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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.60 São Paulo jul./dez. 2015

 

EM PAUTA | SEGREDO

 

Notas sobre a Psicanálise em tempos de algoritmos

 

Notes on Psychoanalysis in times of algorithms

 

 

Enrique Mandelbaum

Psicanalista em formação na SBPSP com pós-doutorado em Literatura Comparada na FFLCH-USP, autor de Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível (Perspectiva, 2003)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Servimo-nos de uma crônica de Clarice Lispector, "Os segredos" (1973), para encontrar uma moldura em cujo interior possamos inaugurar uma reflexão pessoal sobre a clínica psicanalítica na cultura que privilegia a instantaneidade da comunicação eletrônica. E trazemos do texto de Freud, Psicologia das massas e análise do ego (1921), algumas ideias para a nossa reflexão sobre o estado de coisas em nossa contemporaneidade. Vinhetas clínicas, filmes e experiências pessoais oferecem o material para a problematização psicanalítica.

Palavras-chave: Clínica psicanalítica. Internet. Psicologia das massas. Análise do ego. Avatar. Edward Snowden.


SUMMARY

The author uses a chronicle of Clarice Lispector, "Os segredos" [The secrets] (1973) in order to meet a frame inside which he begins a personal reflection on the psychoanalytical clinic in a culture that privileges the instantaneity of the electronic communication. And he brings some ideas from Freud's Mass psychology and the analysis of the ego to his reflection on the state of affairs in our contemporaneity. Clinical vignettes, films and personal experiences offer the material to the psychoanalytical inquiry.

Keywords: Psychoanalytical clinic. Internet. Mass psychology. Analysis of the ego. Avatar. Edward Snowden.


 

 

Vale a pena citar por inteiro uma pequena crônica de Clarice Lispector publicada no Jornal do Brasil no dia 19 de maio de 1973. Chama-se "Os segredos".

O que acontece às vezes com minha ignorância é que ela deixa de ser sentida como uma omissão e se torna quase palpável, assim como a escuridão, a gente às vezes parece que pode ser pegada. Quando é sentida como uma omissão, pode dar uma sensação de mal-estar, uma sensação de não estar a par, enfim de ignorância mesmo. Quando ela se torna quase palpável como a escuridão, ela me ofende. O que ultimamente tem-me ofendido - e é uma ofensa mesmo porque dessa eu não tenho culpa, é uma ignorância que me é imposta - o que tem ultimamente me ofendido é sentir que em vários países há cientistas que mantêm em segredo coisas que revolucionariam meu modo de ver, de viver e de saber. Por que não contam o segredo? Porque precisam dele para criar novas coisas, e porque temem que a revelação cause pânico, por ser precoce ainda.

Então eu me sinto hoje mesmo como se estivesse na Idade Média. Sou roubada de minha própria época. Mas entenderia eu o segredo se me fosse revelado? Há, haveria, tinha de haver um modo de eu me por em contato com ele.

Ao mesmo tempo, estou cheia de esperanças no que o segredo encerra. Estão nos tratando como criança a quem não se assusta com verdades antes do tempo. Mas a criança sente que vem uma verdade por aí, sente como um rumor que não sabe de onde vem. E eu sinto um sussurro que promete. Pelo menos sei que há segredos, que o mundo físico e psíquico seria visto por mim de um modo totalmente novo - se ao menos eu soubesse. E tenho que ficar com a tênue alegria mínima do condicional "se eu soubesse". Mas tenho que ter modéstia com a alegria. Quanto mais tênue é a alegria, mais difícil e mais precioso de captá-la - e mais amado o fio quase invisível de esperança de vir a saber.

Minha intenção não é utilizar a crônica de Clarice como epígrafe. Quero escrever o que se segue no interior do texto de Clarice. Ele me ajudará, senão a esclarecer, a clarear um percurso.

