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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.60 São Paulo jul./dez. 2015

 

ARTIGOS

 

Modernismo, mulher e psicanálise. Adelheid Koch, Virgínia Bicudo, Lygia Amaral e Judith Andreucci: pioneiras da psicanálise em São Paulo1

 

Modernism, women and psychoanalysis

 

 

Teresa Rocha Leite Haudenschild

Analista didata e analista de crianças e adolescentes da SBPSP; representante do COWAP (Comitee Women and Psychoanalysis) da IPA na Febrapsi

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora retraça o começo da história da psicanálise em São Paulo, entrelaçada à literatura desde 1926, quando Durval Marcondes publica um artigo no Klaxon sobre crítica literária baseada na psicanálise, e é elogiado por Freud, que em 1928 dispõe-se a ler o primeiro número da Revista Brasileira de Psicanálise (que também publica dois artigos sobre literatura). Em 1936, a pedido de Freud, Jones convida Adelheid Koch, membro associado do Berlin Psychoanalytic Institute, para vir ao Brasil analisar futuros analistas. A partir de entrevistas com Eleonore, filha de Adelheid, e com Virgínia Bicudo, Lygia Amaral e Judith Andreucci, a autora relata o início da formação psicanalítica, quando Virgínia torna-se a primeira candidata latino-americana, ao deitar-se no divã de Adelheid, em outubro de 1937. Essas pioneiras da psicanálise da SBPSP, mulheres destemidas, têm sempre, em suas vicissitudes, Durval Marcondes como companheiro inabalável.

Palavras-chave: Expressionismo. Impressionismo. Formação psicanalítica. Modernismo.


SUMMARY

The author traces the early history of psychoanalysis in São Paulo, and shows how it was interwoven with literature, when in 1926 Durval Marcondes publishes an article in "Klaxon" about literary criticism based on psychoanalysis, which is praised by Freud, who, in 1928, reads the first issue of the Revista Brasileira de Psicanálise (which also includes two articles on literature). In 1936 at Freud's request, Jones invites Adelheid Koch, an associate member of the Berlin Psychoanalytic Institute, to come to Brazil to analyse future analysts. Through interviews with Eleonore (Adelheid's daughter), Virgínia Bicudo, Lygia Amaral and Judith Andreucci, the author recounts the beginnings of psychoanalytical training, when Virginia lies on Adelheid's couch and becomes the first Latin American candidate in October 1937. These brave women, pioneers of the SBPSP, in their vicissitudes, always counted on Durval Marcondes as a steadfast companion.

Keywords: Expressionism. Impressionism. Psychoanalytic training. Modernism.


 

 

Numa noite chuvosa, em dezembro de 1917, um homem moreno entra em um casarão à Rua Líbero Badaró, 111, onde uma mulher está expondo seus quadros, para em frente a uma tela chamada "O homem amarelo" e começa a rir, rir, sem parar. "Quanto mais ele ria, mais eu me enfurecia", lembra a pintora (Batista, 1985, p. 74). Alguns dias mais tarde, ele traz a ela um soneto, fruto do impacto que o quadro lhe causara.

Ele era Mário de Andrade, ela Anita Malfatti.

Ele fora fecundado por ela, e lhe trazia sua produção.

Um homem artista reconhece o vigor de uma mulher artista e com ela faz parceria viva pelos próximos quase trinta anos de vida que lhes restam, dedicando-lhe um livro (Losango cáqui, 1926), oferecendo a ela seu "braço forte" e uma amizade "para além da morte" (M. Andrade, 1989, p.147).

Numa época em que a mulher era considerada posse do homem, Mário de Andrade fica de tal modo "possuído" pelo novo trazido por Anita, que começa a assinar revistas de arte expressionista e estudar alemão para lê-las. Mário, ainda parnasiano, nunca mais será o mesmo após o encontro com Anita Malfatti: "aqueles quadros foram a revelação", diz ele.

São Paulo era uma cidade com 300 mil habitantes, fora do eixo cultural acadêmico, tendo como único museu a Pinacoteca do Estado e como única escola de arte o Liceu de Artes e Ofícios.

