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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.60 São Paulo jul./dez. 2015

 

EM PAUTA | SEGREDO

 

Abjeção e segredo: a fotografia como testemunho e ficção

 

Abjection and secret: photography as evidence and fiction

 

 

Annateresa Fabris

Professora titular aposentada da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Autora, entre outros, de O desafio do olhar: fotografia e artes visuais no período das vanguardas históricas (2011, v. 1; 2013, v. 2)

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RESUMO

Negar a possibilidade de representação visual da Shoah não significará mimetizar a "política do segredo absoluto", preconizada pelo nazismo? Como analisar as fotografias de Abu Ghraib, marcadas pela confluência entre tortura e pornografia? Como abjeção e segredo se encontram nas imagens de uma sexualidade crua encenada por Andres Serrano e Cindy Sherman?

Palavras-chave: Fotografia. Pornografia. Abjeção. Segredo.


SUMMARY

To deny the possibility of Shoah's visual representation will not lead to the emulation of the nazi "politics of absolute secret"? How we can analyze the photographs of Abu Ghraib, whose distinguishing mark is a confluence between torture and pornography? How abjection and secret come together in the images of a naked sexuality simulated by Andres Serrano and Cindy Sherman?

Keywords: Photography. Pornography. Abjection. Secret.


 

 

A exposição Memória dos campos. Fotografias dos campos de concentração e de extermínio nazistas (1933-1999), apresentada em Paris, em janeiro de 2001, servirá de ponto de partida para analisar a problemática da relação entre abjeção e segredo, por ter sido alvo de duras críticas em dois artigos publicados no número 613 da revista Les Temps Modernes. Embora Elisabeth Pagnoux e Gérard Wajcman partam do pressuposto de que a Shoah não pode ser representada, só o segundo declara as razões dessa impossibilidade. Passando por cima das definições possíveis de Shoah, entre as quais a da organização Yad Vashem (Jerusalém), que a apresenta como o termo padrão judaico, em uso desde os anos 1940, para designar o extermínio de judeus europeus pelo nazismo, Wajcman (2001, p. 66) propõe um uso restritivo do termo: refere-se a um evento único para o qual foi inventado um "[...] instrumento específico de morte que são as câmaras de gás".

A latino-americanista Pagnoux (2001, p. 91) usa um argumento sui-generis para justificar o próprio ponto de vista, que a leva, do mesmo modo que Wajcman, a investir contra a mostra e contra o ensaio do historiador da arte Georges Didi-Huberman, publicado no final do catálogo: o silêncio estava inscrito no projeto nazista, que proibia todo vestígio visual dos campos de extermínio, com o intuito de "destruir a destruição". A ideia de "silêncio" como "segredo", posta em ato pelo nazismo, desdobra-se num segundo tipo de "silêncio", o das fotografias analisadas pelo historiador, que nada dizem sobre o horror de Auschwitz, não se diferenciando em nada das imagens que poderiam ter sido feitas pelas SS. O psicanalista Wajcman (2001, p. 47) vai mais longe em suas considerações, associando o caráter irrepresentável da Shoah à inexistência de imagens fotográficas e fílmicas mostrando o extermínio dos judeus em câmaras de gás em plena atividade...

Numa publicação anterior, L'objet du siècle (1998), o autor havia discutido mais longamente a problemática da "invisibilidade" da Shoah, fruto direto da "essência invisível" do plano de extermínio nazista. Se bem que não haja imagens, isso não significa que não se soubesse que a Shoah estava ocorrendo. Ao contrário, falava-se dela, a ponto de as câmaras de gás poderem ser definidas um "segredo de Polichinelo", do qual se tinha conhecimento sem saber. Sabia-se da Shoah, mas nada se via dela porque não havia nada a se ver. "Invisível, a Shoah é um acontecimento que se situa fora do campo da prova" (Wajcman, 2012, pp. 278-279), pondo em xeque a ideia de documento visual e tornando essencial a noção de testemunha.