* * *

Tem algo que impressiona no último livro de Melanie Klein (1961), esse longo relato da análise de Richard, que ela levou adiante em 1943 e da qual depreendeu ideias importantes que lhe serviram para compor, em 1945, o texto "O complexo de Édipo à luz das ansiedades arcaicas". Na versão final do longo relato, somos introduzidos a uma situação clínica que se estende por centenas de páginas. E é próprio da escrita de Klein deixar-nos encerrados no mundo interno. Quem não se sentiu sufocar dentro de um texto dela? Mas o incrível é que, à medida que ela nos mantém encerrados no interior da sessão, aos poucos, ao longo das páginas, o mapa da vida interior de Richard passa a se apresentar como uma manifestação de mimesis, um espelhamento do conflito bélico que se desenrola em torno da sala em que Klein e Richard trabalham, na pequena vila de Pitlochry, Escócia, ainda que longe dos bombardeios aéreos que ocorrem quase diariamente em Londres. Richard é um pequeno menino de 11 anos. No entanto, é completamente contemporâneo à época em que vive. Suas ansiedades e fantasias inconscientes ganham expressão na figuração do conflito maior, que se encontrava em andamento. E se Klein se coloca como tarefa auxiliar Richard a atravessar seu conflito edípico a fim de que ele pudesse ganhar uma maior expansão de suas potencialidades, a manifestação de todo esse conflito equipara mimeticamente o corpo da mãe ao mapa da Europa, dentro do qual Richard, seu pai e seu irmão guerreiam como as tropas alemãs e seus aliados contra as tropas britânicas e aliados. Por isso, habita em Richard e salta na sessão ora um Hitler, ora um navio britânico, ora uma derrota como a das tropas aliadas em Creta, ora um avanço vitorioso como o exército russo no Leste. Não é que Richard contenha dentro de si o mundo externo. Mas ser contemporâneo, ainda que este não seja propriamente o tema teorizado por Melanie Klein, é, de acordo com o que nos é apresentado nesse texto, viver nossas ansiedades e conflitos internos em ressonância com o panorama sociohistórico e cultural que nos envolve, de uma maneira tão íntima que uma leitura possível desse livro é concluir que a barbárie que assolou a Europa no período da análise de Richard nada mais é do que a projeção das impossibilidades que acometiam o menino, resultantes dos intensos ataques pulsionais ao seu frágil ego. Tenho para mim que Melanie Klein fez questão de publicar esse relato, seu último trabalho, uma espécie de palavra final, exatamente para deixar transparecer a profunda intimidade que existe entre os processos psíquicos mais arcaicos e a realidade histórica - uma intimidade explorada por Freud ao longo de sua obra, em especial no livro Psicologia das massas e análise do ego. Nesse texto Freud, que não trabalha num horizonte tão fechado quanto o de Klein, faz questão de inaugurar suas reflexões pessoais, logo após ter descrito sua leitura de Le Bon sobre a mente coletiva, pondo em cena sua perspectiva libidinal sobre o funcionamento psíquico. É que a libido ajuda a materializar uma rede de investimentos emocionais que integram e inter-relacionam cada um com o coletivo, e o coletivo com cada um. A libido tem origem na intimidade pulsional, mas se expande, se amplifica, se diversifica, se contorce, se retrai, se multiplica, se dispersa, se distrai na organização coletiva, na mente coletiva, no grupo. Lembro-me de uma cena de um filme, Avatar, que fez muito sucesso há seis anos (2009): um sujeito com dificuldades para andar entra numa câmara tipo sarcófago e, graças a uma bugiganga eletrônica explicada o suficiente para outorgar a veracidade necessária às cenas de ficção que estamos assistindo, passa a viver aventuras incríveis, com uma agilidade corporal impressionante, num outro planeta. Em determinado momento, dá-se a cena que estou lembrando. Trata-se de uma grande árvore cuja ampla copa se expande, ocupando por inteiro a parte superior da tela, e nossa personagem, em companhia de uma moça azul que ele aprendeu a amar nessas terras estranhas, está posicionada sob a copa, no meio de uma densa floresta. De repente, fluxos de luzes que parecem emergir da árvore e conectar tudo e todos na floresta se tornam visíveis, ajudando a materializar a ideia de que tudo depende de tudo e que essa árvore é fonte de toda essa energia que mantém viva a vida nesse planeta. A imagem é tosca, mas própria para tempos ecológicos. Eu a trago em consideração mais por causa do modo como Freud (1976) concebe a ação da libido, que ele diz ser "[...] a energia, considerada como uma magnitude quantitativa (embora na realidade não seja presentemente mensurável) daqueles instintos que têm a ver com tudo o que pode ser abrangido sob o nome 'amor'" (p. 116). A imagem ajuda a materializar a implicação de cada um com o coletivo, como se a mente coletiva fosse representada por essa gigantesca árvore e cada um dos membros como essas folhagens e arbustos que se espalham em volta dela. Mas claro que essa imagem é mais própria de uma figuração de tempos de internet do que do tempo de Psicologia de massas e análise do ego. Cada um de nós, quando liga seu computador e entra na rede, o faz um pouco como esse sujeito entrando num sarcófago eletrônico.

