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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.60 São Paulo jul./dez. 2015

 

EM PAUTA | SEGREDO

 

Alguns segredos da escuta musical

 

Some secrets about listening to music

 

 

Yara Borges Caznok

Professora do Departamento de Música e do Programa de Pós-graduação em Música do Instituto de Artes da UNESP. Mestre em Psicologia da Educação (PUC-SP) e doutora em Psicologia Social (USP), concentra suas atividades docentes e pesquisas nas áreas de Harmonia, Análise, Escuta e Educação Musical

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RESUMO

A escuta musical põe em evidência as dinâmicas perceptivas que, no cotidiano, caracterizam algumas das maneiras mais criativas de escutar o mundo. Oposta à decifração e à estabilização de sentidos, a escuta musical propõe a aceitação e o convívio com a inerente opacidade de um discurso, com os enigmas que se encerram em uma obra e com a ideia de que ouvir é interpretar. Nesse sentido, outros profissionais da escuta – psicanalistas, especialmente – podem se interessar por alguns dos aspectos da escuta musical descritos neste artigo. Peças de Machaut, Bach, Schumann, entre outros, são tomadas como exemplos de propostas cuja estrutura nasce da ideia de um segredo.

Palavras-chave: Escuta. Interpretação. Escuta musical. Enigmas musicais.


SUMMARY

Listening to music highlights dynamics of perception that, in everyday life, characterize some of the most creative ways to listen to the world. Opposite from the deciphering and establishing of meanings, listening to music brings about a proximity and an acceptance of the inherent opacity of discourse, the enigmas which terminate in a work and the idea that to listen is to interpret. Therefore, other professionals of listening – psychoanalysts, especially – can be interested in some aspects of listening to music described in this article. Pieces by Machaut, Bach and Schumann, among others are used as examples of plans whose structures arise from the idea of secret.

Keywords: Interpretation. Listening to music. Musical enigmas.


 

 

O ouvido não tem pálpebras e a escuta não tem presença física, sabemos disso desde sempre. Escutar é um ato discreto, realiza-se no silêncio da interioridade e não se mostra escutando.

Sabemos que não escutamos apenas com os ouvidos, a audição reveste a totalidade de nosso corpo sensível e ouvimos, também, dentro do silêncio, por meio de sinais e gestos mudos. Os indícios que denunciam capturas auditivas manifestam-se por mínimos sinais físicos, pela expressão do olhar e do corpo, pela capacidade de escutar o outro e de "escutar a escuta do outro" - o que não é prerrogativa dos músicos. Demais profissionais da escuta, em especial os psicanalistas, desenvolvem uma acurada sensibilidade para ouvir o que não é expresso por sons e palavras, mas que muitas vezes grita em busca de uma resposta.

Sem que o outro perceba, tornamo-nos participantes, às vezes, de conversas para as quais não fomos chamados ou ausentamo-nos, involuntariamente, de um concerto ou de um discurso. Não controlamos a entrada dos sons que nos chegam, nem garantimos nossa concentração auditiva no que escolhemos ouvir. A intermitência - e não a continuidade - é o regente deste jogo de presença/ausência perceptiva.

Os objetos da escuta - o som e o silêncio que geram sentidos - contribuem para essa dinâmica auditiva. Sua matéria é "abstrata", seu suporte é o tempo e, ao se apresentar como fenômeno sonoro - como existência -, sua extinção já começa a ser engendrada. A perenidade de um evento sonoro na memória - lugar em que os sons têm uma proximidade ilusória da ideia de captura e de permanência temporal - é variável entre os sujeitos ouvintes e seu efeito produz respostas individualizadas, únicas e não recorrentes.

