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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.60 São Paulo jul./dez. 2015

 

LITERÁRIAS

 

Cuspe, catarro, remela e caca de nariz

 

 

Luciana Saddi

Psicanalista. Membro efetivo da SBPSP. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Autora dos livros O amor leva a um liquidificado (Casa do Psicólogo) e Perpétuo Socorro (Editora Jabuticaba)

Endereço para correspondência

 

 

Não era verdade, não podia ser verdade, onde já se viu que beijo na boca era uma coisa daquelas, duas línguas se encostando? Uma entrando na boca da outra. Onde inventaram uma coisa tão nojenta? Já era difícil viver num mundo onde o coelhinho da páscoa era uma invenção cretina de adultos tentando convencer crianças estúpidas que um coelho bota ovos e ainda por cima de chocolate, como? Se os coelhos são brancos, é óbvio que os ovos não podem ser escuros! É mais que óbvio ululante que essa é uma crendice para quem quer comer chocolate até explodir, como minha mãe, por exemplo, que acredita em coelho da páscoa porque lhe convém. Mas beijo na boca? não pode ser uma coisa podre dessas, parece tão lindo na televisão! Nunca vi nenhuma língua pra fora das bocas beijoqueiras. Uma língua lambendo outra língua nem em novela nem em filme nem na vida real - nunca vi meus pais se beijarem, nunca.

Só pode ser mentira daquelas meninas do vizinho. Agora não venham vocês me dizer que os atores mentem, que beijam de boca fechada, que fingem e por isso nunca vemos línguas nos seus beijos. Será que a humanidade se transformou numa coisa podre de salivas alheias sendo engolidas junto com pedaços de comida? Que sina! Ou beijar na boca é igual a chupar picolé de limão sentada no lixo da cozinha? Quem inventou uma infâmia dessas? Línguas estranhas se debatendo umas nas outras, saliva dos outros sendo engolida como cuspe, como catarro, como remela de olho ou caca de nariz. Não combina com beijo na boca! Uma coisa que é só minha entrando na sua e uma coisa que é só sua sendo engolida por mim. E ainda tem gente que diz que é bom beijar na boca, como? Só se for tortura chinesa, me falaram que os chineses torturam melhor que os outros povos, eles te mandam beijar na boca senão arrancam suas unhas com alicate e você beija a boca do cachorro, que é a única com língua disponível, porque os cães são uns lambedores nojentos. Se me falarem: abre a boca, põe a língua pra fora e encosta essa sua língua de chupar picolé na língua daquele menino, eu me mato. Eu que não vou engolir saliva de menino nenhum. Juro. Jamais.

Tem sido muito difícil viver nesse mundo onde as meninas do vizinho inventam qualquer coisa pra chamar a atenção. Há dias que o beijo de língua não sai da minha cabeça. Acordo e penso: será verdade? Elas falaram com tanta convicção e eu era a única que não sabia de nada, nem fingi que sabia, tamanha a surpresa, que asco! Nunca pensei nisso. Já pensei em tanta coisa... já pensei que cadeira podia ter qualquer outro nome, podia ser chamada de lápis ou de garrafa e eu podia ser Dorisflor, Reverenda ou Crista, sei lá! Já pensei que os mortos comem as flores do cemitério na hora da solidão. Mas língua com língua, que nojo!

Não sei se é verdade, dizem que na minha escola tem uma menina mais velha que paga com chocolate pra comer casca de ferida. Ela faz isso atrás das árvores, perto do muro. Tenho uma enorme no joelho, mas não vendo não. Só de pensar numa coisa dessas... dá vontade de desmaiar. Casca de ferida e língua, cada um que cuide bem da sua. O comércio é muito instável, diz meu pai, a qualquer momento, uma coisa que vende muito, para de vender. E tem uma outra garota que chupa pus até de graça! Eu que não quero saber. E falam que a Santa da Capela chora lágrimas de sangue e que as freiras ficam de boca aberta embaixo da Santa, será? Assim, vestidas de uniformes, as meninas e as freiras não parecem ser pessoas sujas.

Hoje olhei a língua do meu cachorro, que sempre me lambe, a língua do gato e a do passarinho na gaiola, eu acho que passarinho não tem língua, um problema a menos. Meu cachorro lambe tudo, lambe chão, lambe lixo, lambe a pele suada da gente. A língua do cachorro é grande e macia. Cachorro não tem lábio, mas em compensação tem muitos dentes. Abri a boca dele e pus minha língua na dele, foi a pior coisa que já senti na minha vida. Agora imagina lamber a língua dele e ele lamber a minha, socorro! Ele come carniça! Odeio boca fedida!

Hoje abri a boca e lambi o espelho na tentativa de provar se existe ou não existe o beijo na boca de línguas se lambendo. O espelho é gelado demais, achei nojento. Ontem lambi um sorvete de uva, imaginei que era a boca do homem dos meus sonhos, a boca do meu futuro marido... não vou casar. Minha amiga falou que beijar é bom, se não fosse ninguém beijava. Meus pais não beijam, juro que eles não beijam. Os pais dela vivem se beijando e ela garante que tem língua envolvida na coisa. Podia ser que um põe a língua na boca do outro, mas o outro não põe a língua na boca do um, fica mais limpinho, mais organizado, e depois muda, alguém dá uma ordem e aquele que não pôs, põe. Mas parece que é tudo ao mesmo tempo! O caos.

Você sabia que odeio saber que Papai Noel não existe? - o maior golpe que já sofri. E agora não posso nem contar aos meus pais que eles são uns otários, porque gostam tanto do Papai Noel que me dá até pena. Também não posso falar de beijo na boca, eles nunca beijaram, não seria justo com eles inventar moda!

Talvez as meninas tenham alguma razão, talvez seja um pouco verdade, vi uma pontinha de língua no beijo da novela. Outro dia elas me disseram algo ainda pior: o pênis entra na mulher. Me arrependi de ter ido nadar na piscina delas, cada vez que vou lá é um choque, ainda bem que vão se mudar logo daqui. Como assim? Xixi com xixi. Minhoca? Ele faz xixi nela. Ela faz xixi nele? Um pesadelo. Onde o mundo vai parar? Só falta alguém falar que tem cocô também nessa história. E eu achava que era só encostar que o filho vinha! Entrar já é demais, uma minhoca suja entra no lugar do xixi da mulher? É sujeira pra tudo quanto é lado, saliva é pinto! Justo agora que eu estava me acostumando com beijo na boca aparece uma história mais tenebrosa ainda?

 

 

Endereço para correspondência:
LUCIANA SADDI
Praça Morungaba, 66
01450-090 - São Paulo - SP
tel.: 11 99983-7195
lusaddi@uol.com.br

Recebido 10.04.2015
Aceito 25.04.2015

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