Baseados em tais premissas e em declarações absolutamente discutíveis sobre o estatuto da imagem fotográfica, Pagnoux e Wajcman lançam mão de termos psicanalíticos para definir a exposição e, sobretudo, o ensaio de Didi-Huberman. De acordo com a leitura de Pagnoux (2001, p. 89), visitar a mostra significava manifestar um voyeurismo deslocado, que se regozija com o horror e transforma Auschwitz num "objeto fotogênico". A ideia de abjeção, subjacente em suas palavras, é explicitada por Wajcman, que fustiga a exposição por dar visibilidade à "[...] idéia abjeta da troca infinita e recíproca dos lugares do carrasco e da vítima" (2001, p. 74), afirmação motivada por uma pare-de em que estavam expostas as fotos de prisioneiros agredidos pelos guardas e de nazistas espancados pelas vítimas durante a libertação dos campos. Didi-Huberman é acusado pelo autor de ter praticado um "flagrante delito" (Wajcman, 2001, p. 48), ao "cristianizar o debate sobre as imagens em geral" (Wajcman, 2001, p. 62) e ao dar mostras de uma atitude fetichista, próxima do culto das relíquias. Como se isso não bastasse, sua análise é remetida à busca de uma "atestação visível", à ostensão do Sudário como "marca do verdadeiro" (Wajcman, 2001, pp. 81-83)1.

O que provoca a ira de Wajcam (2001, pp. 105-108) é o fato de Didi-Huberman ter usurpado "o estatuto da testemunha" ao analisar quatro fotografias feitas por um membro de um Sonderkommando de Auschwitz, em agosto de 1944, e ter afirmado no final do ensaio que só as imagens haviam sobrevivido. A leitura enviesada de Wajcman (2001, pp. 76-77), para quem as únicas imagens válidas da Shoah deveriam dar a ver fumaça, pó, a água de um rio, uma estrada e bolhas de sabão, símbolos dos processos de gaseificação, queima e arremesso dos despojos ao rio, além da transformação dos ossos em material de aterro e sabão, será melhor compreendida se for lembrado o que era um Sonderkommando. Este era constituído de prisioneiros encarregados de levar seus companheiros para as câmaras de gás, retirar seus corpos, arrancar os eventuais dentes de ouro, lavar o local, introduzir os despojos nos fornos crematórios, retirar as cinzas, triturar os ossos, juntar os detritos e jogá-los no rio ou utilizá-los como material de aterro, caminhar sobre 150 m2 de cabelos que quinze pessoas cardavam, repintar o vestiário, erguer sebes para servir de camuflagem, cavar fossas de incineração suplementares, cuidar da manutenção dos equipamentos. Esse trabalho incessante era realizado durante alguns meses; depois o grupo era suprimido, cabendo à equipe que tomava seu lugar queimar os cadáveres dos antecessores (Didi-Huberman, 2003, pp. 12-14).

Em agosto de 1944, Alex, um judeu grego que fazia parte de um dos Sonderkommandos de Birkenau, de posse de um aparelho fotográfico, esconde-se na câmara de gás norte do Crematório V e de lá faz duas tomadas de uma fossa de incineração ao ar livre, no momento em que estavam sendo queimados cadáveres. Com o aparelho escondido sai da câmara e se encaminha para o bosque de bétulas e, às escondidas, sem olhar no visor, fotografa um grupo de mulheres despidas que se dirigem para o Crematório IV. A última imagem é abstrata: vê-se apenas o sol filtrado pelos ramos das árvores. Feitas as imagens, Alex devolve a câmara a outro prisioneiro, que a esconde no fundo de um balde. O pedaço de película com as imagens é retirado do aparelho e levado para o campo central, de onde sai num tubo de creme dental, junto com um bilhete escrito por dois prisioneiros políticos, para ser entregue à Resistência Polonesa de Cracóvia (Didi-Huberman, 2003, pp. 21-23).

Essas quatro imagens, tiradas em condições absolutamente precárias, são analisadas por Didi-Huberman como uma tentativa de "dar forma a esse inimaginável" que era o campo de Auschwitz-Birkenau. Longe de fazer o que Wajcman lhe atribui - negar o testemunho dos que viveram a experiência -, o autor localiza nas fotografias "quatro refutações, arrancadas de um mundo que os nazistas queriam ofuscado, isto é, sem palavras e sem imagens" (Didi-Huberman, 2003, pp. 30-31). Na resposta aos ataques de seus detratores, que o acusam de perversidade moral (por negar os testemunhos), de perversão fetichista (por negar a realidade), de "voyeurismo", de "gozo com o horror" (Didi-Huberman, 2003, p. 73), entre outras qualificações negativas, Didi-Huberman lembra que seu ensaio tinha um título não levado em conta nos dois artigos - "Imagens apesar de tudo" - e explica as razões que o levaram a optar por ele."Imagens apesar de tudo", por terem sido "arrancadas, à custa de riscos inauditos, de um real que não tinham tempo de explorar [...], mas do qual conseguem, em poucos minutos, captar alguns aspectos, de maneira lacunar, fugidia" (Didi-Huberman, 2003, p. 79). "Imagens apesar de tudo" porque os testemunhos contradizem o dogma do inimaginável. É enquanto experiência trágica que