Anita Malfatti é uma ruptura com a arte oficial, e nem sabe disso: começou a pintar com os modernos expressionistas, quando esteve em Berlim por três anos, e continuou, em New York, na Independent School, por dois anos, a pintar livremente: "A onda" e "Ventania" são, segundo ela, expressões do entendimento das fontes de energia vital (Batista, 1985).

Mário de Andrade estava prestes a romper com a simetria do parnasianismo, a procurar sob o palimpsesto que é o Parque do Anhangabaú, formatado à francesa (Souza de Carvalho, 2000), o coaxar dos sapos: "Foi. - Não foi. - Foi. - Não foi".2 "Onde as tuas bananeiras? Onde o teu rio encanecido pelos nevoeiros, contando histórias aos sacis?" (1922, p. 93).

Ele vai procurar, como Anita, na assimetria do expressionismo, formas livres que comuniquem melhor a "natureza" brasileira e a sua própria, interior.

A essa mesma época em São Paulo, Franco da Rocha está lendo Freud, procurando "entender as fontes de energia" psíquica. Nomeado em 1918 primeiro professor de Clínica Neuropsiquiátrica da Faculdade de Medicina de São Paulo, sua aula inaugural versará sobre "a doutrina de Freud". Durval Marcondes, seu aluno, será o pioneiro da psicanálise em São Paulo, assim como Anita foi pioneira do Modernismo: em 1927 ele funda uma Sociedade Brasileira de Psicanálise, a primeira instituição psicanalítica da América Latina, tendo entre seus membros Menotti del Pichia, também pertencente ao "Grupo dos Cinco" (com Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade e Oswald de Andrade).

Durval publica no Klaxon (1922) e faz um ensaio de crítica literária (1926) baseado em psicanálise, que é elogiado por Freud. Este se interessa tanto por ler o que lhe chega do Brasil, que compra um dicionário de português para ler a primeira Revista Brasileira de Psicanálise, enviada a ele por Durval em 1928, a qual inclui dois artigos sobre literatura.

Mário de Andrade ganha de Paulo Prado as obras de Freud em francês e entremeia suas leituras com as revistas alemãs e francesas de arte moderna.

Psicanálise e Modernismo se entrelaçam: crescem lado a lado nesta São Paulo que acolhe o "desvairismo" (M.Andrade, 1922), que na próxima década será banido de várias partes do mundo.

Se em 1917 a arte de Anita é considerada por Monteiro Lobato um "furúnculo da cultura", arte "anormal" e "degenerada", como uma "peste" (1917), essa arte será vista, posteriormente, como a "negação da cópia" (O. Andrade, 1918), a saída do acadêmico, do simétrico, e abrirá caminho para a Semana de Arte Moderna em fevereiro de 1922, quando as expressões livres de todas as artes compareceram.

Tarsila do Amaral, mesmo com mestres acadêmicos e impressionistas, não formata sua obra à francesa (como diz Mário de Andrade ter sido formatado o Parque do Anhangabaú) e mostra em todas as suas cores os sapos, as bananeiras e os sacis.

"Fui buscar entre as hipóteses feitas por psicólogos, naturalistas e críticos sobre os primitivos de eras passadas, expressão mais humana e livre de arte", diz Mário de Andrade (1922, p. 74).

Com um pé no novo da arte europeia, outro no chão brasileiro, foram os brasileiros afinando seus passos mais próximos ao expressionismo, assimétrico, do que ao impressionismo, simétrico (Worringer, 1927). O expressionismo, no meu entender, lidando com estados psíquicos, com mundo interno, se aproximará mais da psicanálise do que o impressionismo, que lida com impressões perceptivas do mundo externo.

O expressionismo alemão, em 1937, é também chamado de arte "degenerada" pelo nazismo, que, ao lado da exposição de arte oficial que inaugura o novo museu de arte de Munique, faz uma sala dos "degenerados", entre eles, Klee, Kandinsky, Nolde, Kirchner, Kokhoska, Max Ernst, Frans Marc, Rottluff, chamados de anormais. Estes, que são os expoentes da arte moderna alemã, terão que buscar outras terras onde sua produção poderá germinar. A maioria foi para os Estados Unidos, alguns para a América Latina. Para cá vem também, fugindo do nazismo, Adelheid Koch, nossa fundadora, em meados de 1936, passando por Londres. Nessa mesma época, morre Lorca na Espanha, por ser um desses "anormais", informatável por qualquer regime totalitário...