* * *

Voltemos a Clarice. A ignorância dela às vezes deixa de ser sentida como uma omissão e se torna uma escuridão palpável. Na concretude da escuridão, lhe ofende, o que é diferente da sensação de mal-estar que não estar a par provoca. O sentimento de ofensa desperta nela uma espécie de reclamação por sentir que "[...] em vários países há cientistas que mantêm em segredo coisas que revolucionariam meu modo de ver, de viver e de saber. Por que não contam o segredo?". Sem acesso a esses segredos dos cientistas, Clarice se sente como se estivesse na Idade Média. Diz ela: "Sou roubada da minha própria época". Quando a gente liga o computador e entra na rede, sabe alguém como tudo aquilo funciona? E o que permite que essas coisas impressionantes todas aconteçam? Diante do computador e de toda a revolução digital, sinto-me ignorante como Clarice. E aqui Freud não ajuda. Nem Marx, nem Kafka, nem Benjamin, nem Platão, nem Shakespeare. Nem a Bíblia! Essa biblioteca toda pode ajudar a dar conta de minha perplexidade, meu maravilhamento, um sentimento de alienação, minha indiferença, meu vício, meu prazer, meu instinto epistemofílico, meu espírito voyeurista, meu tédio, meu desperdício de horas, minha insônia, minha alegria, meu sentimento de completude. Mas nada diz sobre como essa máquina funciona. E acho que poucos conhecem sobre o impacto de estar em rede. Freud parece-me ter vivido mais em sintonia com sua época do que eu com a minha. A Psicanálise surge no final do século 19, início do século 20, quando a realidade urbana de grandes densidades, a luz elétrica, os meios de comunicação de massas e o transporte público se estabelecem com força. É o surgimento dos grandes centros urbanos, próprios do capitalismo moderno. E Freud opera em completa harmonia com essa paisagem. Esse é o cenário da civilização e seus descontentes. Freud, por formação, era alguém completamente antenado com as forças que erguiam essas coisas: o domínio dos modelos científicos seja no campo das Humanidades - a sua formação literária clássica - ou no campo das Ciências Naturais - a leitura físico-química dos processos orgânicos. E, em sua compreensão, psicologia de massas e funcionamento do ego estão intimamente relacionados. Os mecanismos por meio dos quais se construía um canhão, se erguia um prédio, se iluminava uma cidade ou se produzia energia para o funcionamento de um motor, lhe eram familiares e, de algum modo, ressoavam no interior da sua teoria psicológica. O milagre de Freud é que ele era um contemporâneo lúcido de seu tempo histórico. É isso que outorga a seus escritos quase a mesma eternidade que um texto de Shakespeare ou a Bíblia. Porque penso que talvez a condição mais natural de todo homem é viver a sua própria época com esse desgarramento do qual Clarice nos fala. Não acredito que seja só um privilégio da contemporaneidade sentirmo-nos tão às escuras em relação ao entorno. Acredito que sempre o aqui e agora traz uma espécie de descompasso entre a experiência e a reflexão. E só em alguns momentos reflexão e experiência se integram de forma tão completa que a contemporaneidade - o aqui e agora - se ilumina com consciência, de forma tão plena. Os textos de Freud guardam essa iluminação e por isto podemos não lê-los como textos datados. É como se a contemporaneidade pudesse guardar familiaridade com a eternidade. Talvez porque adentrar com profundidade ao ponto de tocar a intimidade do aqui e agora permita tocar o núcleo íntimo da experiência humana em seus infindáveis desdobramentos História adentro. "Pelo Tejo vai-se para o mundo", mas o rio que se poetiza é o rio da minha aldeia, aquele que "não faz pensar em nada", "Quem está ao pé dele está só ao pé dele" (Caeiro, 1987, p. 150).

