a moça aparece na mais completa nudez, refletida ás vezes no espelho o que dá as varias perspectivas de sua linda anatomia, sem nenhum véu, ate mostrando (escândalo para a época) os pelos pubianos. Seu parceiro, igualmente, parece não se submeter a qualquer censura mostrando abertamente seus desejos e suas satisfações sexuais temperados de perversão, sadismo e analidade. Em cada encontro sempre mais se ampliam os repertórios eroticos, acabando por ser conquistada, pela receita da manteiga, até a última parte do corpo que a jovem queria guardar só para si.

"É um filme que mostra tudo, excessivamente!", comentavam alguns espectadores ao sair da sala de projeção. E realmente em termos físicos a visão é completa. A posse entre os amantes é total, com penetrações mutuas de vários tipos, em entre laçamentos plásticos de braços e de pernas nos quais se torna sempre mais completo, pelos cinco sentidos, o conhecimento recíproco no plano sexual.

Mas... porém... a não ser esta verdade parcial e momentânea, todo o restante fica excluído do contato, nos primeiros encontros. Quem é o parceiro? Que idade tem? De onde vem? Quais seus pensamentos? O que realmente lhe falta? Para onde irá? Estas e muitas outras perguntas ficam sem respostas ou mesmo permanecem sem serem formuladas. Até o nome dos dois parceiros deve ficar desconhecido, para que nada da verdadeira identidade escape, e o anonimato proteja do perigo de ser invadido nos meandros da própria personalidade, ou de entrar nos da outra.

Neste terreno de reserva, incógnitas, pudor íntimo, é que proponho a existência de "áreas secretas" como algo que as pessoas querem preservar dentro de si, mesmo nos momentos de aparente total entrega a outro ser, e a revelia das possíveis tentativas alheias em invadir tais segredos.

Desde a primeira cena percebemos, pela expressão dramática de seu rosto, que Paul está desesperado. Assim o surpreende a moça, casualmente, ao cruzar com ele ainda desconhecido, debaixo de um elevado, sobre o qual correm rápidos vagões de metros. Mas, depois, ele nunca mais mostrará tão transparentemente sua tristeza, quando perto dela, preferindo outras posturas quais: a erótica, a cínica, a indiferente para camuflar suas aflições que explodem em outros momentos, como quando chorará sozinho num canto da sala enquanto ela, ensimesmada, se masturba, ou no dramático monólogo ao lado do cadáver de sua esposa.

Após um segundo encontro, também sem palavras e casual, a porta de um toalete publico onde uma velhota faz rir a platéia tirando, lavando e repondo a dentadura, os dois finalmente se reencontrarão num apartamento.

Mas, chegando a este ponto, antes de analisar o que ocorrerá com a dupla neste local, que ela alugará, e no qual já o encontra escondido (não sabendo bem por que) tendo ele conseguido a chave (não sabemos exatamente como, mas certamente no total desconhecimento da zeladora) eu gostaria de parar um pouco para reunir alguns símbolos que aludem a áreas secretas, mas desta vez colocados e justapostos no ambiente e nas pessoas que rodeiam estas duas personagens.

- No filme há repetitivas tomadas de metrôs em atordoante corrida, levando anonômos que passam rapidamente ao lado da solidão de um homem ignorado (Paul), que os ignora. Isto reproduz o clima de alheamento e solidão da cidade grande, onde o realmente compartilhado e a poluição sonora.

- A chave, secretamente obtida de alguém que nem se apercebe, para entrar secretamente num apartamento secreto, onde ocorrerão fatos secretos.

- A propria zeladora torna-se a representação de quem ignora até aquilo que seria sua especial função conhecer e controlar. Não somente deixa-se tirar a chave sem perceber e sem saber depois onde está; como também quando procurada pela moça para informar sobre o anúncio "aluga-se apartamento" (placa esta que qualquer espectador também pode ler), surpreende-se pois não sabia nada a respeito. E comenta:

"É sempre a mesma coisa: ninguém me diz nada. Eu sou a ultima pessoa a saber". Mais adiante, em outra ocasião ela dirá, referindo-se aos condôminos: "Não conheço ninguém. Entram e saem, não tenho seus endereços. Não conheço essas pessoas, nem sei seus nomes".

- A mulher da dentadura, a meu ver, não está lá só para provocar riso no público. Ela me faz lembrar certas figuras dos quadros de Bosch e de Brueghel que re presentam metaforicamente ditados, provérbios, aforismas até com duplo sentido. Pois, conforme seja interpretada a dentadura como "objeto ruim" (=estar banguela), ou como "objeto bom" (=me permite novamente rir e comer) poderíamos obter dois diferentes conselhos, que tentarei reunir num só: "Feche a boca sobre seus segredos pois, se são falhas, você será ridicularizado; se são valores, não poderão ser compartilhados, sendo que só funcionam dentro de você".

- O apartamento está cheio de símbolos de áreas secretas. Percebemos nele ainda as marcas deixadas pelos antigos moradores que, de certa forma, através delas se tornam presentes, apesar de ausentes. Mas nada saberemos deles, ao longo de todo o filme, nem quem eram, nem por que saíram, nem por que não retiram seus trastes. A um certo momento alguém os procurará pelo telefone, mas não saberemos para que, de quem se trata, e a própria pessoa que ligou ficará sem resposta. Penso que, se para as filmagens, foi es colhido um ambiente deste tipo, e não um local pintado e novo, deve ser por alguma razao, que do meu ponto de vista, e de permitir novas dimensões para as áreas secretas.

Num canto da sala, sugerindo pela plasticidade da forma, a idéia de uma estátua ainda não inaugurada, permanecerá até quase o final um monte de coisas debaixo de um imenso pano branco que suspeitamos ser velhos objetos e movéis dos que se foram. Freqüentemente as cenas entre os dois amantes se desenrolam perto desse majestoso sudário, fantasma das coisas que não ficam trancadas e vivem se apresentando e que representa também o "monte de coisas" que ambos pretendem acobertar um do outro.