Estas condições e qualidades do perceber o mundo por meio dos sons - invisibilidade, fluidez, intangibilidade e instabilidade - foram e são consideradas, por aqueles que almejam a clareza e a estabilidade perceptivas, como fragilidades, e, por isso, talvez, a primazia da visão como fonte mais precisa de conhecimento tenha se instalado em nossa cultura contemporânea. A brincadeira do "telefone sem fio", por exemplo, é emblemática dessa condição: a mensagem inicial, quando passada por vários ouvintes/falantes, vai se transformando a tal ponto que termina sendo algo diferente. Estão aqui explicitadas - e amplificadas - duas características dos comportamentos auditivos cotidianos: cada um entende e dá sentido ao que consegue captar, ou seja, interpreta e passa adiante sua versão que inclui, inevitavelmente,"pedaços" de sua vivência e de sua experiência, "contaminando" a mensagem com sua pessoalidade. Para os que procuram a "verdadeira mensagem" ou o "verdadeiro sentido da obra", tomando-os como sinônimo de univocidade, a escuta estaria, realmente, destinada a ser banida dessa concepção de conhecimento...

À escuta e ao mundo sonoro ficou designada, assim, uma função majoritária de entretenimento e de conhecimento instável, portanto, não confiável, que necessita de um suporte concreto até mesmo para atestar sua existência. A escrita e, mais recentemente, as tecnologias de gravação e de reprodução, materializam os contornos sonoros e definem minimamente uma estabilidade tanto à sua apreensão como ao fenômeno ouvido. Antes do século 11, quando o monge Guido D'Arezzo definiu os princípios da escrita musical por meio de linhas (pauta) e claves que organizam as alturas (notas), o repertório sofria variações e acréscimos tais como no jogo do "telefone sem fio", dependendo da memória dos cantores, e estava submetido à situação de "quem conta um conto, aumenta um ponto". O grande passo dado pela escrita musical inaugurou a possibilidade de lidarmos com objetos musicais que mantêm suas identidades e particularidades até certo ponto invariáveis, que se inscrevem em nossa memória como algo delimitado e que, a cada repetição, resistem e confirmam-se como individualidades iguais a si mesmas, aceitando pequenas "contaminações" interpretativas advindas de contexto histórico ou de posturas pessoais.

No âmbito da música erudita ocidental, a história de seu desenvolvimento em direção à sua constituição como linguagem e como conhecimento confiável revela que o desejo pelo unívoco e pela precisão foi um caminho assumido sem volta, e a música emprestou da ciência seu procedimento maior: a mensuração. Nossa escala de 12 sons, por exemplo, foi extraída de uma multiplicidade de sons quase indefiníveis (os microtons) e construída a partir de uma medida estável; nossos instrumentos musicais foram conduzidos a uma homogeneidade de construção e, portanto, de timbre, de afinação e de volume sonoro; a escrita musical evoluiu em direção à estabilização relativa de dois parâmetros - altura e duração - considerados, durante muitos séculos, os principais parâmetros construtores da linguagem musical.

Apesar dessa grande transformação que envolveu obras, compositores, ouvintes e executantes, a opacidade que envolve a escuta e a interpretação, e, ao mesmo tempo, as aberturas para diferentes caminhos de compreensão, não foi extinta. Resiste, em cada nova audição de uma mesma obra, sua natureza intangível e oscilante - o mistério hermenêutico que habita o mundo dos sons. Essa é uma condição que qualquer músico ou ouvinte iniciante já se dá conta: não se consegue, mesmo desejando, aprisionar ou congelar uma interpretação/audição e não se pode concebê-la "pura", sem marcas pessoais que se acumulam, que dialogam e que se transformam ao longo da história. Se isso fosse possível, não haveria razão para tantos intérpretes dedicarem suas vidas a obras já realizadas e gravadas pelos "maiores mestres de todos os tempos" e nós não precisaríamos reouvi-las.

Essas qualidades - e não defeitos ou insuficiências - foram realçadas por algumas práticas que sinalizaram seu valor em alguns momentos de nossa história ocidental, dando-lhe um status de saber, uma qualidade especial de saber, especialmente aquele cujas verdades não podem ser trazidas à luz e devem ser vividas como segredos que somente os iniciados conseguem ouvi-las e compartilhá-las.