 

ADELHEID KOCH

Adelheid só procura Durval Marcondes em meados de 1937: fora-lhe preciso mais de seis meses, entre sua chegada e o oferecimento de seus préstimos à psicanálise. Queria aprender português, ambientar-se à cultura brasileira, instalar-se, para depois apresentar-se como psicanalista. Eleonore, sua filha, conta que após uma temporada na Pensão Stettiner, na esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta, onde viram o Zeppelin passar no céu em 1936, instalaram-se numa casa nos Jardins (habitada por ela agora), e que se lembra de ter sido um problema a acomodação dos móveis, pois a casa em Berlim era muito grande, tendo a família que se desfazer de alguns deles...

 

 

Acredito que Adelheid deva ter sentido o mesmo em nível subjetivo: era uma mulher muito culta, apaixonada por literatura, teatro, música (tocava violino), artes plásticas... Ela conta que seus pacientes de Berlim traziam associações sobre peças de Shakespeare, Goethe e que estas não faziam parte do imaginário de seus pacientes brasileiros. Ela teve, portanto, que restringir sua escuta à "casa" mental brasileira. Mas creio que com isso também aprendeu a se desfazer de alguma "mobília" interna, abrindo-se para o imaginário "brasileiro". É assim que a vemos participando ativamente da vida cultural da cidade, fazendo conferências na Faculdade de Direito (1938), sendo assistente de Durval na cadeira de psicanálise na Escola de Sociologia e Política entre 1939 e 1941, escrevendo comentários psicanalíticos de peças em jornais (1951). Ela se formara em medicina em 1924, sendo seu pai clínico geral: Julius Schwalbe, fundador do primeiro jornal alemão de medicina (Deutsch Medicine Wochenschrift) e amigo de Thomas Mann.

Seu marido, Ernest, advogado, é neto do proprietário da maior editora alemã: a Ullstein, que existe até hoje e comemorou seu centenário em 1998. Ele é o companheiro que apoia Adelheid em tudo, e tem participação ativa na Congregação Israelita de São Paulo, da qual chegou a ser presidente, depois de ter colaborado em seu jornal.

Os primeiros analisandos da doutora Adelheid Koch foram Flávio Dias (arrebanhado para a causa psicanalítica por Durval, durante um trajeto de bonde) e Virgínia Bicudo. Depois, Darcy Uchôa, Durval, Lygia Amaral, Isaías Melshon, Ferrão, Judith Andreucci.

Virgínia Bicudo conta que, no início, a doutora "não sabia falar bem português" e então os analisandos tinham que se fazer entender como possível, em inglês, alemão até... Havia uma boa vontade, de ambos os lados, advinda da disponibilidade de viver a experiência analítica.

No início, Adelheid Koch era a analista, a professora, a fonte tanto da experiência de autoconhecimento quanto de ensino.

Lygia Amaral conta que um dia, vindo para a sessão com um livro de Melanie Klein, sentiu como que uma repreensão por parte de Adelheid, que era freudiana. "Mas a gente podia reclamar também. A gente tinha espaço para isso" (Sagawa, 1999). E é este clima de liberdade para o crescimento singular, sentido pelos analisandos de Adelheid, que irá vigorar.

Judith Andreucci, que foi da 5ª turma de formação, conta que quando Adelheid adoeceu, os alunos lhe prestaram uma homenagem e descobriram que o desejo da analista e professora era ter uma joia, uma água-marinha3. Encarregada pelos colegas de comprá-la, Judith procurou por São Paulo inteira e encontrou uma, de um azul lindíssimo, em forma de coração: "a mais bonita que já vi em toda minha vida...". E assim ofertaram-na, num colarzinho de platina, à Adelheid, "nossa mãe, nosso tudo"...

Adelheid foi mesmo "tudo": o canteiro, a rega, o sol. E nesse "tudo" foi ajudada por Durval, que oferecia os espaços, circunscrevia os limites, emitia pontes de relacionamento da psicanálise com os diversos setores da comunidade científica e cultural de São Paulo e as mantinha, como manteve a cadeira de psicanálise na Escola de Sociologia e Política desde 1939 (Bicudo, 1948).