Quando finalmente,numa das últimas tomadas ela (ou ele, não recordo) puxara o grande lençol evidenciando que por baixo havia realmente o que suspeitávamos (significativamente isso acontece quando os dois amantes já iniciam a descobrir mutuamente um pouco do próprio passado) haverá outro lugar do apartamento sobre o qual se deslocarão os interrogativos. Este será um "espaço vazio", "oco", um possível "esconderijo" que os dois descobrirão por baixo do carpete. "Talvez contenha jóias, ouro", comentam. Mas em seguida o deixarão sem abrir, parecendo que a busca do bom é abandonada, concluindo: "talvez contenha segredos de família". Esta frase dará início a um novo tema, ainda relacionado com as áreas secretas, mas num outro nível. "Vou lhe falar dos segredos da família, da Sagrada Família, todos bons cidadãos", continua ela. E obriga a moça aflita, enquanto a penetra por trás, a repetir, aos gritos, acusações contra esta instituição que "mente e reprime as crianças" levando-as também a mentir; e com isto "a verdade e assassinada".

Daí, no filme, as áreas secretas estendem-se ao passado mais arcaico, as pessoas que nos precederam (possivelmente sendo ainda significativa a referência as marcas dos que estavam antes: inquilinos=pais) e que ainda atulham, Com seus trastes envelhecidos e acobertados, a nossa vida presente. Em outro momento do filme alguem dirá: "O que fazem os adultos? Inventam gestos e palavras". Neste clima dos segredos antigos, que vem a tona no presente, poderíamos até sentir que o pano branco alude ao lençol que acobertou a intimidade misteriosa da cena primaria.

No contexto das mentiras dos progenitores talvez possa ter um sentido mais amplo a fotográfia da jovem de seios nus que Jeanne encontra, por acaso, no meio das lembranças deixadas pelo pai, no lar que compartilha com a mãe. Essa última cultua literalmente a memória do marido tendo transformado sua moradia num verdadeiro museu de suas recordações, onde já não se vive mais o presente, mas só o passado feito de uniformes militares, de armas e de medalhas. Porém com o achado da foto, começamos a suspeitar que a viúva não de ve ter dito toda a verdade sobre ele. A propria moça pergunta irônica: "e isso o que é ?" Ao que a mãe responde brevemente tratar-se de uma "berbere, que como empregadas não servem".

- A enorme ratazana morta que, quase ao final, a moça descobre horrorizada sobre sua cama no apartamento, alude novamente a coisas escondidas pois onde há um rato certamente deve haver outros andando por aí. Mas, a meu ver, não se trata só disso. Penso que a ratazana possa ser tomada como símbolo das coisas que já "sabemos" de nós e dos outros, mas que não queremos "ver", pois sua visão nos horrorizaria. A jovem, diante do animal, grita que não sa bia haver ratos por ali, que lhe dão nojo, que então não pode ficar, que não aguenta mais, que quer ir embora e corre assustada. Mas ela sabia que havia, pois tinha sido uma das poucas informações que, desde o começo, tinha-lhe fornecido a zeladora não querendo acompanha-la para ver o apartamento a ser alugado "porque havia ratos". Independentemente disso é impossível que durante todo o tempo em que a moça freqüentou o mesmo local, nunca tenha tido a oportunidade de notar algum vestígio desses animais, ou de ouvir seus ruídos ao correr, guinchar e roer, em se tratando de ratazanas tão grandes; ou de ter observado os gatos que vemos lamber os bigodes, satisfeitos, não pelas comidas de prato, que ali não há. Mas quando alguém não quer reconhecer algo, torna-se cego e surdo, ampliando assim as áreas que deseja permaneçam secretas, dentro de si mesmo, e com relação ao mundo externo.

- Os bailarinos do tango, que nem mais seres humanos parecem, mas perfeitos bonecos movidos a corda, servindo-se um do outro unicamente como ponto de apoio gravitacional para piruetas e grotescos movimentos do pescoço, sem nunca se encarar, ignorando-se em todas as dimensões, a não ser como parceiros no ritmo, representam o extremo entrosamento sem mais nenhum "contato". Desligados também do que acontece no ambiente, por mais chocante que seja (enquanto eles dançam Paul chega até a tirar as calças mostrando o traseiro nu) sem emoção nem expressão, aludem simbolicamente a situação na qual tudo se torna área secreta: o outro, o universo, o próprio ser, sobrando somente a atenção obediente e cega a uma regra mecânica, convencional, previamente estabelecida.

O fato de ter sido escolhido o título do filme "O último tango em Paris" sugere o acento que devemos dar a esta trágica situação, ainda relacionada com as áreas secretas, quando estas tomam conta de toda a personalidade, destruindo-a.

- O chiclete, que no desfecho desta obra cinematográfica, o agonizante Paul tira da boca e gruda debaixo do balaustre, antes de morrer, é outro objeto escondido significativo, mas que poderá permanecer sem significado, sem mesmo ser notado, pelos que tentarão reconstruir a posteriori os últimos momentos deste homem, e cuja morte, já sabemos, será viesada pela versão de sua assassina. Provavelmente isso representa as áreas secretas não notadas pelos, outros, e as verdades escondidas da vida, do amor, da morte que nos acabamos conhecendo, mas que somos impossibilitados de denunciar; sendo que só nos, espectadores, sabemos o que ocorreu.

Após ter reunido estes símbolos de áreas secretas no ambiente, tentarei procura-los no dialogo entre os dois amantes. Esta não será tarefa fácil por não contar gora com a trilha sonora e serem as palavras mais arduas de serem relembradas do que as imagens. Todavia, se minha reprodução não for exata e completa em cada termo, ela dará o que captei de sua significação enquanto ouvia.

Durante o primeiro encontro no apartamento a moça tenta conhecer o homem que está lá através de uma série de perguntas ("Quem e você?", "Como entrou","Vai alugá-lo?", etc.), mas ele preferirá permanecer no anonimato, não respondendo a nenhuma delas. Isto não impedirá que os dois, ainda desconhecidos, se possuam num arrebatado coito em pé. Mas, após este, cada um irá para o seu próprio caminho, sem se trocar palavra ou adeus, sem saber onde o outro irá, ou se haverá reencontro.