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Não tem semana sem que um ou outro paciente faça referência a alguma experiência na rede. Não só por meio do relato, mas também na concretude de, pegando o aparelhinho através do qual se conecta à rede, o smartphone, fazer questão de me mostrar uma imagem, ler uma mensagem ou até me ensinar como se processa um ou outro programa. Há aqueles pacientes que, ao chegar à sessão, antes de sentar ou deitar, tiram o smartphone e o colocam sobre a mesa. Há os que desligam o sinal sonoro de recebimento de mensagens e comunicam: "estou deixando ele silenciado". E há aqueles que dividem a atenção à sessão com o acompanhamento da recepção das mensagens, que às vezes compartilham comigo: "esta é besteira... esta é da minha prima... esta pode esperar... fulana quer marcar um encontro no restaurante X...". Todos os meus pacientes vivem também na rede. Eu também. Só que eu não tenho smartphone, nem telefone celular. E penso se escrever este texto é uma tentativa de lidar com algo que eu penso que pode ser nomeado como tecnofobia - certo medo desses gadgets todos, do seu impacto sobre nós. Percebo que eles são, para meus pacientes, uma espécie de prótese mental, pelo lugar que ocupam na vida deles. Esse aparelhinho é íntimo da atividade deles, auxiliando ou amplificando funções naturais. Eu também faço do meu computador de mesa uma espécie de extensão de mim. Mas nunca aderi à portabilidade informática.

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Um paciente mantém há mais de cinco anos um caso intermitente com uma moça que conheceu no trabalho e com a qual se relacionou durante um bom período de tempo, mas sem maior intimidade. A troca de e-mails fez surgir essa intimidade, e assim eles vão tendo um caso, migrando do SMS para o chat, para o Skype e agora ganhando a forma do Whatsapp e de outros programas de portabilidade mais atuais. Meu paciente faz dessa relação um dos temas centrais de sua análise. O que ele vive com ela? Ele adoraria que ela topasse o que diz ser uma relação presencial, corpo a corpo. Mas ela prefere assim, só assim. E nos silêncios, meu paciente sofre sua solidão. Mas, chegando uma mensagem, obtendo uma resposta, reinaugura-se uma temporada de proximidade em que ele se sente completo. Mais ainda hoje que, como ele diz, às vezes dá a sensação de estar almoçando com ela, trabalhando com ela, dormindo com ela. Quando eles têm relações sexuais - hoje em dia fazendo uso de imagens -, "é tão perfeito, que é real". Em todos esses anos, as vezes em que marcaram encontros presenciais cabem numa mão, e ainda sobram dedos. E nenhum desses encontros foi satisfatório para ambos. Grande parte da análise desse paciente é querer livrar-se dessa relação, que ele vive como se fosse uma compulsão. E o antídoto, por enquanto, são outras relações eletrônicas e uma longa e interminável reflexão sobre "nada vai acontecer comigo enquanto eu estiver preso a essa relação".

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Outro paciente: jovem. Fala de seus amores quase que interminavelmente. Todos vivem na rede. Não que ele namore eletronicamente. Mas cada um dos amores passados vive ainda na rede, e muitos desses que o abandonaram e o fizeram sofrer são ainda amigos eletrônicos. E meu paciente sua frio tentando conter quase que cada noite a vontade de acompanhar a vida desses amores passados, que na rede se mantêm sempre presentes através de imagens, textos curtidos, comentários etc. Ele se sente acompanhando vidas que não lhe caberia mais acompanhar. Como se fosse um invasor da vida dos outros.

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Outra paciente explica-me as maravilhas do Facebook. Ela tem mais de 1500 amigos. Muito familiarizada com a ferramenta, mostra-me como funciona: tem a página dela, que é a página em que ela se dá a conhecer. E tem a página em que ela recebe as mensagens, a linha do tempo. Eu me surpreendo e pergunto a ela: "Então você recebe 1500 mensagens por dia?". Ela me responde que não: "O Facebook conhece a minha memória e trabalha em sintonia com ela. Só chega mensagem do amigo ou da amiga que eu acessei há pouco tempo. Os que estão guardados ou esquecidos em minha memória, o Facebook não os faz saltar diante de mim". O Facebook conhece minha memória? Outra paciente fez um blog para falar sobre como concilia sua vida profissional com a educação de seus três filhos. Grande parte das sessões viraram temas dos assuntos que ela posta no blog: "Minha análise está me ajudando muito". E expressa uma grande alegria com os retornos que recebe: pessoas que se identificam com o que ela diz e outras que agradecem pelas dicas que ela dá e inclusive aquelas que admiram a criatividade com que minha paciente lida em certas situações. Mas eu sei, e ela às vezes também sabe, daquilo que é filtrado: o desespero de se ver tão sozinha para dar conta de tudo. E quanta coisa escapa, dela e dos filhos, e a ansiedade que tudo isso suscita. Seu blog é o aspecto sublimado, ou talvez idealizado, parcial, da realidade dela.