[...] o inimaginável requer sua contradição, o ato de imaginar, apesar de tudo. É porque os nazistas queriam que seu crime fosse inimaginável que os membros do Sonderkommando de Auschwitz decidiram extrair, apesar de tudo, essas quatro fotografias do extermínio. É porque a palavra das testemunhas desafia nossa capacidade de imaginar o que ela nos conta é que devemos tentar fazê-lo apesar de tudo, a fim, justamente, de melhor entender essa palavra do testemunho. (Didi-Huberman, 2003, p. 84)

Na impossibilidade de relatar o desenrolar da controvérsia, será lembrado um exemplo, citado na réplica do historiador, para pontuar a relação entre imagem, testemunho e memória, posta em xeque pelos artigos de Les Temps Modernes. Ka-Tzetnik, depois da volta de Auschwitz, não conseguia dotar de significado as imagens documentais do campo, até ter uma revelação, quando cola uma dessas fotografias na parede do escritório. Ao entrar na temporalidade da imagem, sua indiferença cai por terra. Isso desempenha um papel crucial no "tratamento psicanalítico", feito com o uso mais ou menos controlado de LSD, que lhe permite transformar em imagens o próprio sofrimento. Donde se deduz que o ato de enfrentar a imagem parece ser necessário à admissão do fato em si para a psique do sobrevivente (Didi-Huberman, 2003, p. 110).

O trabalho analítico empreendido por Didi-Huberman é uma interrogação profunda sobre a relação entre ver e saber, entre imaginação e ética. Por isso, sua reflexão sobre o senti-do antropológico de Auschwitz pode servir de ponto de partida para a análise de um conjunto de imagens produzidas recentemente, nas quais, mais uma vez, é colocada a questão do corpo do outro. Se o que estava na base de Auschwitz era a negação da dimensão humana da vítima, a conversão do prisioneiro num dessemelhante, num mero objeto aos olhos do carrasco (Didi-Huberman, 2003, pp. 58-59), é a esse mesmo tipo de experiência que remetem as imagens de Abu Ghraib. Divulgadas no programa televisivo 60 minutes e na edição de 10 de maio de 2004 da revista The New Yorker, as imagens feitas por militares norte-americanos na prisão iraquiana despertam, nos dizeres de François Soulages (2007, pp. 9-10), uma interrogação e uma reflexão sobre elas, a fotografia e o corpo político, pelo fato de traduzirem em imagens a violência, a guerra, a submissão e a sexualidade, de um lado, e o espetáculo, a mise en scène, o enigma e a manipulação, de outro. Embora mostrem algo que possui uma tradição milenar, essas fotografias podem ser consideradas novas por várias razões. Provam a existência da tortura, não para denunciá-la, e sim para rir e fazer rir os amigos do torturador-fotógrafo. Circulam pela internet de maneira privada. Mudam de status quando se tornam públicas, adquirindo um significado político.

Dentre as várias questões levantadas pelo autor, o que importa destacar neste momento é sua análise do corpo do prisioneiro como elemento de uma representação política. A encenação fotográfica produzida pelos militares norte-americanos, na qual o prisioneiro não se reconhece, priva-o de seu corpo. Na descrição de Soulages, o prisioneiro "[...] fica sozinho com seu corpo degradado pelos golpes e pelas imagens. Ora, nosso corpo é, a princípio, o que deveria nos ligar ao outro. O resultado é terrível: corpo despossuído, autonomia perdida, atomização dos sujeitos reduzidos a ser apenas imagens" (2007, p. 13).