Ambos, porém, retornarao ao mesmo local e ali ela tentará saber o nome dele, mas este responderá "Não tenho nome. Você não tem nome. Não quero saber nada de você. Aqui não precisamos de nomes. Vamos esquecer todas as pessoas, esquecer tudo". No terceiro encontro, logo que se vêem, começam a se despir em silêncio. Entrelaçam-se. Olham-se nus um de frente para o outro. "Vamos olhar um para o outro". "É otimo não se saber de nada", diz ela, " vou inventar um nome para você". E aqui há um momento inesquecível do filme no qual os dois se autobatizarão com um nome inventado e preverbal. "Tive um monte de nomes, mas prefiro este" diz ele lançando grunhidos. E ela responderá auto-apresentando-se', divertida, soltando alegres trinados.

Em outros momentos, quando ela, esquecida do pacto do mútuo anonimato, estiver iniciando algum dado informativo sobre sua vida, ele cortara a comunicação ao dizer que não quer saber nada de seu passado, ou ficando distraído, ou tocando a gaita que tem a vantagem de impedir a fala de quem toca e de abafar as palavras do interlocutor.

Assim, o desejo inicial dos dois, mas, sobretudo, do amante, parece-me ser de cortar fora todo o passado, todas as pessoas, os relacionamentos pregressos e mesmo atuais, tentando recomeçar ex-novo um contato, até sem mais os nomes recebidos, qual um novo nascimento, juntos, nus. Mas sendo isto impossível, grande parte de ambos devera permanecer em áreas secretas, silenciadas. O que, por outro lado, protege do perigo de mutuas decepções ou da falsa ilusão de pretender conhecer o outro através daquilo que fala. Atitude oposta a esta será a da terceira personagem do triângulo: o namorado da moça, famélico em ter dados sobre ela, sobre suas recordações, querendo invadir todas as intimidades de sua vida. Mas, também, transformá-la em criação dele, tirá-la do real e transportá-la para o celulóide, pois a sente inspiradorado filme que está realizando "Retrato de uma moça" E para isto a segue, persegue com a câmara, sempre colocada em cima dela como um enorme olho-pênis, constantemente rodeado por todo o pessoal da equipe técnica que ele dirije, e que não devem perde-la de vista um só instante durante as filmagens. Alem disto, há várias perguntas, tipo entrevista, para obter maiores detalhes sobre seu presente e passado.

As cenas de "O último tango em Paris" se alternam entre os encontros de Jeanne com o amante e com o namorado, permitindo me lhor perceber o contraste entre alguém que quer preservar áreas secretas, e quem pretende ingenuamente invadí-las.

Ao sair do primeiro relacionamento sexual com Paul ela irá encontrar seu namorado e os dois se beijarão. Mas, subitamente, ela perceberá que mesmo este simples amplexo está sendo filmado e ficará irritada com isto. Porém, a forma dela se defender contra estas intrusões será o de guardar ainda mais suas áreas secretas, não as comunicando ao namorado, como seus encontros com o amante que parecem ser também a resposta a tais invasões. Por exemplo, ao beijo filmado ela retrucará sarcástica:, "Pensei em você o tempo todo"; nos, que ainda lembramos as cenas eróticas no apartamento, podemos dar a esta frase outras dimensões.

No relacionamento com o namorado, as áreas secretas aparecem sob outro prisma psicológico. Nesse caso, há, de um lado, alguém que quer se apoderar delas, e do outro, alguém que quer protege-las, dizendo meias verdades ou até inverdades. Isso fica ainda mais claro numa segunda cena com o namorado. Ao vê-la, ele nota um novo penteado que lhe desagrada e comenta: "Você está diferente", mas não capta, nem é informado a respeito das mais profundas razões dessas mudanças. E acaba concluindo por conta própria: "Você está diferente, mas é a mesma". Ele já está de novo focalizando-a com a câmara enquanto ordena: "A câmara desce lentamente sobre você e se aproxima sempre mais. Vou abrir todas as portas, todas as portas" (que realmente vão abrindo, na casa onde ela morou durante a infância, criando assim uma profunda perspectiva que alude a penetração regressiva no tempo). Entusiasmado, onipotente e ingênuo continua todo alegre: "Descobrir em marcha ré! Quero que você reencontre sua infância, que vença todos os obstáculos. Agora você passa pelos 15,14,13,12,11, 10,9 anos até chegar aos 8. Pare ali!"E nem ouve o comentário dela: "Como é melancólico olhar atrás de si". Diante dessa atitude invasiva ela revidará dando dados irrele vantes de seu passado, simulando interessar-se com essas revivências como quando relata sua composição sobre a vaca, abso lutamente vazia de conteúdo. Ou dará re latos parciais, ou fugirá do assunto. Relacionado com isso podemos fazer duas aproximações. A primeira, quando o namorado, não conseguirá dados sobre o pai dela por ela "estar com pressa" e ter que sair. Logo apos, contracenando com o amante, ela espontaneamente começará a falar de seu pai; mas será entao Paul que cortará as recordações dizendo que não quer ouvir nada do passado.

A segunda aproximação podemos ve-la no relato dela sobre seu namorado de infância: "Ficávamos cada um debaixo da propria árvore, nos olhando de longe, sem ele nunca me tocar", conta ao noivo; e ao amante completará a frase, acrescentando: "enquanto isso nos nos masturbávamos para ver quem terminaria antes". Mas neste caso perceberá que Paul, que já a mandou anteriormente calar por ter ela dado o nome do amiguinho ("Não quero saber de nomes" e curiosamente o menino chamava-se também Paul), nem mais lhe presta atenção. Ele não quer penetrar em seu passado. Ela então dirá: "Porque não me ouve? Por que não quer saber nada de mim? Parece-me estar falando com uma parede".

