SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.38 número60Notas sobre a Psicanálise em tempos de algoritmosA autobiografia de Wilfred Bion: o segredo como fonte de si mesmo índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.60 São Paulo jul./dez. 2015

 

EM PAUTA | SEGREDO

 

O valor do segredo na religião e na psicanálise

 

The value of secrecy in religion and psychoanalysis

 

 

Ario Borges Nunes Junior

Psicanalista, doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Lateranense. Pós-doutorando do Departamento de Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Autor dos livros Êxtase e clausura: sujeito místico, psicanálise e estética (Annablume, 2005), Relíquia: o destino do corpo na tradição cristã (Paulus, 2013) e Fenômeno místico: caracterização e estudos de casos (Ecclesiae, 2015)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo é abordar a questão do segredo sob a perspectiva religiosa e a psicanalítica. Em ambos os casos, a promessa de segredo de quem escuta entra como garantia. No entanto, o confronto entre as duas modalidades revela reações antagônicas em relação à resistência à verbalização. No âmbito religioso, o dispositivo da confissão, centrado no mandato de tudo dizer em relação aos pecados, enfoca a revelação, assim, a atenção fixa-se no congelamento da cena proibida, que parece se reafirmar na ficção pulsional. Em relação à regra fundamental, o conteúdo omitido desloca-se para um papel secundário e a atenção se volta para a recusa do analisando à associação livre, o que está, estreitamente, vinculado ao manejo transferencial e, de alguma forma, à lacuna inerente ao sentido da fala e à sua interpretação.

Palavras-chave: Segredo. Silêncio. Psicanálise. Religião. Confissão.


SUMMARY

The aim of this study is to address the issue of secrecy under the religious and the psychoanalytic perspective. In both cases, the promise of the listener to keep the secret enters as a guarantee. However, the confrontation between the two modes reveals antagonistic reactions towards the resistance to verbalization. In the religious sphere, the tool of the confession, is centered in the mandate of revealing everything about the sins, focuses on the revelation, thus, the attention is fixed on the freezing of the forbidden scene which seems to reaffirm the instinctual fiction. Regarding the fundamental rule, the omitted content moves to a secondary role and the attention turns to the refusal of the analyzed to free association, which is, closely linked to the transference and management as well as, somehow, to the inherent gap to the sense of speech and its interpretation.

Keywords: Secret. Silence. Psychoanalysis. Religion. Confession.


 

 

Tipologia do segredo

O segredo necessita de um contexto específico e bem definido para acolher os efeitos de sua revelação. A literatura, por exemplo, está repleta de tramas em que o desvelamento de um segredo provoca consequências danosas, especialmente, no caso de certas parcerias amorosas, em relação às quais, o vínculo não é socialmente aceito e depende, portanto, de um pacto secreto entre os amantes, fato que, inclusive, parece fortalecer o próprio vínculo que os une.

No caso do segredo relativo a uma opção pessoal que, presumivelmente, estaria em desacordo com as expectativas daqueles que integram o universo relacional da pessoa, há a suposição de que, mantida no foro íntimo, tal opção estaria preservada em sua força absoluta e protegida da rejeição e da crítica externa. Por exemplo, para uma jovem que aspira à vida monástica, conservar só para si o conteúdo de sua escolha, desde o instante da decisão até a sua efetivação, parece fortalecer a crença no laço de união e intimidade com o ser divino (Maria Cândida dell'Eucaristia, 2004).

Em relação aos segredos de família, alguns se referem a um determinado membro que desconhece um fato histórico que lhe diz respeito, no entanto, o conhecimento de tal fato é compartilhado pelos demais. A omissão do fato ao membro em questão é sempre justificada pela falsa crença de que a sua revelação seria dificilmente suportada por ele. É o segredo por amor, que se sustenta na certeza de que a preservação da pessoa em relação ao conhecimento do elemento histórico alterado, ou, simplesmente, ocultado, supostamente garantiria o bem dela (Rosa, 2009). Seria o caso de pais que não revelam ao filho adotivo a sua real condição, nem tão pouco os elementos do contexto de sua origem e as circunstâncias da adoção. Muitas vezes, a manutenção do segredo é, intencionalmente, temporária, e o adiamento da revelação justificado pela pouca idade da criança, o que, supostamente, dificultaria uma apreensão global dos fatos e uma compreensão adequada dos mesmos.