Os depoimentos dos soldados mais envolvidos nos diversos episódios de tortura e de humilhação - Sabrina Harman, Lynn-die England e Charles Graner - apontam unanimemente para o armazenamento de provas, de evidências. Harman, que desejava ser fotógrafa forense e que sentia fascínio por corpos mortos e feridos, afirma que começou a fotografar o que via "porque achava aquilo tudo difícil de acreditar" e para "provar que os Estados Unidos não são o que eles imaginam" (Gourevitch & Errol, 2008, p. 134, p. 139). Instada por Graner, que era olhado com ceticismo quando contava histórias sobre a primeira Guerra do Golfo, e que resolve coletar provas em Abu Ghraib, England tira fotos e se deixa fotografar pelo amante para que haja "evidências de que aquilo aconteceu" e para ter "um suvenir" (Gourevitch & Errol, 2008, pp. 165-166, p. 169).

O que chama a atenção nessas falas é a total falta de comprometimento com o que era fotografado, pois todos os episódios de violência são reconduzidos ao "procedimento operacional padrão". Ao comentar uma foto que mostrava um prisioneiro nu e acorrentado, com um saco na cabeça e com água no chão da cela, Graner afirma: "O cristão dentro de mim sabe que isso está errado, mas o agente penitenciário dentro de mim não consegue não achar o máximo fazer um homem se mijar todo" (Gourevitch & Errol, 2008, p. 157). Uma das imagens mais famosas do conjunto - a de England arrastando um prisioneiro pela coleira - é considerada por ela "a foto de mim mesma", e não "a fotografia da infame Guerra do Iraque". O que a imagem dá a ver não é seu relacionamento com o prisioneiro, e sim com Graner, o qual, ao tirar a foto, demonstraria seu poder sobre ela. Ao mesmo tempo que afasta a ideia da humilhação sexual do prisioneiro, admite que, possivelmente, Graner quisesse mostrar uma mulher pequena e magra "dominando aquele homem" (Gourevitch & Errol, 2008, pp. 171-172)2.

A interpretação dessa imagem específica revela outros significados, que não se coadunam com a "inocência" alegada por England. Se a intenção de Graner fosse a de documentar o "uso de força planejado que deu ligeiramente errado", seria possível ver que algo havia sido feito contra o prisioneiro. A "fotografia ainda seria terrivelmente triste, talvez até nos inspirasse indignação", escrevem Philip Gourevitch e Errol Morris (2008, p. 182), os quais se detêm no significado que a figura feminina confere à cena, ao desempenhar o papel de "violadora". Outra questão fundamental diz respeito à presença de um fotógrafo na cena:

O fato de England estar posando, consciente da câmera e se apresentando a si própria à câmara, também envolve o fotógrafo na cena. Ele se torna o diretor do cenário da violação, e, de repente, o ato de fotografar pode ser visto como parte da injúria - tão ofensiva, que a foto em si, mais do que aquilo que ela retrata, poderia ser considerada uma ofensa. E, no final, a atitude de Graner ao fazer England posar para a foto, independentemente de ter sido intencional ou não, envolve a nós também, como espectadores, ao nos colocar em sua posição e nos convidar a pensar que sabemos o que estamos vendo. Uma fotografia de Gus sozinho, com a coleira caída no chão, permitiria que nos sentíssemos como testemunhas; com England ali, somos colocados na posição de voyeurs. (Gourevitch & Errol, 2008, pp. 182-183)

Segundo os dois autores, as imagens de Abu Ghraib têm força visual em virtude de seu amadorismo, que as aproxima da "desolação" e da "miséria dos tableaux medievais com que somos confrontados". Essa constatação não esgota o significado das fotografias, pois

[...] acima de tudo, os soldados que posavam fazendo caretas para as câmeras de seus companheiros enquanto dominavam os prisioneiros como se fossem troféus é que davam às fotografias o senso de realidade incontrolável e sem mediação. A encenação era parte da realidade que eles documentavam. E os sorrisos, os polegares para cima, as armas cruzadas sobre peitos estufados - este amor-próprio e afetação indecorosos era[m] o suprassumo do amadorismo. Estes soldados-fotógrafos estavam dentro e fora dos eventos que documentavam, observavam a si próprios - participantes do espetáculo -, e a decisão que tomaram de revelar, e não de ocultar, o que estavam fazendo indicava que não eram apenas fotógrafos amadores, mas torturadores amadores. (Gourevitch & Morris, 2008, pp. 306-307)