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Em Psicologia das massas e análise do ego, quando Freud introduz a noção de libido, detalha a existência do que ele chama de libido do ego e libido de objetos. Freud está aproveitando suas ideias desenvolvidas no texto Sobre o narcisismo: uma introdução (1914/1976). Eu me pergunto: até que ponto é um investimento narcísico ou um investimento objetal o que circula de cada um na rede? Claro que isso varia de pessoa para pessoa, mas que a rede é feita de um extremo investimento libidinal, não há dúvida. De acordo com Luke Dormehl (2014), a cada dia são gerados 2,5 quintilhões de dados na internet. Alguém me comentava sobre a incrível prontidão para auxiliar que é possível emergir na rede: dúvidas sobre algum procedimento ou demonstrações de solidariedade não são eventos raros. Ao contrário, em instantes, pode-se criar uma rede assistencial de suporte a quem precisar. Eu sempre me perguntei o quê move as pessoas a compartilhar tantos documentos - textos, imagens, livros inteiros, filmes, discografias completas. Para além dos arquivos oficiais, governamentais, institucionais e acadêmicos, circulam na internet verdadeiras bibliotecas, capazes de nos alimentar em muito além do que damos conta. E o termo "pirataria" acho que não serve para abranger a verdadeira intencionalidade de grande parte desse material colocado à disposição da rede. Não são raros os momentos em que tenho vontade de dizer "muito obrigado" ao anônimo que xerocou, digitalizou, copiou ou seja qual for o procedimento que utilizou para disponibilizar o material na rede. O nome internet faz referência a um sistema global de redes de computadores interligadas que fazem uso de um conjunto de protocolos padrão (TCP/IP). Dos anos 1990 para cá, bilhões de usuários aglomeram-se através dessas redes. Do ponto de vista psicanalítico, o nome da rede é significativo. Porque, em princípio, em relação a cada um, se pensarmos a partir do funcionamento psíquico, a internet deveria ser uma externet, pois fala de um objeto externo a nós. Mas o inter, que indica algo relacional, expressa bem essa espécie de comunicação sem mediação que podemos ter com o virtual. Claro que é fácil concluir que o uso que cada um faz da internet nada mais é do que um prolongamento do modo como cada um se organiza psiquicamente. Os investimentos narcísicos e de relação de objeto não se excluem, se somam. E a rede pode ora manifestar-se como um território sublimatório, ora como um território de realizações perversas. Pacientes me contam de um tal lado B da internet, onde é possível acessar todo o submundo humano via eletrônica. Uma supervisionanda minha fez um comentário interessante: disse que o que a preocupava é que, fazendo uso da internet, uma pessoa de estrutura neurótica pode se comportar como uma pessoa possuidora de uma estrutura perversa. Perguntei-me como os sistemas de vigilância, sempre tão ativos na internet, permitem a existência desse material. Uma primeira resposta que me veio é que, no fundo, cada um que acessa esses territórios obscenos não passa de uma pobre alma encerrada em um quarto, diante de um aparelho. Freud já disse que o ego deve servir a três amos: o id, o superego e a realidade externa. Talvez devêssemos dizer que atualmente esse pobre ego tem que dar conta de quatro amos: o id, o superego, a realidade externa e a realidade virtual.

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Em Psicologia das massas, Freud utiliza "o famoso símile schopenhaueriano" para refletir sobre "a natureza das relações emocionais que existem entre os homens em geral". O símile é o seguinte:

Um grupo de porcos-espinhos apinhou-se apertadamente em certo dia frio de inverno, de maneira a aproveitarem o calor uns dos outros e assim salvarem-se da morte por congelamento. Logo, porém, sentiram os espinhos uns dos outros, coisa que os levou a se separarem novamente. E depois, quando a necessidade de aquecimento os aproximou mais uma vez, o segundo mal surgiu novamente. Dessa maneira foram impulsionados, para trás e para frente, de um problema para o outro, até descobrirem uma distância intermediária, na qual podiam mais toleravelmente coexistir. (p. 128)

Os porcos-espinhos descobriram a internet.