Assim nesse primeiro triângulo notei, em suas cenas iniciais, duas linhas diferentes, mas que seguem paralelas. Uma delas é a de não comunicar segredos a quem quer se apossar deles; outra tentar compartílhá-los, mas ter que guardá-los em si, porque o outro não os quer. Com o tempo sempre mais se avolumarão as áreas secretas entre ela e o namorado. Este, que ingenuamente pensava poder se apossar definitiva mente dela com o casamento, projetando então "filmá-la durante todo o dia, desde seu primeiro sorriso", quase corre o risco, sem saber, de ir morar com ela no a partamento conhecido dos espectadores,tao cheio de lembranças, que ele ignora. E no fim será também excluído da verdade sobre o crime dela.

Na outra paralela, pelo contrário, não será possível manter o proposito inicial de defender áreas secretas precipitando, possivelmente por isso, o trágico desfecho. Mas antes de analisar o final do filme gostaria de pesquisar agora as áreas secretas do segundo triângulo amoroso.

Paul, ao encontrar pela primeira vez a moça, acabara de ficar viúvo, pois sua esposa Rosa cortara os pulsos na banheira do hotel, do qual eram donos há cinco anos. Não somente ele tentará guardar segredo sobre esta tragédia quando com Jeanne, mas o próprio fato em si está cheio de mistérios para uma quantidade de pessoas: os hóspedes do hotel, o amante de Rosa, a mãe dela, a polícia técnica, e mesmo para o próprio viúvo. Daí haver no segundo triângulo uma quantidade grande de inquisidores, de invasores, que pretendem entrar na intimidade da morta e de seus relacionamentos.

Desde a primeira cena no hotel, vemos uma mulher limpando e sujando-se com o sangue que se espalhou pela banheira. Ela relatará a Paul, que acaba de voltar de um de seus encontros escondidos e que permanecerá mudo, como foi o inquérito da polícia, que também a usou para reproduzir os últimos instantes da morta - "Abri a cortina exatamente como ela fez. E eles perguntaram: "Era triste?" Alegre?" "Os dois tinham filhos?" etc. e avisa que a autopsia será feita.

O que mais nos chamou a atenção nesta parte do filme foi não só as perguntas tangenciais que irão fazer os inquisidores, bem longe da essência do problema, como também o freqüente uso de portas, cortinas, pilares, que se abrem e se fecham simbolizando ora o desejo de penetrar dentro dos segredos, ora o de querer mante-los protegidos dos curiosos. Além disto, a ingenuidade destes, que pretendem roubar enigmas psicológicos e emocionais ficando porém só no concreto do corpo, do sangue ou da repetição de um gesto, como se através disto se conseguisse captar o incompreendido. A cena da mulher acaba com ela abrindo novamente a cortina, mexendo no sangue, como se esta simples conseqüencia fornecesse, pe la fantasia de identificação, a chave das intenções e emoções da morta.

Na segunda cena no hotel surge outra invasora: a mãe da defunta. Paul, chegando novamente de um de seus secretos encontros, a surpreenderá na frente de um armário aberto, remexendo nas prateleiras. "Que está fazendo?" "Procurando algo, algo que me explique, uma carta, um sinal. Não é possível que ela não tenha deixado nada para mim, nada para a sua mãe , nem uma palavra". E ali recomeçará uma outra saraivada de perguntas tangenciais: "Foi com a navalha?" "Como foi?" "A que hora?" "De noite?" etc. O viúvo só responderá a uítima pergunta, mais pertinente, " Por que se matou?" dando um violento murro na porta. Enquanto isto outros invasores de áreas secretas ficarao espreitando atrás dos reposteiros; são os hospedes do hotel, assanhados em querer saber, contra cujos rostos Paul lançara bruscamente as portas. A mãe de Rosa, não conseguindo entrar nos mistérios da existencia e da morte da filha, resolve entao manipular seu corpo transformando seu rosto, através de uma maquilagem que ela, quando viva, nunca teria usado. E, se seu genro não se opusesse, ate lhe daria um enterro religioso contrario aos princípios da defunta. Revela-se assim a característica invasora desta mãe, que não tendo podido manipular a filha em vida tenta manipulá-la agora, quando indefeso cadáver.

O próprio Paul, que procura proteger segredos, gostaria também de poder desvendar muitos deles. Percebe-se que entre ele e a esposa havia áreas secretas, embora ele se tivesse iludido saber tudo sobre ela, possivelmente porque era informa do do relacionamento com o amante. Novamente teríamos verdades parciais para esconder outras, que enganam o confessor. O viúvo sente-se impelido a encontrar-se com Marcelo, porque ambos acham que "pensando juntos poderemos tentar conhecer Rosa". Evidencia-se, então, que nem o amante captara as áreas secretas dela. Mas ao verem se os dois, com idêntico "robe de chambre", se acrescentara outro ponto de interrogação: "Por que Rosa queria-nos iguais, com a mesma cor e o mesmo desenho de roupão?" Intuimos com isso que ela - da qual nada mais saberemos - foi um tipo de pessoa (como a mãe dela e como o namorado da moça) que não respeita a personalidade alheia, mas só se relaciona com alguém ao qual impõe, ou tenta impor, ser conforme seus próprios desejos. O amante pergunta "Seja sincero, não sabia que usávamos o mesmo roupão?" Ao que responde o viúvo, evidentemente mentindo: " Sei tudo. Rosa me falava tudo". Durante o encontro, Marcelo, a um certo momento, gostaria de saber porque um dia ela tentou arrancar um pedaço de papel da parede e Paul tenta uma interpretação. Mas serã este último que trara a pergunta mais crucial: "Por que me traía com você? Queria tanto saber o que ela via em você".

Assim este diálogo entre os dois homens que se reuniram para tentar conhecer, após sua morte, aquela que nenhum dos dois tinha entendido, praticamente não desvendará nenhum mistério. Mas irônicamente, só se acabará descobrindo algo de nenhuma monta e relacionada a Marcelo. Este dirá: "Voce quer saber? Eu também tenho o meu segredo" e mostrara o tipo de ginastica que faz para tirar a barriga. Neste caso, quando se pretende chegar ao amago do problema (por que se matou? Por que os desejava idênticos? etc.) acaba-se tendo respostas irrelevantes e que nem interessam.