Existem, ainda, os segredos que são compartilhados por todos os membros da família. Nesse caso, é vedada a transmissão para além do âmbito familiar de conteúdos que provocariam constrangimento ou trariam consequências, presumivelmente, negativas para o grupo. Relativamente a esses casos, pode-se considerar que um determinado feito de um ancestral está associado a um valor não socialmente aceito e o seu conhecimento, fora do grupo familiar, poderia ser motivo de vergonha e embaraço aos membros do mesmo.

Finalmente, pode-se considerar os casos em que um segredo envolve duas pessoas que têm um grupo relacional comum e, por uma determinada circunstância, vivenciaram uma situação específica que não pode ser divulgada, pois acredita-se que a sua revelação afetaria a imagem de ambas nos respectivos contextos sociais. Cabe mencionar os casos de assédio ou violência sexual no contexto familiar ou profissional. O segredo justifica-se, então, pelo vínculo existente entre os envolvidos (Chagas, 2014).

Deslocado do cotidiano, separado da cena ordinária e rotineira, o conteúdo expulso do discurso engendra uma descontinuidade na elaboração e na encenação do mito pessoal. O segredo apenas enfatiza, ressalta, o ponto cego inerente à constituição e ao reconhecimento de si mesmo, uma vez que o aspecto lacunar relativo à insuficiência de sentido de cada ato e de cada palavra possibilita a estruturação da questão subjetiva em torno de um vazio.

Dispor dos recursos discursivos, como a omissão, mediante critérios às vezes estranhos ao próprio sujeito, funcionaria como uma tentativa de atribuir às palavras que não podem ser ditas um valor de destaque, de modo que o enigma proposto pelo segredo visaria o vazio de sentido, constituindo-se como a insígnia do constante estranhamento que a condição subjetiva impõe. O segredo representa, então, uma tentativa de relativizar o que é impossível de ser dito.

O segredo vincula as pessoas, propicia a criação de laços sociais. Estabelecem-se, ao redor dele, parcerias que têm como objetivo trabalhar para a sua preservação enquanto elemento oculto ou, ao contrário, para a sua revelação. Relativamente ao segundo caso, deve-se considerar que todos os seres falantes debatem-se em torno dos inexoráveis mistérios da existência, mistérios esses que engendram segredos. Há sempre uma lacuna na construção do mito pessoal que, de alguma forma, espelha o vazio universal de sentido, tão intrigante aos humanos. Em torno dos mistérios e dos segredos deles decorrentes, os mitos pessoais tangenciam os mitos universais.

 

Ideologia religiosa e segredo

O exemplo mais evidente do caráter corporativista do segredo diz respeito às instituições religiosas. A religião apresenta certos oráculos incompatíveis à apreensão racional imediata e dá a eles nome de mistérios. Os mistérios veiculam, automaticamente, segredos que demandam elucidação, especulação. Os místicos, instigados por essa tarefa, não se constrangem em testemunhar quão complexa ela se revela. Assim se expressa a monja renana Hildegarda de Bingen (1098-1189):

[...] dime ahora, oh hombre, ¿que crees que eras cuando aún no tenías ni cuerpo ni alma? Desde luego, ignoras como has sido creado. Y sin embargo ahora, oh hombre, quieres escrutar cielos y tierra, y ponderar su justicia en el designio del Señor; y discernir lo elevado, cuando ni siquiera eres capaz de apreciar lo ínfimo, pues ni sabes como vives en tu cuerpo ni como serás despojado de él. (Bingen, 1513/1999, p. 42)

As questões em torno da vida e da morte que a ideologia religiosa visa esclarecer propõem vários níveis de apropriação do saber a elas associados. Os vários níveis organizam-se a partir do conhecimento oculto que a cada um cabe participar, de acordo com a sua função na instituição religiosa, em determinado momento. Assim, o trabalho de desvelamento se dá de forma não imediata e coloca problemas em relação à sua transmissão.