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Uma paciente minha, investigando a vida de um parceiro eletrônico, descobriu, para espanto seu, que ele usava diversos nomes e mantinha dois perfis em paralelo. O "oficial", por meio do qual se comunicava com ela, informava que ele estava em Paris. E mandava fotografias dos restaurantes que frequentava, das ruas por onde andava, e relatos sobre os trabalhos acadêmicos em que estava envolvido. Já na outra página eletrônica que descobriu, ela viu fotos dele aqui no Brasil, no mesmo período. O espanto de minha paciente superava qualquer possibilidade de reflexão. "Por que ele precisava mentir?" era a pergunta que tomava conta de inúmeras sessões. Aqui eu não posso adentrar em maior profundidade o caso, mas esse sujeito com duas páginas, sendo algo assim como uma encenação dirigida à minha paciente, um Avatar, um simulacro, um username fantástico, não me parece nada raro. Através da rede, pode-se ser muitos, e de formas bem diversas. Outro paciente meu se orgulhava do pseudônimo com que participava de uma rede de conversas. Anos mais tarde, esse grupo resolve se apresentar e ele conta da surpresa dos participantes ao saber que era ele o que assinava os textos com aquele pseudônimo. Cada um, pelas ressonâncias dos textos e do pseudônimo, imaginava que ele devia ser fisicamente outro.

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Se aqui me sinto com muita dificuldade para relatar as diversas e rotineiras situações em que a comunicação eletrônica e o uso de smartphones se fazem presentes na minha clínica cotidiana... Não resisto: mais um caso que estou lembrando, o do paciente que encontra uma moça num site de relacionamentos. Ela é perfeita, tem tudo a ver com ele. Os papos rolam que é uma maravilha. Marcam um encontro e é tão desapontador! Uma nova tentativa com outra moça, a mesma coisa. Tudo rola bem até a hora do encontro. Agora, ele fica só nos papos eletrônicos. São menos desapontadores, na verdade são tão bons, para que se frustrar de novo? Como eu dizia, se me sinto com dificuldade de desenvolver de forma mais ampla estes relatos de situações clínicas, é porque me vejo na obrigação de zelar pela privacidade de meus pacientes. E justamente um dos temas mais debatidos na atualidade é o problema do fim da privacidade que o uso da rede eletrônica traz consigo. Quantidades gigantescas de dados são disseminadas pelos Googles e Facebooks da vida, e são a seguir analisados através de complicados algoritmos e processadores de linguagens, transformando cada usuário em parte de um grupo de semelhantes. E assim, por meio de estatísticas e outros procedimentos matemáticos, configuram-se coletivos muito singulares: são as tais redes sociais, que servem de plataforma para esta nova forma de sermos multidão. Não é a massa, não se trata do público, do povo, da população ou da comunidade, tal como conhecíamos até o final do século 20, e que constituíam segmentos demográficos. Estes todos podemos dizer que são coletivos naturais. Já os coletivos eletrônicos, reunidos por algoritmos, são erguidos por interpretações de dados, são coletivos criados a partir de estatísticas. Claro que aqui tem uma novidade: este mapeamento do coletivo feito por técnicas estatísticas que integram, através de certos recortes, singularidades as mais diversas. E, hoje em dia, as ferramentas que realizam essas integrações e outorgam um perfil a cada usuário são extremamente poderosas, não apenas para criar um mercado, mas também para outorgar uma identidade a cada usuário: um perfil. Os diagnósticos na atualidade são feitos com algoritmos e estatísticas.

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Tem aparelho para tudo. Li na internet que é possível adquirir um garfo que apita se eu estiver comendo rápido demais. As companhias de seguros podem me dar descontos se eu colocar um dispositivo no meu carro que registra minha competência para dirigir, ao monitorar a velocidade com que corro, a pressão com que freio, o modo como faço as curvas e até se meu bafo contém álcool. Incrível! Fazemos parte de um coletivo eletrônico. Paul Virilio, um pensador interessante, disse não sei onde que, assim como há drogas químicas, pode haver drogas eletrônicas. O virtual, para ele, é uma droga para tempos globais. Ele diz também que, assim como nos séculos 18 e 19, os grandes impérios criaram colônias físicas, concretas, a internet é uma colônia virtual, o último reduto a colonizar no momento em que a globalização tomou conta de todos os territórios sociopolíticos, despertando o que ele chama de um sentimento de claustrofobia global.