A escola pitagórica, por exemplo, no século 6 a.C., em uma de suas estratégias de ensinamento, praticava a escuta acusmática: os discípulos ouviam o mestre sem vê-lo, pois estavam separados por uma cortina. O objetivo prático era apurar ao máximo a escuta dos sons, favorecendo a concentração e a memória a partir de uma fonte não visível (a voz do mestre), sem a interferência de outros canais perceptivos. Os acusmáticos (akousmatikoi), escutadores, participavam dos conhecimentos, dos princípios morais e filosóficos, das crenças, valores, ritos e prescrições da irmandade, experimentando a escuta como portadora de verdade e de credibilidade, legitimavam o significado maior dessa modalidade de acesso ao conhecimento "às escuras". Longe de ser um defeito, a fluidez e a imaterialidade da escuta eram um meio, um caminho para se aceder ao desconhecido, para indagar o cosmos e o mistério do mundo e para dele fazer parte.

Em termos de repertório musical ocidental, há poéticas que exploram esse viés secreto e escondido da escuta e se colocam como guardiãs de uma forma de estar no mundo que insiste em não esvaziar o mistério, o invisível e o intangível. Construções musicais que encerram segredos, exigindo uma espécie de "rito de iniciação" para o desvelamento - sempre parcial - de seu enigma, para o acesso às "mensagens ocultas" encerradas no texto musical que são frequentemente encontradas desde o período do Renascimento. Estruturas axiais espelhadas (quiasmáticas), palíndromos1, cânones infinitos, uso de gematria, de proporção áurea, de numerologia, entre outros, são alguns dos procedimentos que nos convidam a essa fruição.

Guillaume de Machaut (ca 1300 - 1377), poeta e compositor francês que impulsionou a polifonia, escreveu um rondeau cujo título é um enigma e, ao mesmo tempo, a chave para sua compreensão: Ma fin est mon commencement et mon commencement ma fin. A ordenação circular tradicional de um rondeau é desenvolvida por meio do retorno de uma seção (refrão ou estribilho), e o que encontramos nesta engenhosa peça de Machaut é o seguinte: A B a A b c A B.

A - Ma fin est mon commencement Meu fim é meu começo
B - Et mon commencement ma fin E meu começo, meu fim
a - Est teneure vraiement E verdadeiramente sustenta
A - Ma fin est mon commencement Meu fim é meu começo
b - Mes tiers chans trois fois seulements Minha terceira voz canta apenas três vezes
c - Se retrograde et einsi fin. Retrograda-se e assim finaliza.
A - Ma fin est mon commencement Meu fim é meu começo
B - Et mon commencement ma fin. E meu começo, meu fim. 

Em termos musicais, três vozes cantam 40 compassos, nitidamente divididos em duas metades iguais. Entre os compassos 20 e 21, encontra-se o eixo que articula as duas partes: a partir do compasso 21, início da segunda parte do rondeau, a voz mais grave (pauta inferior) começa a cantar retrogradando suas notas, ou seja, lendo e cantando as notas de trás para frente, fazendo o caminho de volta para o início, em um palíndromo perfeito. As duas outras vozes também se espelham, só que trocadas: a intermediária canta retrogradando as notas da voz superior (pauta mais acima) e a voz superior retrograda a intermediária.

 

 

Nos excertos musicais estão apenas os compassos iniciais de 1 a 5, e finais, de 36 a 40, e neles pode-se ver que o compasso 1 é o espelho do 40, o 2 do 39 e assim por diante.

 

 

Esta estrutura axial espelhada - quiasmática - encontra-se com frequência na obra de Johann Sebastian Bach (1685-1750), especialmente por razões teológicas. Um quiasma é uma disposição formal e semântica que dispõe em ordem cruzada e retrogradada os elementos que a compõem. Do grego khiasmos, remete à disposição em cruz: khi (legra grega em forma de X), letra inicial de Cristo -. Sua Cantata Christlag in Todesbanden (Cristo jazia nos laços da morte), BWV 4, possui sete partes que se correspondem de forma simétrica, espelhada:

 


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O Versus IV, cantado por um coro a quatro vozes, descreve o combate entre a vida e a morte. Vivido, simbolicamente, como sendo o tronco da cruz que, por sua vez, reúne os quatro elementos (ar, terra, água e fogo), os pontos cardeais, entre outros significados, é ladeado pelas partes III e V, que se correspondem, pois são solos de vozes masculinas. As partes II e VI (duos) e I e VII (coros a quatro vozes) completam o espelhamento dos braços da cruz e se dobram em direção ao centro, como em um tríptico renascentista, fechando a estrutura temporal sobre si mesma e sugerindo a ideia de eternidade.