François Soulages (2007, p. 14) propõe outra leitura: é possível que, para não ser atingido por sua "violência degradante", o observador compare essas fotos com encenações feitas por algum artista contemporâneo. Uma "recepção imprudente ou audaciosa poderia, com efeito, confundir as encenações, os travestismos, as máscaras e túnicas pretas, os jogos de personagens, os jogos de formas e de luzes: a distância poderia não ser evidente". Isso não deve surpreender, uma vez que pode ser explicado pelo princípio da mimese. Esta é dupla. Na arte pode haver mimese de situações violentas. Pode haver mimese em fotografias amadoras, que se inspiram em imagens midiáticas - lúdicas e destituídas de toda crítica. A existência desses dois tipos de mimese, a ambiguidade que se instaura entre a mimese de uma encenação e a mimese de uma cena tornam a problemática complexa e embaralham as fronteiras entre real e imaginário, realidade e jogo, corpo e imagem, a ponto de subverter a recepção e os receptores. As mesmas imagens, que os amadores usam de forma acrítica, podem ser exploradas com outros objetivos pelos artistas, que as interrogam e as convertem em "imagens em crise e sob crítica".

As fotografias de Abu Ghraib são expressão de um fenômeno característico da era contemporânea: o progressivo apagamento da distinção entre público e privado. Os ideais da comunicação universal e da aldeia global tiveram como resultado uma mutação do regime do olhar: o indivíduo tende a expor-se cada vez mais, escancarando sua intimidade, mesmo a mais secreta. A Real TV e a internet são os dois produtos mais significativos dessa transformação e, para sua análise, Dominique Baqué propõe as figuras do "obsceno" e do "pornográfico". Tudo é obsceno na Real TV:

Obsceno, o dispositivo fascistoide de vigilância e de controle; obscena, a exposição à curiosidade pública das emoções e dos passatempos, dos prantos e dos insultos; obsceno, o gozo público alimentando-se do cotidiano do outro, justamente porque ele é banal, medíocre, por vezes vulgar, espelho perverso do cotidiano alienado de cada um; obscena, por fim, a imagem que diz e mostra tudo, segundo um regime visual, que não é abusado qualificar de pornográfico. (Baqué, 2002, p. 34)

A internet, por sua vez, pode ser considerada pornográfica por instrumentalizar o outro, do mesmo modo que a Real TV, por encenar o mesmo tipo de exibição, por submeter os desejos e os (supostos) gozos a uma idêntica pulsão visual. Graças a ela, estabelece-se uma nova relação com o corpo. Abstraído do mesmo modo que a carne, o corpo tende a desaparecer; cede lugar a uma sexualidade virtual, que põe fim a toda relação intersubjetiva direta. O sexo cibernético desnatura a carne, promovendo um erotismo sem corpo. Na tela, o sexo transforma-se em texto, negando radicalmente a alteridade e provocando a morte de certa cultura urbana feita de sedução e de reveses, de caçadas eróticas e de fulgurâncias transgressivas.

A análise de duas obras paradigmáticas permitirá perceber como a arte contemporânea lida com o obsceno, o pornográfico e a abjeção. Andres Serrano realiza uma experiência radical com a série fotográfica Uma história do sexo (1996). Levantamento metódico de todas as figuras possíveis da encenação pornográfica - sadomasoquismo, zoofilia, ondinisme, bondage, fist-fucking, dentre outros -, o conjunto é considerado por Baqué (2002, pp. 49-50) um produto da "perversidade plástica" de Serrano. A autora usa essa definição em virtude do duplo registro mobilizado por ele: uma "imagem-choque", alicerçada na exibição absoluta, é associada a procedimentos plásticos que evocam o academismo pictórico mais forçado e mais enfático.

Os aspectos que mais incomodam Baqué (2002, p. 53) - a paradoxal assepsia do sexo e a transformação da pornografia em eficácia decorativa - são vistos, ao contrário, por Paul Ardenne (2001, pp. 253-254) como uma busca de neutralização do sensível. A frieza do tratamento fotográfico, a rigidez das poses e a falta de erotismo das imagens, longe de titilarem o desejo do espectador, acabam por extingui-lo. O que as fotografias dão a ver não é mais sexo, e sim "geometria, estética purista, ordenação de figuras que banem todo desejo, que veem o dionisíaco se transformar em apolíneo". Esse dionisíaco criogênico tem como ponto de chegada uma "imagem construída", que não solicita os sentidos do espectador, como faria uma representação pornográfica.