Na Bíblia, o segredo apresenta um caráter transitório. No "Evangelho segundo São Mateus", por exemplo, há uma referência explícita a isso, "[...] pois nada há de encoberto que não venha a ser descoberto, nem de oculto que não venha a ser revelado" (Bíblia de Jerusalém, 2002, p. 1721). A transitoriedade que o conceito de segredo assume, no discurso religioso, acentua a relação tensa com o tempo, o que, também, é, facilmente, apreensível no discurso dos místicos, como pode se ler no verso de Teresa de Ávila (1515-1582): "[...] que muero porque no muero" (Santa Teresa, 1583/1995, p. 956).

Na medida em que todo segredo demanda desvelamento, sua função diz respeito à possibilidade de uma proliferação de sentidos. Como afirma Michel de Certeau, "[...] o discurso místico transforma o detalhe em mito" (2006, p. 19). Lacan, em entrevista coletiva realizada em Roma, em 27 de outubro de 1974, ao ser questionado sobre a relação entre a religião e a ciência, enfatiza os recursos de que dispõem os oráculos da religião para o confronto com as coisas perturbadoras da vida: "[...] são capazes de dar um sentido realmente a qualquer coisa; um sentido à vida humana, por exemplo; são formados nisso; desde o começo, tudo o que é religião consiste em dar um sentido às coisas que outrora eram coisas naturais" (Lacan, 2005, pp. 65-66).

O discurso religioso visa estabelecer, universalmente, a plena recuperação de gozo, de gozo de sentido, concebido a partir da satisfação experimentada na compreensão de um enunciado (Valas, 2001). No âmbito subjetivo, segundo uma lógica semelhante, o gozo de sentido define as diretrizes para a construção do mito pessoal e para a fruição do mesmo, enquanto entretenimento fantasmático.

O posicionamento quanto ao grande segredo, aquele que o discurso religioso tenta capturar a qualquer custo, reflete-se na criação de enigmas pessoais e na relação íntima com eles. Em primeiro lugar, há um segredo a ser desvendado pelo próprio sujeito que, em vários momentos, estranha-se em relação a si mesmo. Em segundo lugar, há os questionamentos subjetivos relativos à construção de uma identidade: o que dispor de si mesmo, o que manter não falado a qualquer custo, para quem dispor e em quais circunstâncias?

O preceito religioso da confissão anual legislado no Direito eclesiástico apresenta-se como um dispositivo no qual se conjugam a vivência pessoal do segredo e uma específica prática institucional. Para o cumprimento de tal desconfortável mandato, a Igreja dispõe de um arsenal doutrinário e prático, definido, sobretudo, a partir do Concílio de Trento.

Além da garantia da absolvição de Deus, o padre deve assegurar a manutenção do segredo relativo ao conteúdo da confissão. Trata-se de um voto por parte do confessor, pelo qual, ele deve empenhar a própria vida. Na hagiografia clássica, há uma célebre referência a esta decorrência ética do uso da ordem presbiteral. É o caso de João Nepomúk, canonizado em 1729. Em 1393, o sacerdote, da diocese de Praga, foi lançado, de uma ponte, ao rio Moldova, pelos súditos do rei Venceslau IV. Uma das interpretações sobre as circunstâncias da morte do mártir diz respeito à sua fidelidade ao segredo da confissão (Pagano, 2000).