Durval, primeiro lutou para manter a psicanálise dentro da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo: concorre à cátedra de Neuropsiquiatria em 1936 para suceder Franco da Rocha, mas é vencido por Pacheco e Silva, com essa derrota a psicanálise perde a oportunidade de instalar-se na Faculdade de Medicina e passa a enfrentar o antagonismo e a hostilidade da psiquiatria acadêmica (Montagna, 1994). Esta se articulará com a Liga Nacional de Higiene Mental, que preconiza a eugenia, tomando uma posição nazifascista, nos anos 1930 (Freire Costa, 1976; Sagawa, 2000). A esse modelo de higiene mental, trabalhando como psiquiatra escolar junto ao Instituto de Higiene da Secretaria de Saúde Pública fundado por Geraldo de Paula Souza, Durval contrapõe um serviço de higiene mental escolar "multidisciplinar", contando com o psiquiatra, o pediatra, o neuropediatra e o psicólogo escolar, função criada por ele. "Como eu era psiquiatra escolar, fui propondo um serviço de higiene mental escolar: sair para fora dos portões da escola, preparar professoras, averiguar o nível mental das crianças, o seu ambiente familiar" (Nelken & Junqueira Filho, 1978, p. 8).

Durval requisita professoras públicas como Educadoras Sanitárias: elas vão aos diversos bairros, de diversas classes sociais, conversar com os pais, assuntos como, por exemplo: "Por que é que seu filho precisa tomar vacina?". Essas moças saem do caminho batido entre sua própria casa e escola e se aventuram por São Paulo. Entre elas estão Virgínia Bicudo e Lygia Amaral, cujo noivo lhe diz que "moça direita não anda em rua Direita". Ela responde: "Esse é o meu caminho. É lá que eu passo para ir aos bairros a serem visitados".

E é assim que essas "novas mulheres" dos anos 1930 vão mudando os costumes e levando seus homens a sair do trilho e contribuir com elas. O modelo de higiene mental calcado numa ideologia política convive com um serviço de higiene mental que vai a campo, levando a escuta psicanalítica aprendida dentro dos consultórios (Nelken & Junqueira Filho, 1978) aos lares das crianças das escolas públicas... Adelheid Koch, ao receber essas professoras como analisandas, lhes pergunta quanto ganham: "a quantia estipulada por ela para o pagamento da análise era a metade do salário delas", diz Lygia Amaral. Adelheid "não era dinheirista", diz Judith, "por isso não podia comprar joias" - sua preocupação, como Cornélia, era com seus filhos e filhas analíticos...

Convidada por Durval a colaborar com o Instituto de Higiene, Adelheid profere palestras sobre psicanálise, sem ônus: sua contribuição a um serviço social.

Eleonore, sua filha, conta que até hoje pessoas se aproximam dela para contar o quanto foram beneficiadas pela convivência com sua mãe, e diz se alegrar muito com isso: "acho que ela caiu da escada para cima", diz ela sorrindo. E explica que, embora tendo que deixar uma vida mais rica na Europa (conta que sua mãe aprendeu a lavar roupa no Brasil), enriqueceu sua vida muito mais do que imaginara, pois aqui sempre foi extremamente bem tratada e valorizada pelos psicanalistas por seu trabalho, tanto aqui no Brasil quanto internacionalmente, no sentido de trazer e manter a psicanálise em São Paulo.

Em 1966, Adelheid começou a sentir os primeiros sintomas da doença4 que a levaria à morte, em 1980. Antes de levá-la aos Estados Unidos, em 1967, Ernest pede-lhe que faça uma foto. "Ela era muito bonita e ele sabia que ela poderia voltar com a face um pouco paralisada", diz Eleonore (2000). Ernest queria acrescentar mais uma foto viva àquelas que ele tirara durante toda a vida dela, as quais nos ficaram como um testemunho do legado amoroso dela (vista por ele) a nós.

Nas entrevistas dadas por ocasião do 25º aniversário da oficialização definitiva de nossa Sociedade pela IPA, em 1976, Adelheid "[...] enfatiza a importância do componente afetivo na qualificação do analista" (Alves Lima, 1976), e, embora preferisse falar "mais de suas limitações que de suas qualificações", ao falar do clima afetivo da Sociedade em meados dos anos 70, diz que "a nossa atmosfera tem sido sempre harmoniosa e pacífica". E diz orgulhar-se disso um pouco, "porque foi também um pouco por minha influência" (Cunha & Azambuja, 1976).