Possivelmente em nenhum outro momento de filme teremos tão desesperadas perguntas a áreas secretas surdas e que não respondem como no monologo de Paul ao lado da esposa morta, maquilada pela mãe, muda no meio das lindas flores roxas. Hierática, ela se calou para sempre. Pela expressão do rosto parece guardar com triunfo os segredos que ninguém conseguiu desvendar. Enquanto isto o viúvo, ao lado dela, tenta ainda conseguir alguma resposta, num angustiado dialogo-monologo, que passará por várias tonalidades emocionais: da irônia ao odio, da impotência a ternura, da irritação ao desespero. O agitado discurso, que tentarei reproduzir, em algumas frases, alude as áreas secretas; "Oh falsa Ofélia afogada numa banheira!" "Em cima de um armário encontrei numa caixa coisinhas, bobagens, até colarinho de padre; não sábia que colecionava miudezas. Mesmo vivendo juntos 200 anos não se conhece uma pessoa"... "Quem é afinal você? Nunca saberei sobre o seu segredo"... "Ontem deixei sua mãe às escuras; isto me incluí também"... "Para me ajudar a conhece-la deixou-me em herança o Marcelo. Voce me mentiu. Mentiu e eu confiava em você"... "Diga algo! Diga algo! Sua porca imunda e mentirosa".

Impossibilitado de atingir o subjacente, que lhe fora escondido, ele também tera uma solução derivativa para o corpo de la, ameaçando tirar-lhe a maquilagem que camufla a verdade de seu rosto.

Enquanto que, nessa situação triangular, as áreas secretas permanecerão inatingíveis, apesar das múltiplas investidas, algo diferente ocorrerá entre Paul e Jeanne. Com o tempo percebe-se, sobretudo nele, por trás das resistências o desejo é posto de finalmente querer se abrir com alguém. Ao longo dos encontros começara a falar de seu passado "do qual só tem lembranças tristes" a não ser a do fazendeiro que salivava pelo cachimbo, tendo tido um "pai metido a putas e valente" e uma "mãe também bêbada que lembrava vindo da cadeia". Um dia, em poucas palavras, e de passagem, ele dará a súmula de sua situação atual: "Tenho 45 anos; sou viúvo; tenho um hotel; minha esposa suicidou-se; tenho prostata enorme; não tenho amigos. Se não tivesse conhecido você ficaria só com a minha hemorroida". Ja não há quase mais mistérios, quebrando-se as trincheiras que antes defendiam as áreas secretas.

O desfecho do filme e livre de ser interpretado. Mas parece-me haver nele: a aspiração, a impossibilidade e as vezes os perigos de lidar com as áreas secretas. Num triângulo temos simbolicamente um extremo que é de preferir morrer a compartilhalas, quando possivelmente se poderia. No outro triângulo, o de ser aniquilado quan do se escolhe para elas um "continente que não é realmente "bom", ou quando se quer invadir em demasia a vida de alguem que quer preservar suas próprias intimidades. Analisarei estes dois últimos perigos relacionados com o assassinato de Paul por parte da moça.

O desejo dele de finalmente encontrar um bom continente que aceite seus lados sombrios e mortos, sem rejeitá-lo, parece-me claro quando, ao pedir a ela a introdução anal pelo dedo, acompanha esse ato com palavras que aludem a ela copular "recebendo o vômito e o fedor de um porco agonizante". Mas nem ela parece querer acolher isso, nem ele quererá, até o fim, aceitar o conhecimento do passado dela. Enquanto os dois se encontravam secretamente no a partamento, com contatos esporádicos, parciais, que permitiam preservar o anonimato e, paralelamente, outros relacionamentos excluídos deste, tudo parecia se manter. Mas outros desejos opostos foram aos poucos aparecendo. Ele já a quer só para si, pretendendo levá-la consigo para uma fazenda que ela detesta.

No filme, alegoricamente, ampliam-se os lugares onde se encontram, saindo eles fora do apartamento secreto. Mas aí onde ficarão as áreas secretas?

Nas últimas cenas o amante, antes tão rígido defensor destas áreas, torna-se para Jeanne um novo violentador delas. E a moça já não o quer mais. Mas ele lhe corre atrás pela rua, enquanto ela foge para a casa-museu do pai e da mãe, que e também seu lar. Seguindo-a há também o perigo de que ele traga consigo os segredos ligados a eles, que ela prefere manter fora. Esta parte do filme mostra a violenta entrada na personalidade de alguem que não pode ser bom continente,nem quer ser penetrado em seus núcleos íntimos e secretos. Ele a segue correndo,que rendo falar com ela. Ela foge gritando Socorro! Socorro!" E refugia-se em sua casa quando ele invade o lugar dela (casa=personalidade). Sem refúgio ela o matará. "Quero saber o seu nome" é o último pedido dele e a resposta será o disparo mortal. Com o revólver ainda quente na mão ela já prepara outras áreas secretas para quem lhe perguntar sobre o ocorrido: "Não sei quem é. Não sei como se chama. Qual o seu nome. Não sei quem é. É um louco, não sei como se chama. Quis, entrando, violentar-me".

E com estas palavras, que tentam deturpar os fatos, de certa forma a moça diz simbolicamente verdades, pois alude a violência de pretender invadir áreas secretas desta forma, e a loucura de entrega-las indevidamente.