Outra peça cuja disposição formal replica essa estrutura cruciforme é o Moteto Jesu, meine Freude (Jesus, minha alegria), BWV 227. Subdividida em 11 partes, a obra traz, em suas seções pares, a Epístola de Paulo aos Romanos (capítulo 8, versículos 1-2, 9-11), alternada com seis estrofes de um hino de Johann Franck, de 1635, que dá nome ao Moteto. A um desenvolvimento temporal linear teleológico e diversificado - os textos seguem suas ordenações originais em seções que contrastam seu caráter e variam o número de vozes (3 a 5) -, Bach sobrepõe dois outros fluxos: um circular e um axial. A circularidade é trazida pela reapresentação da melodia coral Jesu, meine Freude, em estilo mais simples nas seções I, III, VII e XI, e em variações e derivações nas seções V e IX. A vivência axial é construída pela correspondência entre as seções V e VII, IV e VIII, III e IX, II e X, e, finalmente, I e XI, cujos textos contêm a declaração Jesu, meine Freude na primeira e na última frase, respectivamente. Um fugato a cinco vozes (o único) chama a atenção para a mensagem-chave da obra, localizada, justamente, no centro, seção VI: "Vós não estais na carne, mas no espírito".

Algumas estruturações formais podem estar presentes de uma forma muito "silenciosa", passando despercebidas e evocando a ideia da antiguidade grega de apreciação da justa medida e da harmonia entre as partes que compõem uma totalidade. Uma delas é a aplicação da proporção áurea ao discurso musical, ou seja, ao desenrolar temporal. Articulando e conduzindo nossa expectativa para um evento estrutural, tal como um ponto culminante, o corte áureo mantém o equilíbrio entre as seções e intensifica a direcionalidade teleológica do discurso tonal. No Tema com Variações em Mi menor, de Robert Schumann (1810-56), encontramos, no compasso 4, a seção áurea marcando a chegada no clímax da melodia que constitui o tema. Em um todo que compreende 24 tempos (quatro tempos por compasso), a posição áurea do acorde-clímax se localiza entre os tempos 15º e 16º.

 

 

Na continuidade da peça, seguem-se cinco variações, todas com o mesmo tamanho do Tema (seis compassos) e mais uma Coda (finalização) de quatro compassos, chegando a um total de 40. No compasso 25 - seção áurea da peça -, Schumann interrompe o fluxo rítmico que vinha desenvolvendo desde o início para apresentar a Variação 3, na contrastante tonalidade homônima - Mi maior - em uma figuração rítmica que retoma o caráter do Tema, dando-nos a sensação de estarmos recuperando a energia e o crescimento do ponto inicial, mas não em um círculo, e sim em uma espiral ascendente.

 

 

Velado, secreto e muito silencioso, é o uso da gematria, ou seja, a antiquíssima tradição mística de relacionar números às letras do alfabeto e, por meio da soma dos valores de uma palavra ou nome próprio, chegar a um número que contém e revela a essência da coisa ou da pessoa (Tatlow, 1991). Em música, um dos mais conhecidos e desenvolvidos é o número 14, que personifica Johann Sebastian Bach: B (2) + A (1) + C (3) + H (8) = 14. Usado pelo compositor à exaustão, o número 14 é como que sua assinatura musical, sua presença que soa, entranhada nas notas, nos compassos e nas seções. Apenas como exemplo, Tema da Fuga 1, de O Cravo bem temperado, volume I, BWV 846, tem 14 notas:

 

 