Eleonore conta que "ela era doce, meiga, forte, mesmo com idade"... "Sentia falta dela em criança, porque ela trabalhava muito e não vinha almoçar. Sentia falta, mesmo quando ela ficava brava: ficava vermelha. Meu pai ficava branco quando bravo, ela vermelha... Ela cuidava da gente, conversava sobre os namorados, sobre tudo. Era muito próxima afetivamente...".

Assim como cuidou afetivamente de suas filhas e do seu jar-dim, Adelheid, com sua "afetividade, capacidade de adaptação" e com a "simplicidade" com que se colocava "diante das pessoas e do cotidiano" (Alves Lima, 1976), cuidou amorosamente da implantação da psicanálise em São Paulo. Dessa "árvore-mãe" fértil, muitas sementinhas florescem por esse Brasil afora: Fortaleza, Recife, Maceió, Brasília, Minas Gerais, no interior de São Paulo, Rio Grande do Sul: analistas que continuam a repassar o que receberam dela através da nossa primeira geração de analistas, "filhos" da doutora Koch. Para ela, Judith Andreucci compôs, em nome dos colegas todos, este poema, no dia de sua despedida:

Alguém já te disse um dia
Que em ti há Dom singular
Que lembra a graça das velas,
Livres, soltas, a voar?

Alguém já te disse um dia
Que a ave, a fonte a correr
Como tu se movimentam
Pelo prazer de viver?

Alguém já te disse um dia
Que há algo raro, real:
O poderes ser tu mesma,
Assim simples, natural?

Se ninguém ainda te disse
Diz quem a ti deve tanto:
Que ter a tua coragem,
É o teu maior encanto!...

 

VIRGÍNIA LEONE BICUDO

É com uma risada que ela me recebe ao telefone quando lhe peço uma entrevista: "Falar do que fiz, para quê? Estou interessada no presente, no que ando fazendo agora. Não sei se vou me lembrar do que fiz: isso já foi, está nos livros. Venha, que eu quero conversar com você. Talvez me lembre de alguma coisa interessante, esqueça outras... Mas será que isso é importante? Venha". E ela se despede contente: "Até quinta!"

Virgínia Bicudo é assim: inteira. De uma firmeza e caráter à prova das intempéries. Se lhe perguntam a idade, ela responde: "Sou do tempo em que era falta de educação se fazer essa pergunta".

Filha de dona Joaninha Leone, nascida na Sicília, e Theófilo Bicudo, paulista, Virgínia herdou deste a curiosidade e a determinação, e daquela a disponibilidade e a alegria. O pai era funcionário público do Estado, e tendo desejado ser médico e não o conseguido, organizou um curso para vestibulandos à Universidade.

"Nasci na Luz", diz Virgínia, rindo. E como rio também, ela repete: "Na Luz!". E conta que sua primeira escola foi no Brás, com "os italianos", e depois estudou na Escola da Praça (Caetano de Campos, na Praça da República), escola de "granfinos". Diz que quando foi para a essa Escola da Praça ficou muito feliz: começou a ter as oportunidades de estudo que as moças de uma classe social mais elevada tinham, com as quais veio a trabalhar depois e se desenvolver. Numa entrevista anterior, ela conta que

[...] para não ser rejeitada, tirava nota boa na escola. Desde muito cedo, desenvolvi aptidões para evitar a rejeição. Você precisa tirar nota boa, ter bom comportamento e boa aplicação, para evitar ser prejudicada e dominada pela expectativa da rejeição, diziam meus pais. Por que essa expectativa? Por causa da cor da pele. Só pode ter sido por isso. Eu não tive na minha experiência outro motivo. Meu pai era preto, minha mãe italiana, branca. (Mautner, 2000)

Virgínia forma-se professora primária em 1930. Nessa época já tem interesse por psicanálise e assiste às conferências ministradas por Durval Marcondes no anfiteatro do Jardim da Infância, sob os auspícios da Sociedade de Educação, presidida por Raul Briquet.