A garantia da manutenção do segredo pelo padre facilita o estabelecimento de um clima propício à constrangedora narrativa dos aspectos mais reservados da vida privada. As estratégias no sentido de mitigar o desconforto que o encontro entre o pecador e o confessor impõe na cena penitencial foram sistematizadas em manuais de instrução aos confessores, que proliferaram nos séculos XVII e XVIII. Assim, a pastoral da penitência, desenvolvida a partir das orientações tridentinas,

[...] para instaurar, se não um nível de igualdade, ao menos uma passagem entre os dois interlocutores, sublinha três particularidades do confessor: ele jamais infligirá o inviolável segredo de que é depositário; ele é um confidente "caridoso", "compassivo" e "fiel", enfim, ele não é menos pecador que seu interlocutor. (Delumeau, 1991, p. 34)

O adequado funcionamento do dispositivo da confissão depende, então, da relação do penitente com o confessor. Para o sucesso da operação, o fiel deve falar tudo. O padre deve acolhê-lo, amorosa e compassivamente, e dispor de estratégias que permitam atenuar a vergonha e o constrangimento e, portanto, facilitar a verbalização das graves faltas do pecador, segundo o mandato: "fale tudo, não omita nada".

À primeira vista, a relação entre o confessor e seu penitente apresenta um caráter assimétrico. O padre, enquanto representante da hierarquia, dispõe do poder de perdoar e de absolver em nome de Deus. Ocupa, na cena, o papel de juiz. O fiel, por sua vez, comparece humilhado e movido pelo arrependimento contrito de ter ofendido o Pai. Tão digna motivação, associada à adequada postura do confessor, permite-lhe vencer o constrangimento de narrar os pecados vergonhosos, especialmente, "os sexuais" (Delumeau, 1991, p. 32). Está-se diante de uma motivação pessoal de natureza mística (ainda que muitas vezes levada a cabo, principalmente, para cumprir o preceito anual), uma vez que "[...] não é a absolvição apenas que redime os pecados no sacramento da penitência, mas a contrição que não é verdadeira se não buscar o sacramento" (Pascal, 1776/2005, p. 289).

Sob outra perspectiva, trata-se de um encontro entre dois semelhantes. O penitente, mesmo assolado pelo constrangimento, narra ao padre alguns de seus segredos mais miseráveis, na esperança de obter o perdão. A lembrança de que a pessoa do padre é, também, suscetível de realizar atos vergonhosos funciona, então, como estímulo para o penitente superar o constrangimento, afinal, perdoar é se igualar e, assim, o pecador conforta-se na certeza de que está longe de ser o único (Karnal, 2014).

Relação de poder, por um lado, e, de identificação, por outro, norteada pela busca de cumprir o mandato: "fale tudo". A proposta da confissão concerne em esvaziar qualquer foco de estranhamento do sujeito em relação a si mesmo e, até certo ponto, em relação ao outro, assim ele experimentará não só alívio, mas, sobretudo, os efeitos da misericórdia do Pai.

 

O valor clínico do segredo

Na clínica psicanalítica, a decisão do sujeito em omitir algum fato ou lembrança tem natureza semelhante à sua certeza na direção oposta, isto é, na decisão convicta de narrar situações que ele julga como fundamentais para o desenvolvimento da análise. Assim, a decisão sobrepõe-se ao conteúdo da cena omitida ou daquela narrada a partir de uma quase certeza.

Freud (1905), em Fragmento da análise de um caso de histeria, propõe à omissão voluntária de um fato o nome dissimulação consciente e a relaciona aos sentimentos de timidez, vergonha ou discrição: "[...] os pacientes consciente e intencionalmente retêm parte daquilo que deviam contar - coisas que lhe são perfeitamente conhecidas - porque não venceram seus sentimentos de timidez e vergonha (ou discrição, quando o que dizem se relaciona com terceiros)" (Freud, 1905/1972, p. 15). O autor contextualiza tal afirmação na reflexão sobre o valor relativo dos dados que o paciente relata, mesmo instigado pelo empenho da cura: "[...] as informações que recebo nunca bas-tam para orientar-me no caso" (Freud, 1905/1972, p. 14).