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Comentando em minha análise pessoal sobre esses assuntos, minha analista observou: "É verdade, eu já tive paciente que, num período de luto, quis me mostrar a fotografia da pessoa que falecera. Outra quis me mostrar o lugar onde passou as férias. Uma outra ainda, a foto da sua casa... Como lidar com isto?... Pouco tempo atrás, era muito raro um paciente trazer uma foto". A inquietação da minha analista me pega forte e acho que entendo sua preocupação. Na clínica, a gente trabalha com a realidade psíquica, e as construções que o analista vai fazendo dos objetos que são colocados em circulação pelo paciente podem assumir características que a foto concreta só empobrece, distorce ou eclipsa. Na minha clínica, não tem jeito. Selfies, 4chans, Hashtags, Instagrams, Pinterests, Linkedins, Twitters, Tinders se instalaram, ou eu deixei que se instalassem. E agora? Como é que fica a realidade psíquica? Um híbrido de eletrônica e concepção pessoal.

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Quando eu era criança, eu fazia diversas coisas em diversos espaços. Escutava música na sala, lia no escritório e, se queria ficar mais comigo, era no meu quarto. Hoje tudo conflui para um aparelhinho. Estuda-se, passa-se o tempo, conversa-se, paga-se as contas, tudo contraído numa mesma disposição. Mas os tempos de cada uma dessas atividades são completamente diferentes. O tempo vivido de quem estuda não é o mesmo do tempo vivido de quem se diverte ou de quem está se comunicando com alguém.

Mas, nessa confluência, pode-se dar que estudemos como nos divertimos, nos comunicamos como estudamos, nos divertimos como se estivéssemos pagando conta, enfim, cultura, comunicação e administração da vida pessoal se entrelaçaram profundamente.

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Mas na internet não circula só libido. Ela é um poderoso cenário de circulação dos conflitos sociopolíticos e de forças econômicas, todas em atividade intensa: a rede mimetiza a realidade. Um dos filmes mais interessantes que vi ultimamente é CitizenFour. Trata-se de um documentário dirigido por Laura Poitras que ganhou o Oscar 2015 de melhor documentário, além de inúmeros outros prêmios. O assunto do filme são os sistemas de vigilância eletrônica que o governo americano colocou em ação. E a diretora soube achar uma forma profundamente eficaz para nos pôr a par de como esses sistemas funcionam. Mas o aspecto que mais me chama a atenção não é propriamente a exposição dos modos de funcionamento do sistema. O incrível é o modo como é apresentada a revelação do próprio sistema de vigilância. É que o filme não é uma ideia da diretora, mas de um agente federal de segurança dos EUA (NSA), Edward Snow-den, que, crítico dessa vigilância (tudo é visto, cada e-mail, cada imagem, cada documento, todas as conversas, enfim, tudo passa por uma espécie de funil eletrônico chamado prisma nos EUA, ou nervo óptico na Inglaterra) e preocupado com o poder que esse gigantesco acesso à informação dá ao Estado em detrimento dos cidadãos (e ele nos conta no filme que esse sistema não apenas é capaz de obter informações dos cidadãos americanos, mas com menos entraves jurídicos ainda, pode obter informações de um país inteiro: conversas da Dilma pelo celular, ou da Angela Merkel, são apresentadas por ele como provas), acessa a diretora via internet e a convoca para testemunhar o momento em que ele irá revelar o segredo desse sistema de vigilância para jornalistas. O núcleo do filme acontece num quarto de hotel em Hong Kong, no instante em que Snowden faz sua revelação para dois jornalistas do The Guardian, Greenwald e Scahill. Ele apresenta aos jornalistas documentos que servem para testemunhar o poder coercitivo da agência de segurança (NSA) e a ampla manipulação que fazem da internet. Para mim, o impacto maior não está propriamente naquilo que Snowden está revelando, mas na revelação do momento em que isto ocorre. De algum modo, Snowden quis que todos os bilhões de usuários fossem convocados ao seu quarto em Hong Kong para ouvirmos o que ele tinha a dizer. Uma das primeiras perguntas de Greenwald a Snowden versa exatamente sobre esta questão. Algo como: "Você está sacrificando a tua privacidade em nome desta revelação?". Snowden responde argumentando que, para ele, o mais importante é que o público se inteire dos fatos, e espera que os jornalistas saibam privilegiar o conteúdo da informação à sua biografia pessoal. Greenwald lhe responde que, no jornalismo contemporâneo, a centralidade é das personalidades. E, de fato, no filme, o rosto de Snowden, sua reação ao se assistir como notícia transmitida pelos jornais televisivos ou ao receber e-mails de sua namorada nos EUA, compete com as informações que o filme nos revela sobre o funcionamento da vigilância da NSA. O rosto de Snowden se sobrepõe. Ele é ao mesmo tempo o informante e o que nos é informado. Ele é quem vigiava e quem agora está sendo vigiado, não apenas pelos sistemas governamentais, mas por todos nós. O filme é um exercício em tempo real de um confronto entre um cidadão e o Estado. Mas é também a apresentação da imediaticidade de tudo. Nós, vendo o filme, ao nos informarmos, estamos consumindo Snowden.