A ideia pitagórica de que o número vibra e que, portanto, ainda que inaudível, o número tem uma realidade sonora atuante, inspirou muitos compositores, que fizeram da numerologia uma fonte de inspirações e uma aliada na expressão de suas ideias. Arnold Schoenberg (1875-1951), um dos mais importantes criadores e pensadores da música erudita ocidental, compôs, em 1912, Pierrot Lunaire, opus 21 - Dreimal sieben Gedichte aus Albert Girauds Werk Pierrot Lunaire (Três vezes sete poemas do Pierrot Lunaire de Albert Giraud). Trata-se de uma série de canções para uma voz feminina que não "canta" de acordo com a tradição, mas que oscila entre o canto e a declamação (o Sprechgesang). A obra está articulada, como o subtítulo explicita, em três partes, cada uma com sete canções e o número sete tem uma presença marcante em vários aspectos de Pierrot: são sete músicos no palco (cinco instrumentistas, a cantora e o regente), a figuração melódica do piano que se torna recorrente na primeira peça (Mondestrunken) tem sete notas, o número da opus 21 replica o subtítulo da obra (três vezes sete poemas) e cada agrupamento de sete poemas tem, em seu centro (canções 4, 11 e 18), um tratamento composicional especial que cumpre a função de aglutinar as forças poéticas em torno de si, tornando-se um núcleo de significados.

Homenagens e mensagens amorosas também foram secretamente cifradas e "enviadas" através de composições musicais. Por meio da correspondência das letras do alfabeto às notas musicais cuja grafia, na cultura anglo-germânica, é alfabética, iniciais de nomes próprios em combinações "criptografadas" tornaram-se temas ou figurações musicais importantes. O tema de Bach - Si bemol, Lá, Dó, Si - é um dos mais famosos e prestigiados de todos. Além do próprio compositor, Beethoven, Liszt, Schoenberg, entre outros, o usaram como citação e como ideia geradora de peças.

Schumann estruturou o Carnaval, opus 9, conjunto de 22 peças para piano, a partir de uma configuração musical de quatro notas: Lá, Mi bemol, Dó, Si, respectivamente: A, Es, C, H. Uma variação dessa ideia realça as notas Lá bemol (As), Do (C), Si (H) e revela o nome da cidade de Asch, onde a namorada de Schumann, Ernestine von Fricken, nasceu, unindo-a a seu próprio nome: Schumann.

 

 

Compassos iniciais das peças nº 3, Arlequim e nº 4, Valse Noble, de o Carnaval opus 9, de Schumann.

Nessa mesma coleção, Schumann escreveu uma peça denominada, emblematicamente, de Sphinxes, com três seções, cada uma com apenas um compasso, nos quais encontramos apenas as combinações de notas SCHA, AsCH e ASCH.

 


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Uma outra história de amor foi recentemente descoberta por três grandes musicólogos americanos2 que, na década de 1970, confrontando algumas cartas do compositor com análise musical, chegaram à conclusão de que a Suíte Lírica (1926), do compositor austríaco Alban Berg (1885-1935), encerra em sua estrutura não apenas nomes, mas toda uma história de amor proibido entre ele e Hannah Fuchs (Perle, 2001). Essa Suíte tem uma estrutura baseada nas iniciais dos dois amantes: H. F. e A. B., ou seja, nas notas Si, Fá, Lá e Si bemol. A nota Dó (C) é repetida para fazer referência à irmã de Hannah, que se chamava Dorotea, e cujo apelido era Dodo. Ao lado desta "assinatura amorosa e musical", Berg organizou a quantidade de compassos nas seções e nos Movimentos, e também as marcações de metrônomo a partir de múltiplos dos números 23 e 10. Leitor, pesquisador e adepto das ideias numerológicas sobre os biorritmos, Berg acreditava que seu número místico era o 23 e o de Hannah o 10.