A culpabilidade, subjacente aos sentimentos desagradáveis mencionados acima, resulta da consistência atribuída pelo sujeito ao Outro. Assim, omitir voluntariamente um relato diz respeito a fixá-lo em uma determinada construção de sentido, elaborada segundo os critérios de interpretação do sujeito acerca das mensagens atribuídas ao Outro. No entanto, os equívocos, inerentes ao desenrolar da fala, corroem a pretensa consistência do Outro. Não falar, omitir a descrição de uma lembrança, equivale a um ato de recusa em submeter o conteúdo ocultado ao relativismo que o exercício da fala impõe. Dessa forma, acredita-se manter preservadas algumas das supostas garantias depositadas no Outro.

A certeza de que um específico relato destaca-se em relação aos demais sustenta uma satisfação da qual o sujeito resiste em abrir mão, ou seja, o conteúdo do fato omitido reassume um valor especial no universo pulsional, tornando-se, dessa maneira, na ficção subjetiva, uma das chaves para a elucidação dos enigmas pessoais. Ao não falar, engendra-se um clima de mistério que alimenta a fantasia e ressalta o seu caráter velado, nebuloso, de pouquíssimas palavras. O sujeito goza com seus segredos, isto é, dispõe deles como lhe convém.

Teoricamente, há um impossível de ser dito inerente à própria estrutura do discurso que a estratégia do segredo busca velar. Nesse caso, ao eu do enunciado, fica atribuída a função de assumir para si a responsabilidade do ponto cego da cadeia discursiva.

A última palavra sobre si mesmo está impossibilitada ao sujeito, mas atribuir um acentuado destaque a esse ou aquele relato reacende nele a esperança de uma consistência mínima para sua sempre evanescente condição. As informações recebidas do paciente nunca são suficientes, desabafa Freud. Os enigmas que evocam o sujeito da enunciação se fixam nas intenções do enunciado. Mesmo quando o sujeito decide falar sobre alguma coisa, subjaz ao relato um não dito, um segredo, que é segredo para ele próprio, ou seja, por mais que fale, deliberada e convictamente, permanece a questão da insuficiência do enunciado, sempre entrecortado pelos lapsos e atos falhos que provocam a emergência desconcertante do sujeito da enunciação.

Pode-se fazer, a partir desses elementos, uma analogia à função imaginária do pai, isto é, aquela de atribuir-lhe a função de regulador do gozo. Não é o pai, na consistência de qualquer ato ou palavra, o efetivo interditor do gozo. Atribuir-lhe a perda de gozo, no pleno exercício de seu poder, sustenta a convicção na possibilidade de recuperação do gozo perdido.

Para simplificar, Lacan apresentou o Édipo elaborado por Freud como uma defesa. Ele usou a palavra "defesa". Mais além do Édipo, abaixo do pai, o que Freud trata de dizer é algo do registro do gozo, para que lado vai o gozo, como se distribui, e por que não temos o gozo que deveríamos ter. É um modo de dar conta do fato de não termos a nossa cota de gozo, a economia de gozo que deveríamos ter. Falta algo desse lado. E por isso se constrói a figura do pai imaginário, responsável por não termos o gozo. Este é o conto da quota de gozo. (Miller, 1997, p. 428)

Lógica semelhante parece se estabelecer em relação à novela cortês. Lacan, ao referir-se ao tema, afirma: "[...] é uma maneira inteiramente refinada de suprir a ausência de relação sexual, fingindo que somos nós que lhe pomos obstáculo; é verdadeiramente a coisa mais formidável que jamais se tentou" (Lacan, 1985, p. 94). A impossibilidade de encontro entre o cavaleiro errante e a amada é, no enredo da narração, consequência de circunstâncias específicas e desfavoráveis que impossibilitaram o pleno desfrute entre os amantes, desse modo, o que é estrutural torna-se, contextualmente, contingente. Prossegue o autor: "[...] o amor cortês é para o homem, cuja dama era inteiramente, no sentido mais servil, a sujeita, a única maneira de se sair com elegância da ausência da relação sexual" (Lacan, 1985, p. 94).