Se o tratamento frio que Serrano dá a suas imagens as afasta do domínio do pornográfico, embora elas confrontem o espectador com uma sexualidade nada conformista, Cindy Sherman havia proposto um caminho inverso com os seres disformes de Imagens sexuais (1992), caracterizadas pela busca sistemática do excesso. Lançando mão de manequins anatomicamente detalhados e de fragmentos corporais divulgados em catálogos médicos, a artista constrói bonecos híbridos, monstruosos e dessublimados, que ridicularizam a pornografia com um (aparente) paradoxo: a objetivação de uma sexualidade claramente artificial.

O estatuto de veracidade que a sociedade outorga à imagem fotográfica é a mola propulsora das construções da artista, "perversa doutora Frankenstein, que materializa num suporte fotossensível obscuras fantasias e temores inquietantes" (Ramírez, 2003, p. 241). De acordo com uma anotação datada de 2 de fevereiro de 1992, a série não deveria focalizar o sexo em si como "elemento de choque. O choque (ou terror) deveria provir daquilo que os elementos sexuais realmente representam - morte, poder, agressão, beleza, tristeza etc.". É muito fácil fazer uma "imagem chocante baseada apenas nas aparências ou revelações dos órgãos sexuais (especialmente aqueles órgãos). A dificuldade está em fazer imagens pungentes, além de explícitas" (Sherman, 1997, p. 164).

Pungentes e explícitas são, de fato, todas as imagens do conjunto. Sem título 250 parece condensar todos os atributos que Sherman pretende infundir em suas composições. Uma velha, dotada de frágeis braços, está deitada, de maneira convidativa, num leito forrado de cabelos, como que para lembrar a provocação sexual simbolizada pela cabeleira feminina. Exibe, com despudor, seios intumescidos, um ventre grávido mal e mal encaixado em cima de quadris com pernas amputadas e uma vulva vermelha, aberta e penetrada por dois chouriços, na qual Baqué (2002, p. 155) detecta uma alusão a um órgão de penetração e de defecação.

A problemática da androginia perpassa a série, como demons-tram Sem título 261 - representação de um tronco híbrido e mutilado, dotado de atributos femininos e de uma cabeça masculina - e, sobretudo, Sem título 263. Dois troncos amputados exibem simultaneamente atributos masculinos - uma profusão de pelos e um pênis preso num cockring, que pode remeter ao erotismo gay (Baqué, 2002, p. 157) - e femininos - uma vulva com um monte pubiano peludo, de cujo interior sai o fio de um tampão higiênico. A encenação abjeta imaginada por Sherman tinge-se de ironia quando se atenta para o fundo da composição, constituído de sedas de diferentes cores, e para o laço decorado e caprichosamente atado, que serve de elemento de ligação entre os dois registros híbridos. A presença das duas cabeças cortadas reforça uma das questões que está na base de Imagens sexuais: o olhar lançado pelo homem sobre o corpo feminino e, particularmente, sobre determinados fragmentos. A posição da cabeça à direita não deixa dúvidas sobre a direção do olhar: embora grotesca, é a porção feminina que se apresenta como corpo do desejo.

Sherman tem razão quando coloca a série além da mera representação da sexualidade. Imagens sexuais lida, ao mesmo tempo, com os conceitos de castração, fragmentação, decomposição e finitude da existência humana, com uma interrogação sobre si mesmo e sobre o outro, e com a desconstrução dos mecanismos que regem a pornografia.

Uma vez que os exemplos dados são de natureza fotográfica, parece inegável que a relação entre imagem técnica e abjeção é bem mais ampla do que se poderia supor à primeira vista. Um elemento, entretanto, serve de traço de união entre as várias possibilidades analisadas: o corpo humano como objeto traumático, cujos usos e abusos podem ser reportados a determinadas modalidades de discurso e a mecanismos de controle, que é necessário analisar a fim de compreender como ele se converteu, ao longo do século 20 e nos albores do século 21, num espaço privilegiado de conflitos.

Tais conflitos não deixam de estar enraizados numa vontade explícita de exibicionismo, que faz com que os torturadores de Abu Ghraib, por exemplo, escancarem suas práticas abusivas, sem ter plena consciência das consequências de seus atos. A reação do governo e da imprensa norte-americana à divulgação das fotos, sublinhando as taras de que os envolvidos seriam portadores a fim de confirmar a solidez dos valores nacionais, é uma demonstração cabal de que o episódio trouxe a público uma ação política que deveria ter permanecido secreta. Sem querer, os militares de Abu Ghraib acabaram por desmascarar a verdadeira face do governo norte-americano em sua cruzada contra o Mal: não era muito diferente do regime de Saddam Hussein, pois praticava como este a tortura e o terrorismo de Estado (Birman, 2009, pp. 149-151).