 

 

 


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Terminada a análise do filme acrescentarei um pequeno aparte ainda relacionado com áreas secretas e violentadores, mas desta vez baseando-me numa situação do real.

quando estava sendo projetado em São Paulo o "O último tango em Paris", a atriz Maria Schneider aqui esteve, de passagem, não para homenagear o filme. A Impressa, os fãs, os curiosos literalmente cairam em cima dela famélicos para olha-la, entrevista-la e desvendar suas intimidades. Mas ela decepcionou a todos, mostrando-se (conforme diziam os jornais), "muito diferente da personagem que interpretava o filme". Em lugar de um topless, ela usava um fechadíssimo pulôver debaixo do qual os olhares excitados não reconheceram as famosas curvas. Além do mais ela se esquivava das perguntas tais como: "Dormiu realmente com Marlon Brando?", "E a manteiga?", "Onde foram parar suas prosperas tetas?", etc. Ela distante e enfastiada,respondia estar bem longe disso tudo que nem mais lembrava, por já estar em "outras". Pouco aberta e comunicativa, ficava num canto durante os ruidosos churrascos organizados para recebê-la, e saiu de um destes sem cumprimentar ninguém, esquecendo-se até da rosa batizada com seu nome, que a Roselândia tinha lhe oferecido. Mas a mim, que estava enquanto isto meditando e escrevendo essas idéias pareceu-me pelo contrario ter sido ela bem escolhida para a atriz do filme, não só pela sua interpretação nele, mas também pelo seu comportamento fora da tela. Quem melhor do que ela poderia representar alguem que tenta se esquecer de tudo, especialmente do que esta relacionado com o próprio nome? Lembro que Maria Schneider, entre outras coisas, foi filha de pai desconhecido até adulta, quando descobriu ser filha de Daniel Gelin, que nunca assumiu legalmente sua paternidade, não tendo, portanto ela o sobrenome paterno. Quem melhor do que ela, que tão bem se esquivou de todos aqui, frustando expectativas voyeurísticas, poderia melhor representar quem guarda áreas secretas contra invasores ingenuos, para os quais existe, sobretudo, a medida do concreto e do visual? Quem mais indicado para representar os "mas-porêm" acima apontados, as verdades sabidas mas negadas do que alguém que tornou-se vulgarmente símbolo da mulher-fêmea, apesar de seu lesbianismo claramente confesso?

Para estas considerações que acabei de expor eu me utilizei, além da minha propria personalidade, intuição e interpretação, também dos recursos provindos de mi nha formação psicanalítica.

Assim, se não nomeio especificadamente Freud, Melanie Klein¡, Bion, Winnicott, Bleger e outros, torna-se evidente porem, para o leitor especializado em psicanalise, que eles não foram por mim ignorados.

Gostaria agora de me deter na contribuição de Piera Aulagnier, cuja obra me foi apresentada em uma reunião científica de novembro de 1979, em súmula didática do Dr. Fábio Herrmann de alguns artigos discutidos pelo grupo de estudo que se dedica a esta autora. Estava eu, a esta época, elaborando as idéias e escrevendo as notas sobre o "O último tango em Paris", quando, surpresa, notei grande semelhança entre minhas observações sobre o filme, ou seja, a constante alusão a áreas mantidas secretas contra possíveis investidas de intrusões e as teorias dessa psicanalista francesa sobre a oposição entre o pensar secreto e o excesso de violência secundaria. Tentarei expor aqui, respeitando o quanto possível o estilo explicativo da autora, este duplo tema de Piera Aulagnier, cujo aprofundamento busquei com a leitura dos artigos referidos na citada súmula(2)*.

I - O conceito de Violência Primaria e a Origem do Eu.

Uma das características da vida psíquica é a do sujeito defrontar-se repetitivamente com experiências que, na maioria das vezes, se antecipam a sua possibilidade de resposta e ao que ele pode saber ao prever. O "infans" especialmente é constantemente solicitado além de sua possibilidade de resposta e se encontra na situação na qual a oferta precede sua demanda. Ele, logo que vem ao mundo, é inserido num universo de linguagem, que só depois irá entendendo e dominando, tornando-se a mãe o "porta-voz" de suas necessidades que ela irá interpretando, comunicando e batizando, metabolizando os em desejos, sem que a criança possa inicialmente ter a menor condição de opor-se . Nessa primeira fase o que o nenê demanda a voz materna e o puro prazer libidinoso de ouvir, mas o que esta lhe oferece é também um fluxo discursivo, que antecipa a capacidade de compreender sua significação e que inclui também as primeiras injunções, interdições, limitações do possível, do lícito e do certo. O grito emitido pelo bebê, que em si não tem significação, será logo interpretado pela mãe como significando dor ou tristeza, ou necessida de de alimento, etc.

É este discurso que ilustra de maneira e xemplar o que Piera Aulagnier designa de violência primária definindo-a como sendo: "A ação psíquica pela qual se impõe a psique de um outro uma escolha, um pensamento, uma ação motivados pelo desejo daquele que impõe, mas que são entretanto, apoiados num objeto que para o outro corresponde a categoria do necessário"(3). A violência assegura sua meta unindo o registro da necessidade do"infans" ao registro do desejo da mãe.

O fenomeno de violência refere-se essencialmente a diferença entre a organização psíquica da mãe (na qual já se estabeleceu a instância Eu, se realizou a ação da repressão) e a organização psíquica imatura da criança em estado de satisfação e de dependência.

Esta violência tao absoluta, e também indispensável, nos momentos iniciais da vida, para o desenvolvimento psíquico da criança, pois, prepara a origem do Eu e permite o acesso do sujeito à ordem do humano. "Para que o psiquismo infantil entre em ação é preciso que, ao seu trabalho, se acrescente o da função de prótese do psiquismo materno" (4), que é também objeto de um prazer erôgeno indispensável para o funcionamento psíquico. A necessidade da presença de um Outro não se restringe âs funções vitais que ele deve garantir: "Viver exige a satisfação de uma série de necessidades as quais a criança não pode suprir de forma autônoma; mas e xatamente por isto as "necessidades" da psique exigem uma resposta sem a qual o "infans"pode perfeitamente, apesar de seu estado prematuro, decidir recusar a vida"(5).

"A função de prótese da psique materna permite a criança encontrar uma realidade já remodelada pela atividade psíquica materna e tornada, graças a ela, representável: o real sem sentido, inacessível a psique, e substituído por uma realidade humana, porque investida pela libido materna"(6). "O efeito de prótese, se manifesta, no espaço psíquico do"infans", pela irrupção de um material marca do pelo princípio da realidade e, portanto, pelo discurso, o qual impõe, desde cedo, aquele que não tem ainda o poder de apropriar-se deste princípio, a intuição de sua existência"(7).