Na dimensão transferencial, o segredo adquire contornos interessantes, pois, de imediato, coloca-se como opositor à regra fundamental. Na relação com o analista, o sujeito se resguarda: "não falo tudo o que ele me manda falar". Pode ser um ato de reserva ou mesmo de rebeldia; pode, ainda, buscar instigar o analista à curiosidade, ou tentar institui-lo em um jogo de poder.

De qualquer forma, a recusa em falar encerra uma aposta do sujeito de manter-se em uma atitude plenamente separada. É, ao mesmo tempo, a garantia de sua singularidade e a insígnia de sua dispersão nas demandas do Outro (expressa pelo conteúdo da cena omitida) que ele experimenta, ao poder dispor ou não do relato. Mostrando-se reticente em relação à regra fundamental, o paciente parece assumir uma posição ambígua em relação à sua crença na eficácia do tratamento, que traduz sua posição dividida em relação a abandonar o seu script já tão familiar, para encarar os desafios cotidianos da existência de outras formas.

Freud (1914), em Recordar, repetir e elaborar, ao tratar de questões concernentes ao início do tratamento analítico, apresenta a frequente situação na qual o paciente, quando confrontado com a regra fundamental,"[...] fica silencioso e declara que nada lhe ocorre" (Freud, 1914/1972, p. 197), ainda que esteja familiarizado com a história e a realidade de seus sintomas. O autor interpreta tal reação do paciente como um ato de repetição, descrevendo-a como uma transferência do passado esquecido direcionada, nesse caso, para a figura do analista, e que funciona como uma resistência ao tratamento: "[...] aprendemos que o paciente repete ao invés de recordar e repete sob as condições da resistência" (Freud, 1914/1972, p. 198).

Ao longo do processo analítico, mediante uma condição transferencial excessivamente intensa (ou hostil), que necessita de repressão, prossegue Freud, o recordar dá lugar à repetição. Em relação à direção do tratamento, o autor considera um mau prognóstico, quando, inicialmente, o paciente recorre à reserva mental, isto é, quando ele calcula: "[...] é mau sinal ele confessar que, enquanto escutava a regra fundamental da análise, fez a reserva mental de que, não obstante, guardaria isto ou aquilo para si" (Freud, 1914/1972, p. 198).

No campo da reserva mental, o conteúdo que o sujeito se-para só para si remete a uma inscrição imaginária da fantasia que ele busca experimentar, não sem cautela, em se tratando da neurose. O sujeito elege uma cena. Alguma coisa é separada e conservada para o seu exclusivo uso.

O segredo, enquanto suporte imaginário de identidade, presentifica o abismo insondável instaurado entre o sujeito e o outro. Espelha, assim, a consequência de um profundo estranhamento. Nesse sentido, a lógica envolvida no estabelecimento e no manejo dos segredos pessoais evidencia "[...] o limite mesmo imposto pela relação entre semelhantes" (Julien, 1996, p. 108) e pode servir de proteção em relação ao véu que circunda o Outro, na vivência da manutenção da própria integridade.

Esse Outro, esse próximo tem duas faces. A primeira - "o outro elemento" - é feita à nossa imagem e semelhança, de modo que compreendo esse elemento tal como suponho que ele me compreende. Essa primeira face é o meu semelhante, meu outro. A segunda - als Ding - está além do semelhante. É o próximo propriamente dito, o Outro inominável, fora do significado, estranho e estrangeiro a mim mesmo, imprevisível - digamos in-compreensível, no sentido etimológico: aquilo que não posso circunscrever. De acordo com essa segunda face, o Outro me aparece sob o signo do capricho, do arbítrio, do sem crença nem moral que me possa dar alguma garantia. (Julien, 1996, p. 42)