Além dos números e da numerologia, uma outra possibilidade de exploração dos mistérios que envolvem a escuta e a execução musical tem, na imagem do labirinto, uma metáfora muito feliz. Algumas peças propõem essa experiência já a partir de seu título. Pietro Locatelli, compositor barroco que, em sua obra L'artedel violino, compôs 12 concertos para violino e orquestra, nomeia o último Concerto, em Ré maior, de Il Laberinto Armonico, facilus aditus, difficilis exitus (O labirinto harmônico: fácil entrar, difícil sair). Marin Marais, o grande compositor para viola da gamba do Palácio de Versalhes no final do século 17 e início do 18, compôs uma peça instrumental denominada O labirinto, na qual a ideia de um homem perdido em caminhos emaranhados é sugerida por meio de desenvolvimentos harmônicos rápidos e inusitados, com muitas dissonâncias. Finalmente a saída é encontrada e uma suave chaconne encerra a peça. O Pequeno labirinto harmônico, peça para órgão atribuída a J. S. Bach (BWV 591) e, às vezes, a Johann David Heinichen, é explícita em suas três partes: Introitus, Centrum e Exitus. Na Entrada, a assertiva tonalidade de Dó maior vai sendo gradualmente afastada de nosso ouvido que, como um viajante, vai percorrendo caminhos tortuosos e estranhos, até chegar ao centro do labirinto. Neste desenvolve-se um procedimento imitativo, um fugato breve que nos leva à saída (Exitus), cuja estrutura harmônica caminha em direção ao reestabelecimento da tonalidade de Dó maior e à quietude.

O sentido do labirinto, com seu traçado intrincado, visa permitir o acesso a um núcleo de verdade ou de conhecimento guardado e escondido somente àqueles que, após terem percorrido seus complicados caminhos e suportado suas inquietações, são dignos de dela se aproximarem (D'Agostino, 2006). Dessa forma, o acesso aos não iniciados ou não qualificados está proibido e é desestimulado. Em diferentes concepções místicas, o labirinto é uma metáfora para a alma que, em seus indefinidos e múltiplos estados, percorre um difícil caminho, como em uma viagem iniciática.

Em termos de vivência auditiva, lembremo-nos de que a região do ouvido interno, em formato de caracol, ligada à percepção do posicionamento e do equilíbrio do corpo, se chama labirinto, e que, emblematicamente, podemos entender a escuta como um percurso pelos caminhos de Dédalo. Ser ou não iniciado não nos impedirá de participar de mundos sonoros cujas possibilidades de leitura e de interpretação são ilimitadas.

Inicia-se essa viagem despojando-se de certezas e guardando apenas uma expectativa: a experiência será única, sempre infinita em seus desdobramentos e direções. Paciência, humildade e aceitação da angústia de "não saber tudo" e de não achar que vai "resolver" o significado da obra são posturas que acompanham o viajante/ouvinte. O abandono da audição segura, catalogadora, calculadora e resolutiva, que "enxerga na claridade", reconhece, prevê e localiza os conteúdos de antemão imaginados, cede lugar a uma audição de procura, às escuras, de uma audição errante, andarilha, que percorre, se espalha em várias direções, que recolhe e configura pequenas porções de sentido e se realiza no e como percurso. Não importa tanto a chegada e o encontro, o mais importante não é o quê será encontrado, mas sim o desenvolvimento da capacidade de buscar e de encontrar. Sem essa disponibilidade interna, fica difícil viver uma escuta ou uma interpretação criativa e existencialmente significativa. Quando atingimos esse estado de escuta, um silêncio se faz e aí, talvez, nos aproximemos de Olavo Bilac: "Ora (direis) ouvir estrelas! Certo perdeste o senso!".

 

REFERÊNCIAS

D'Agostino, M. H. S. (2006). Geometrias simbólicas da arquitetura. Espaço e ordem visual do Renascimento às Luzes. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Perle, G. (2001). Style and Idea in the Lyric Suite of Alban Berg. New York: Pendragon.         [ Links ]

Schumann, R. & Pleasants, H. (2011). Schumann on music: a selection from the writings. New York: Dover.         [ Links ]

Tatlow, R. (1991). Bach and the riddle of the number alphabet. Cambridge: Cambridge University Press.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
YARA BORGES CAZNOK
Rua Pedro de Toledo, 964/14
São Paulo - SP
tel.: 11 99236-5737
cazca@uol.com.br

Recebido 04.05.2015
Aceito 09.05.2015

 

 

1. Um palíndromo musical diferencia-se daqueles linguísticos, pois uma melodia, quando retrogradada, adquire outro sentido musical: tem outro ponto culminante e outras posições métricas no compasso, por exemplo.
2. George Perle, Douglass M. Green e Douglas Jarman.

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