"Será este discurso e os alinhavos identificatórios fornecidos tão-somente por ele, que o "infans", no momento em que adquire os primeiros rudimentos da linguagem (e passa ao estado de "infante") devera apropriar-se; e. uma imagem do Eu que vem do Outro que fará inicialmente irrupção no espaço psíquico e dará paradoxalmente corpo a uma instância, o Eu, que terá o poder de se despreender de uma violência a qual ele deve sua origem"(8).

II - O Risco de Excesso seria desejar, por parte da mãe (e também da criança) que este "status quo" permanecesse sem modificação. Isto faria com que o discurso materno se transformasse, para sempre, num solilóquio a duas vozes.

"O desejo que nada mude é suficiente para inverter radicalmente os efeitos da quilo que foi, durante um período, lícito e necessário e transformá-lo naquilo que será por excelência a condição do pensamento delirante. Aspiração mantida por um desejo do qual, a aloucada desmedida implicaria: na exclusão da criança da ordem da temporalidade, na fixação de seu ser e de seu devir a esse momento no qual só pode conhecer e investir uma imagem dada pelo porta-voz, na impossibilidade de pensar uma representação que não tenha sido pensada e proposta pela psique do Outro"(9). Este desejo tanático por parte da mãe de preformar os pensamentos da criança dificultara ou impedira que aconteça o que normalmente deveria ocorrer: a capacidade por parte desta última de pensar seus próprios pensamentos.

Piera Aulagnier propõe diferenciar uma violência primaria de uma violência secundaria. No primeiro caso "trata-se de uma ação necessária, cujo agente e o Eu do Outro, tributo que a atividade psíquica paga para preparar o acesso a um modo de organização e em benefício da construção futura da instância Eu"(10). No segundo caso é uma violência que se exerce contra o próprio Eu e tem como finalidade destruí-lo. Esta apropriação de um direito de e xistir, que se manifestará de maneira e vidente na vivência psicótica, estará subjacente e velada, sem adotar a forma de uma loucura manifesta, todas as vezes que o Eu só puder funcionar normalmente quando um Outro, conhecendo todos os pensamentos, lhe sirva de prótese e fundamento. O desejo por parte da mãe de continuar possuindo o entendimento de todas as necessidades da criança e todo o saber sobre ela é pelo receio de ter que lidar com uma personalidade que se tornaria menos transparente aos seus olhos; e ter que renunciar a ser ouvida como a voz que transmite a "verdade", mais plena e incontestável.

Neste caso a Mãe não reconhecerá no filho um sistema de significações que não seja a simples retomada, em eco, do sistema materno; "A criança se vê confrontada a um discurso no qual nenhum enunciado dá um sentido a sua presença. (Sente que) lhe é negado o direito á autonomia, para exigir que encarne alguém que já existiu. La, onde dever-se-ia construir um projeto, lá onde a noção de futuro deveria permitir ao Eu mover-se numa temporalidade ordenada, o retorno do mesmo estanca o tempo, em benefício da repetição do idêntico e inverte sua ordem, pois, aquele que deve tornar-se, descobre que ele é precedido por um passado e um antepassado, os quais lhe impoem o lugar e o tempo aos quais ele deve retornar. A sombra falada não antecipa o sujeito, ela o projeta regressivamente neste mesmo lugar que o portavoz já ocupou no tempo passado"(11). Nessa violência excessiva há a tentativa, por parte do Outro, de apropriar-se da atividade de pensar da criança impedindo também que esta crie seu próprio ser único e inconfundível.

Com relação ao termo "sombra falada" usa da (mesmo no trecho acima) por Piera Aulagnier, lembro que esta autora salienta as distorções pelas quais as vezes a mãe define o filho, que ela imagina conhecer tão bem. Nisto, no início, haveria uma correlação com o desejo da criança e a crença desta de estar lidando com um ser supremo, dono de toda a Verdade. Disto decorreriam falsas matrizes identificatórias (o que possivelmente, penso, poderiamos entender como "falso Self"); "Precedendo o nascimento do sujeito preexiste um discurso que o concerne: espécie de sombra falada e suposta pela mãe que fala; ela se projetaria sobre o corpo do "inf ans", tomando o lugar deste, a quem se dirije o discurso de porta-voz"(12). " O discurso materno se dirige inicialmente a uma sombra falante projetada sobre o corpo do"infans";a este corpo tratado, acariciado, alimentado a mãe pede a confirmação da identidade da sombra, sendo que é desta sombra que se espera a resposta, raramente ausente pois ela é pré-formulada"(13). "A mãe se forja uma representação ideativa do"infans", através do discurso que ela mantêm com ele, representação que ela começa a identificar como sendo o "ser" do "infans",inevitável mente forcluído de seu conhecimento"(14). Assim a mãe poderá projetar na criança aquilo a que teve de renunciar, aquilo que perdeu ou que ela esqueceu de ter desejado; seus sentimentos de culpa, sua ambivalência, seus projetos de morte, seu Édipo não resolvido; "A mãe poderá falar no feminino a sombra de um corpo que tem pênis"(15). No filme "O último tango em Paris" podemos encontrar exemplos destes excessos de violência particularmente: em Rosa que impunha a seus dois homens uma semelhança premoldada por ela; na mãe desta que, em falta de outra possibilidade , manipula seu cadáver conforme seus proprios desejos; no namorado cineasta em relação a Jeanne quando confere a ela o papel de musa de um filme, mas na medida em que ela se enquadre em sua inspiração; na mãe de Jeanne que a ignora, enquanto cegamente busca a repetição de um passado que precedeu a existencia da filha.

III - O pensar secreto, o direito a um prazer inalienável.

É necessário que o enunciado da mãe possa ser posto em duvida para que o Eu conquis te a sua autonomia:"O primeiro testemunho desta autonomia será a possibilidade de pensar secretamente"(16). "Poder exercer um direito de prazer sobre sua propria atividade de pensar, reconhecer o direito de pensar o que o outro não pensa e não sabe que pensamos e uma condição necessaria ao funcionamento do Eu. Mas o acesso a este direito pressupõe o abandono da crença no todo saber do porta-voz, a renúncia a encontrar, na cena do real, uma voz que garanta o verdadeiro e o falso, o luto por um prazer libidinal ligado ao dom de uma sonoridade pura. Isto só e possível quando a criança descobre que o discurso do porta-voz diz a verdade, mas po de também mentir (...) A descoberta que o discurso pode trazer a verdade ou a men tira é, para a criança, tão fundamental como a descoberta da diferença dos sexos. Poder duvidar do que é ouvido e tao indis pensável quanto poder duvidar da realidade de uma construção que se revela sob a égide da fantasia (...) Será só a esse preço que o sujeito poderá questionar o Outro - e se questionar - a respeito de quem e o Eu, sobre a definição que o discurso fornece da realidade, e sobre a intenção que motiva o discurso do Outro e dos outros"(17).