Cabe ainda considerar, a título de contraponto, a perspectiva de alguns autores psicanalistas que entenderam o desenrolar do fluxo de fala como uma descarga erógena em si mesma. O fluxo verbal estaria a serviço de outras dinâmicas corporais, prevalentes nas vivências da infância. Para Sharpe, citada por Fliess, (1949/2010, p. 61), "[...] a atividade de falar substitui a atividade das aberturas do corpo; as palavras tornam-se substitutos de substâncias corporais". A dinâmica do aparelho de linguagem associa-se às demandas corporais de excreção e de ingestão:

[...] se e quando a neurose "infantil" do paciente - núcleo de sua neurose ulterior - é reativada pelo procedimento analítico, os sintomas da erogeneidade infantil de excreção ou ingestão, até então em estado de latência, tornam-se temporariamente manifestos e produzem uma linguagem erótica parcial; o deslocamento de tal erogeneidade para o aparelho da linguagem é um dos efeitos fundamentais da regra analítica (...); esse deslocamento deverá ser suficiente para efetuar uma descarga regressiva erótica parcial de certa quantidade pulsional por meio da palavra; é, portanto, esse o benefício econômico que consegue. (Fliess, 1949/2010, pp. 75-76)

Destaca-se, na direção da cura, o elemento propriamente acústico da fala: "[...] a liberação do afeto regressivo pela utilização erógena do aparelho de linguagem na verbalização pode provocar transformações na constituição do prazer fisiológico do ego corporal" (Fliess, 1949/2010, pp. 79-80).

De acordo com tal perspectiva, a incidência do silêncio pode ser decomposta de acordo com os seguintes elementos: o modo pelo qual se interrompe o discurso; o grau e o tipo de oposição à palavra e à comunicação do pensamento; a atitude do paciente diante do próprio silêncio e a sua reação, quando é convidado a retomar a verbalização (Fliess, 1949/2010). O silêncio é, então, considerado não a partir dos conteúdos, presumivelmente, omitidos, mas da relação do mesmo com o quantum de libido que a articulação das palavras ativa, equivalendo-se a outras funções corporais.

 

Considerações finais

O segredo para a religião tem natureza transitória, o que difere, radicalmente, do seu valor no interior do campo psicanalítico, para o qual o segredo é efeito de estrutura e, portanto, apresenta um caráter absoluto. O segredo é segredo para todos, inclusive para o próprio sujeito, que apenas acredita dele dispor segundo sua própria vontade. A nenhum ser falante foi dada a conhecer a constituição de sua maneira de estar no mundo e de se posicionar frente aos desafios da existência. A grande tarefa humana consiste, justamente, em encontrar uma adequação entre o que se pensa, o que se fala de si mesmo e a experiência pessoal propriamente dita.

A religião apresenta-se como depositária de estratégias para se abordar o grande mistério que envolve a existência humana de acordo com uma finalidade ideológica específica, qual seja aquela de servir como apaziguadora da angústia existencial, e segundo uma ética bem específica, relativa ao confronto com o outro.

No discurso religioso, de acordo com a lógica da confissão, o desvelamento do segredo impõe-se como meta: sob condições específicas, deve ser explicitado o conteúdo que até então se manteve separado. Na clínica psicanalítica, as coisas ocorrem de maneira diversa. A omissão não vale tanto em termos do conteúdo ocultado, mas, principalmente, pelo ato de ocultar, que implica em uma deliberada contraposição à regra fundamental.

A confissão dinamiza-se na expectativa de que o sujeito fale os seus pecados, "fale tudo" de pecaminoso; esse é o objetivo último dos confessores, partindo do pressuposto de que se ele conseguir vencer o respeito humano e a humilhação de relatar os seus aspectos mais sombrios, estaria, certamente, movido pela contrição. A humilhação é diretamente proporcional à culpa e, portanto, quanto maior a humilhação mais intensa é a ilusão do perdão. Ao tentar eliminar a divisão subjetiva do pecador, isto é, o estranhamento em relação a si mesmo, em circunstâncias bem definidas, o dispositivo penitencial produziria um efeito de apaziguamento.

Dividido entre o limite do reconhecimento que a imagem do semelhante pode lhe oferecer e o estranhamento com que se de-para diante do inominável encarnado nesse encontro, o sujeito decide manter algo que é exclusivamente seu.