No plano dos costumes, as imagens cruas de Serrano e Sherman despertam um confronto com as condições de visualização de A origem do mundo (1866), de Gustave Courbet, antes de sua entronização no Museu d'Orsay (junho de 1995). Enquanto as fotos dos dois artistas norte-americanos não deixam de ter certos paralelos com a "obscenidade doméstica" das imagens pornográficas de amadores, os quais exibem suas preferências sexuais para possíveis intercâmbios (Fleischer, 2000, pp. 55-58), o quadro de Courbet foi, ao contrário, objeto de práticas de gozo secreto. Encomendada pelo diplomata turco Khalil-Bey, a obra estava instalada em seu gabinete de toalete escondida atrás de um pequeno véu verde. Adquirida, em 1910, pelo barão húngaro Ferenc Hatvany, era ocultada por outro quadro de Courbet, O castelo de Blonay (c. 1875). O terceiro proprietário, o psicanalista Jacques Lacan, que comprou o quadro em 1955, usou o mesmo dispositivo deslizante. Encomendou, para tanto, um painel-máscara ao cunhado André Masson, que executou uma versão surrealista da obra, intitulada Terra erótica (1955). O desenho de um nu estilizado deitado na grama, que desempenha também o papel de paisagem, é considerado por Bernard Teyssèdre (1996 pp. 193-195) mais "obsceno" que o original, mas não tão erótico. Aparentemente, os poucos visitantes que tinham acesso ao duplo quadro viam quase a mesma coisa. Mas havia uma diferença: acionado o mecanismo que ocultava o original, ficava clara a diferença entre arte (Masson) e realidade (Courbet).

O caso das quatro imagens de Auschwitz convoca outro tipo de reflexão, pois em seu bojo está a problemática de um em-bate entre um desejo de desvelamento visual e uma obstinada recusa do ato de ver, que, não raro, tangencia o segredo. Em nome de uma visão restritiva do extermínio nazista, cujas raízes estão no filme Shoah (1985), de Claude Lanzmann, Pagnoux e Wajcman negam qualquer possibilidade não só de representação, mas também de apresentação visual de um acontecimento caracterizado, a seu ver, pela ausência de vestígios. Os dois autores, com diferentes ênfases, manifestam a ideia de que a ação de testemunhar é exclusiva da palavra. A "palavra absoluta" de Pagnoux (2001, p. 95) transforma-se com Wajcman (2001, p. 55) na dupla pessoa/palavra, isto é, na visão das "testemunhas no ato atual de lembrar, sobre cujos rostos as lembranças passam como numa tela de cinema, em cujos olhos se discerne o horror que viram".

É nos rostos e nas falas dos sobreviventes que o autor localiza o testemunho mais essencial do que foi feito pelos nazistas para dissimular as próprias ações. Único "lugar de memória", as testemunhas entrevistadas por Lanzmann evidenciam que "o irrepresentável faz parte do próprio ser da Shoah. Ele está inscrito no cerne do dispositivo industrial do extermínio. A Shoah não é apenas uma morte programada e sistemática e o esquecimento programático e sistemático dessa morte, mas também a produção de um Irrepresentável" (Wajcman, 2012, p. 285). É essa ideia de Irrepresentável que leva Wajcman a negar a importância das fotografias do Sonderkommando, criando um enlace perigoso com o objetivo nazista de não ter testemunhas, de tornar as vítimas "invisíveis" aos outros e a si mesmas. Ao contrário do que ele afirma, é possível dizer que as imagens põem em xeque "a política do segredo absoluto", preconizada pelo nazismo, e a manipulação de eventuais testemunhas exteriores. Levadas na devida conta, tais imagens não colocam uma cunha, pequena embora, naquela "máquina de morte concebida de tal modo que as vítimas não seriam nem mesmo testemunhas da própria morte"? (Wajcman, 2012, pp. 288-289).