So assim poderá haver pensamento e o direito inalienável de poder pensar seus próprios pensamentos sem senti-los pertencentes a um outro, passando-se de um "Eu falado", pelo discurso do porta-voz, a um "Eu falo" o que quero falar, quando quero e a quem quero, tendo claro na mente o poder manter pensamentos secretos , durante um certo prazo ou para sempre, que ninguém tem o direito de extorquir. No filme temos constantes alusões a tentativas de intrusões em segredos alheios: a mãe de Rosa, o namorado de Jeanne, a mulher que limpa a banheira, a polícia técnica, os hospedes do hotel e o próprio Paul em relação a Rosa. Acho, porém que não devemos concluir, lendo Piera Aulagnier, que todas as áreas secretas são para ela automaticamente pensamentos, pois é necessário diferenciar o pensar seus próprios pensamentos em segredo, das áreas tornadas mudas pela repressão, esquecimento e não percepção delas.

Todavia para que a descoberta do poder pensar secreta e prazerosamente se faça, e preciso que ela não seja constantemente ameaçada pelo medo de punição, o que levaria a amputação da função culpada; " É necessário que o desejo de autonomia do Eu exista como seu desejo, mas que o Eu entenda na voz do porta-voz o desejo de facilitar-lhe a realização"(18).

Em Piera Aulagnier temos a utilização destas observações do desenvolvimento da função pensar trazidas para um melhor entendimento do que é adequado ou inadequa do no encontro analítico. Ela observa como um analista favoreceria o pensamento delirante se se comportasse como uma mãe que quer manter a violência primária, identificando-se com um ser advinho que tudo sabe, dando ao seu cliente a sensação que tudo o que este pensa ja foi an teriormente pensado pelo terapeuta. Esta autora considera que a propria técnica da associação livre deve ser usada com grandes cuidados pelo perigo de favorecer no paciente o dizer tudo sem pensar, havendo um Outro que pensaria sobre o que foi dito, e com isto provocando uma regressão a uma época arcaica (da qual possivelmente o cliente tem ainda uma doentia saudade), na qual não se possui ainda a noção de poder pensar seus próprios pensamentos.

Piera Aulagnier considera que a loucura é a loucura de um discurso sem espaço para meditações secretas, "espetáculo de uma amputação intolerável para o funcionamento do pensar, lembrança de um perigo mortal que todo o Eu efetivamente arriscou vivênciar e do qual encontramos em todo homem a marca, neste sentimento de horror que o toma com a ideia que ele poderia ser privado de toda possibilidade de escolha entre seu silencio ou sua palavra"(19). "Preservar-se o direito e a possibilidade de criar pensamentos, e mais simplesmente de pensar, exige que a pessoa se arrogue o de escolher os pensamentos que comunica e os que guarda secretamente: e esta uma condição vital para o funcionamento do Eu"(20). "a perda do direito ao segredo levaria, junto com um " a mais" para ser reprimido, um "a menos" a ser pensado: duas eventualidades que levam ao risco de tornar impossível a atividade de pensar e, daí, a própria existência do Eu"(21). É esta perda que está na base da psicose.

 

 

Piera Aulagnier quererá então dizer com isso que só há pensamentos no absoluto segredo? Acredito que não. Caso contrário nunca teria escrito seus trabalhos. Se assim fosse nem se justificariam grupos de estudos sobre sua obra, pois lá é necessário se pensar juntos, comunicando-se mutuamente entendimentos e observações. Assim se nem todas as áreas secretas são pensamentos, nem todos os pensamentos devem ser mantidos só para si. O exemplo disso e o que acontece tanto na ciência quanto na arte. Eu nunca teria pensado o que escrevi se não tivesse captado uma mensagem no filme, mensagem esta que foi aprofundada pelas leituras do pensamento de Piera Aulagnier e que, desde então, me permite ter uma nova dimensão para entender melhor o que meus clientes me comunicam.

 

 

(1) - Uso o termo "áreas secretas" por não ter informação se haveria outro na mente de Bertolucci, já que não tenho acesso às teorizações do autor.
(2) - Agradeço a amiga Dra. Amazonas Alves Lima, que me emprestou todos os artigos lidos pelo grupo de estudos e que acabou sendo a revisora deste meu escrito.
(3) - "A violência da interpretração", Imago Editora, 1979, pg. 38
(4) - Idem, pg. 39.
(5) - Idem, pg. 107.
(6) - Idem, pg. 108.
(7) - Idem, pg. 109.
(8) - "A propus du transfert-le risque d'exces et d'illusion mortifere". Publications des facultés universitaires Saint-Louis - extrait de "Savoir, faire, esperer: les limites de la raison". Bruxelles, 1976, pg. 421.
(9) - Idem, pg. 422.
(10) - "A violência da interpretração", pg. 36.
(11) - Idem, pg. 193.
(12) - Idem, pg. 109.
(13) - Idem, pg. 110.
(14) - Idem, pg. 36.
(15) - Idem, pg. 111.
(16) - Idem, pg. 198.
(17) - "A propus du transfert", pg. 425.
(18) - Idem, pg. 428.
(19) - "Le droit au secret: condition pour pouvoir penser" - Du Secret - Nouvelle revue de Psychanalise XIV - Tirage à part - Automne, 1976.
(20) - Idem, pg. 142
(21) - Idem, pg. 143
* Este artigo é anterior as conferências de Piera Aulagnier, pronunciadas, a convite da S.B. P.S.P., em agosto de 1980 em São Paulo

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