O sujeito deposita crédito nas suas especulações imaginárias e aí o segredo assume a sua plena função. Para a psicanálise, em contraposição à confissão, não se está no registro discursivo do "fale tudo", mas do "fale o que lhe vier à cabeça", que se pode desdobrar em "fale o que quiser". Essas últimas indicações implicam, então, em uma maneira de convocar o poder da escolha pessoal, da decisão de falar, ou não, os próprios pensamentos. O "fale o que lhe passar pela cabeça" da análise engendra um intervalo de dúvida e incerteza, que visa impedir o congelamento do sujeito em uma cena, em um mito.

A importância do segredo relaciona-se à descontinuidade que é introduzida no fluxo livre da fala. O sujeito materializa a lacuna própria de sua constituição. Para dinamizar uma lógica tão consistente, o grande recurso que a análise dispõe é o convite à continuidade. Não foi dito tudo hoje. Silenciosa constatação compartilhada pelo analista e pelo analisando. Ao interromper a sessão, e dizer: "continuamos na próxima", o analista relativiza o valor do segredo, inscrevendo-o em uma dimensão temporal e, portanto, não absoluta.

 

REFERÊNCIAS

Chagas, L. F. (2014). Afinal, segredo de quê? Uma leitura metapsicológica da função do segredo na violência sexual e o atendimento em instituição de saúde. Dissertação de mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

De Certeau, M. (2006). La fábula mística (siglos XVI-XVII). Madrid: Ciruela.         [ Links ]

Delumeau, J. (1991). A confissão e o perdão. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Evangelho segundo São Mateus. (2002). In Bíblia de Jerusalém (pp. 1703-1758). São Paulo: Paulus.         [ Links ]

Fliess, R. (2010). Silêncio e verbalização: um suplemento à teoria da "regra analítica". In Nasio, J.-D. (Org.). O silêncio na psicanálise (pp. 58-80). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1949).         [ Links ]

Freud, S. (1972). Fragmento da análise de um caso de histeria. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. VII, pp. 1-119). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905).         [ Links ]

______. (1972). Recordar, repetir e elaborar. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. XII, pp. 189-203). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914).         [ Links ]

Hildegarda de Bingen. (1999). Scivias: conoce los caminhos. Madrid: Trotta. (Trabalho original publicado em 1513).         [ Links ]

Julien, P. (1996). O estranho gozo do próximo: ética e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Karnal, L. (2014). Pecar e perdoar: Deus e o homem na história. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Lacan, J. (1985). O Seminário. Livro 20. Mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

______. (2005). O triunfo da religião. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Maria Candida dell'Eucaristia. (2004). Nella stanza del mio cuore: scritti autobiografici. Roma: Edizioni Monte Carmelo.         [ Links ]

Miller, J.-A. (1997). O segredo do nome do pai. In J.-A. Miller. Lacan elucidado (pp. 419-436). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Pagano, S. (2000). Juan Nepomuceno. In C. Leonardi, A. Riccardi & G. Zarri. Diccionario de los Santos (Vol. II, pp. 1384-1387). Madrid: San Pablo.         [ Links ]

Pascal, B. (2005). Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1776).         [ Links ]

Rosa, M. D. (2009). Histórias que não se contam: o não-dito na psicanálise com crianças e adolescentes. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Santa Teresa de Ávila. (1995). Aspiraciones de Vida Eterna. In Santa Teresa de Ávila. Obras Completas (pp. 956-961). São Paulo: Carmelitanas, Loyola. (Trabalho original publicado em 1583).         [ Links ]

Valas, P. (2001). As dimensões do gozo: do mito da pulsão à deriva do gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
ARIO BORGES NUNES JUNIOR
Av. Vereador José Diniz, 3720 – cj. 307
04604-007 – São Paulo – SP
tel.: 5535-0179
abnjaos@gmail.com

Recebido 24.05.2015
Aceito 13.06.2015

Creative Commons License