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Clarice se sente roubada de sua própria época. Mas também se pergunta: se os cientistas lhe revelassem o segredo, ela o entenderia? Assisti outro documentário, Particle fever (ultimamente tenho assistido muitos filmes pela internet). Este versa sobre o acelerador de partículas da Organização Europeia para Pesquisas Nucleares, localizado perto de Genebra, Suíça. Um físico, Savas Dimopoulos, da Universidade de Stanford, faz no filme um comentário que me impactou, ao se referir ao achado experimental da partícula de Higgs, teorizada pelo físico Peter Higgs já nos anos 60. Disse Dimopoulos que esse achado significa um orgulho para a humanidade, para nós que,"pessoas insignificantes neste planetinha, com nossos cérebros minúsculos, podemos nos aprofundar tanto e entender o que acontece em distâncias subnucleares mil vezes menores que um núcleo atômico". E continua: "É espantoso que existam leis na natureza que podem ser descritas pela Matemática, e que a Matemática seja uma lingua-gem que os humanos entendem: que as leis da natureza possam ser escritas no papel. Este é o maior mistério de todos". Como eu não entendo de Matemática, me é impossível escrever no pa-pel a matemática da vida moderna e o impacto dela na constituição de nossa intimidade. Clarice sustenta um fio invisível de esperança: "[...] a tênue alegria mínima do condicional 'se eu soubesse'". E transforma essa tênue alegria no suporte do "mais amado fio quase invisível da esperança de vir a saber". Esta esperança eu não tenho. A física da Matemática contemporânea me é inacessível. Meu fio quase invisível de esperança se desloca para a Psicanálise. Minha experiência junto a todos esses pacientes internautas me mostra que a situação presencial do setting psicanalítico se tornou indispensável para eles poderem elaborar suas odisseias virtuais. Inquietam-me as fáceis conclusões com que alguns colegas analistas rapidamente definem como possível o atendimento psicanalítico via comunicação eletrônica. Clarice, ao sentir-se distanciada das coisas que revolucionariam seu "modo de ver, de viver e de saber", sente-se "tratada como uma criança a quem não se assusta com verdades antes do tempo". Devemos tomar o cuidado de não reagir às perplexidades que essas novas formas de comunicação trazem para a clínica como crianças que devem maniacamente receber o futuro com euforia e entusiasmo desmedido. A verdade é que não temos resposta e não sabemos ainda como lidar com essas situações. No mínimo, devemos ter presente o dito desse comunicólogo dos anos 70, McLuhan: "O meio é a mensagem". Um setting psicanalítico, antes de tudo, transmite um setting psicanalítico. Um aparelho eletrônico, antes de tudo, transmite um aparelho eletrônico. E um setting psicanalítico transferido para um aparelho eletrônico transmite, antes de tudo, um aparelho eletrônico.

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Um paciente começou há pouco tempo sua análise. Na primeira sessão, veio cheio de desconfiança. Passado o primeiro impacto e um pouco mais aliviado, soltando o nó da gravata, fez um comentário, em tom entusiasmado: "Já sei! Aqui é a fortaleza da solidão". Eu pergunto: "Fortaleza da solidão?"."Sim", diz ele,"o lugar, na calota do Polo Norte, para onde o super-homem ia para fazer sua análise pessoal". Gostei dessa aproximação: Psicanálise como a fortaleza da solidão. Deu-me esperanças.

 

REFERÊNCIAS

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Dormehl, L. (2014). The formula: how algorithms solve our problems... and create more. NY: Penguim Random House, 2014.         [ Links ]

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______. (1976). Psicologia das massas e análise do ego. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de S. Freud (Vol. XVIII). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1921).         [ Links ]

Klein, M. (1994). Narrativa da análise de uma criança. RJ: Imago.         [ Links ]

Levinson, M. (2013). Particle fever.         [ Links ]

Lispector, C. (1984). Os segredos. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Poitras, L. (2014). CitizenFour.         [ Links ]

 

 

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ENRIQUE MANDELBAUM
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Recebido 07.05.2015
Aceito 13.06.2015

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