A opção de Wajcman pelo segredo visual, que parece mimetizar o segredo programático do nazismo, será melhor compreendida, ainda que não justificada, se forem analisadas suas considerações sobre os monumentos de Jochen Gerz, que tornam visível a ausência de maneira peculiar. Ao caráter afirmativo da imagem, o psicanalista contrapõe a estratégia adotada pelo artista alemão no Monumento contra o fascismo (Harburg, 1986) e em 2146 pedras - Monumento contra o racismo (Sarrebrück, 1990-1993). A ideia da perda, central nas ações de Gerz, explicita-se em "monumentos invisíveis". O primeiro, realizado em colaboração com Esther Shalev-Gerz, consiste numa coluna de aço de doze metros, na qual os transeuntes gravavam os próprios nomes, enterrada progressivamente à razão de duzentos metros por ano até desaparecer em 1993. Esse obelisco ao contrário (Danziger, 2010, pp. 103-104) é apresentado por Wacjman (2012, p. 225) como uma "espécie de pedra tumular", já que apenas seu cume achatado é visível no nível da rua. A ideia de que nenhum monumento pode responder pela memória individual é radicalizada na obra seguinte, que leva ao extremo o trabalho de ocultamento. Os oito mil paralelepípedos da alameda que leva ao castelo de Sarrebrück, antiga sede da Gestapo, são arrancados aleatoriamente para inscrever neles os nomes de 2146 cemitérios judaicos anteriores a 1939 e a data da intervenção. A única marca visível do trabalho de Gerz é a renomeação do lugar como Praça do Monumento Invisível.

Por mais pertinentes que sejam as intervenções conceituais de Gerz e a opção de Lanzmann de não utilizar imagens documentais, trata-se de estratégias possíveis, que não desqualificam outras propostas que lidam com a problemática da memória. Como lembra Giorgio Agamben, dizer que Auschwitz é "indizível" ou "incompreensível" equivale a "adorá-lo em silêncio como se faz com um deus". Os defensores de sua unicidade teriam razão se afirmassem que a testemunha deve, de algum modo, submeter cada palavra à prova de "uma impossibilidade de dizer". A junção de único e indizível produz um efeito oposto ao desejado: transforma Auschwitz numa "realidade totalmente separada da linguagem", repetindo, sem querer, o gesto dos nazistas e tornando os defensores dessa postura "secretamente solidários do arcanum imperii" (apud Didi-Huberman, 2003, p. 39).

A quem interessa o segredo ou sua falta? O que é abjeto numa sociedade em que as imagens onipresentes tanto ocultam quanto lançam novas luzes sobre a realidade? As respostas não são simples nem unívocas, como se viu por essas breves anotações, que apontam para a necessidade de problematizar posturas ideológicas e ideias naturalizadas a fim de compreender o jogo presença/ ausência que está no centro de toda imagem (visual ou mental).

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
ANNATERESA FABRIS
Rua França Pinto, 786
04016-003 – São Paulo – SP
tel.: 11 5573-2718
neapolis@ig.com.br

Recebido 01.05.2015
Aceito 16.05.2015

 

 

1. Num texto posterior, Didi-Huberman (2011, pp. 55-56) usará um argumento de natureza religiosa para criticar o discurso "metafísico" sobre a Shoah. Para os defensores dessa vertente, a câmara de gás representa "[...] o cerne de um drama e de um mistério: o lugar por excelência da ausência de testemunha, análogo, se quisermos, por sua invisibilidade radical, ao centro vazio do Santo dos Santos". A essa imagem, que evoca um sacrifício expiatório realizado na sala do Tabernáculo, à qual só tem acesso o sacerdote, o autor contrapõe a natureza concreta da câmara de gás como "lugar de trabalho". Por isso, considera que o gesto do fotógrafo anônimo, analisado no catálogo de 2001, foi "simples" e "heroico". Ao postar-se na câmara de gás, esse prisioneiro transformou, por alguns segundos, seu "trabalho escravo" num "verdadeiro trabalho de resistência", opondo o olhar à morte.
2. Nas imagens de Abu Ghraib, Sontag (2008, pp. 146-147) detecta "uma confluência mais vasta de tortura e pornografia: uma jovem conduzindo um homem nu por uma coleira é uma imagem clássica da dominadora. E nos perguntamos em que medida as torturas sexuais infligidas aos presos em Abu Ghraib se inspiraram no vasto repertório de imagens pornográficas disponível na internet - imagens que pessoas comuns tentaram emular, enviando elas mesmas os seus arquivos de computador".

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