Temendo ser rejeitada na Universidade de São Paulo, como o pai, entra na Escola Livre de Sociologia e Política em 1931. O interesse dela nesse momento é conhecer as leis que regem o social:

Eu me interessei muito cedo por esse lado social. Não foi por acaso que procurei psicanálise e sociologia: fui buscar defesas científicas para o íntimo, o psíquico... Fui procurar na sociologia a explicação para questões de status social. E na psicanálise, proteção para a expectativa de rejeição. Essa é a minha história. (Mautner, 2000)

Em 1932 é convidada para integrar o quadro de Educadoras Sanitárias por Durval Marcondes, seu professor de psicanálise na Faculdade de Sociologia, o qual consegue em 1939 regulamentar o curso, convidando, em 1941, Virgínia como assistente, para suceder Adelheid Koch.

No início dos anos 30,Virgínia já lia bastante sobre psicanálise e já se interessava por compreender as leis que regem o psíquico.

É assim que ela será a primeira candidata a se deitar num divã na América Latina, iniciando análise com Adelheid Koch, em 1937. Referindo-se a essa análise, Virgínia diz:

Eu acho que foi muito bem organizado esse setting, porque eu permaneço pelo menos até hoje fiel a essa exigência de se manter a situação analítica sem interferências de outras formas de se comunicar. Eu acho que fui bem formada, porque eu fiquei tão natural! A gente não mistura a situação analítica com outro tipo de relacionamento. De modo que a doutora Koch lançou muito bem a semente em nós... (Sagawa, 1999)

Virgínia, como uma das primeiras analisandas da doutora Koch, que só mais tarde pôde perceber que tinha que cobrar me-nos por seu trabalho, teve que pagar muito caro por sua análise:

o honorário mínimo correspondia ao quanto eu ganhava por mês como educadora sanitária, para morar, comer, vestir. Aceitei, pensando que a doutora Koch iria conhecer minha situação e então baixaria seus honorários. Enquanto isto emprestei do Governo Estadual 12 ordenados e, durante um ano, paguei mensalmente minha análise. Ao término de um ano, o extrato em minha conta era zero, mas pude continuar a análise pois começara o trabalho com dois pacientes: um jovem sem recursos econômicos e um jovem filho de fazendeiro, com boa situação econômica. (Bicudo, 1988, p. 44)

Não sendo médica, abriu precedente para que candidatos não médicos se apresentassem para formação psicanalítica, como foi o caso de Frank Philips.

Em 1944, juntamente com os analistas acima citados, faz parte do "Grupo Psicanalítico de São Paulo", presidido por Durval Marcondes, que se tornará, em 1945, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, filiada provisoriamente à IPA.

Em 1950, Virgínia cria um programa na Rádio Excelsior e uma seção na Folha da Manhã com o título "Nosso Mundo Mental", em que ela "aplica a psicanálise aos problemas da criança". Faz também conferências sobre esse tema no auditório da Folha e depois publica um livro com esse mesmo título. "Foi um grande sucesso em São Paulo", diz ela (Sagawa, 1994), e aproveita para salientar o papel de Nabantino Ramos, advogado, um dos donos da Folha da Manhã, que faz a formação no Instituto de Psicanálise e participa ativamente da divulgação da psicanálise desde os anos 50 e do relançamento da Revista Brasileira de Psicanálise, em 1967.

Virgínia vai para Londres em meados dos anos 50, frequentando cursos na Tavistock, e na British Society, com Melanie Klein e Paula Heimann, fazendo reanálise com Frank Philips, que se mudara para a Inglaterra, em 1945, para fazer formação psicanalítica, e estava sendo reanalisado por Melanie Klein. Ela conta que em Londres pôde viver de perto o que era ter que se desenvolver em meio a preconceitos: "ou se era do grupo kleiniano ou se era do grupo freudiano". "Eu ficava de fora. Nunca fiquei de um lado ou de outro por preconceito. Aprendi a me defender de preconceito qualquer que seja: físico, psíquico, social... Se há preconceito, não há contato com o novo: não pode haver ciência... O preconceito é o avesso da ciência. Eu prezava muito Freud: foi ele que descobriu as leis psíquicas mais importantes. Não podia deixá-lo de lado por preconceito... Foi lá que eu aprendi a ficar atenta ao pré-conceito", diz ela, escandindo a palavra.

Quando volta, em 1960, Virgínia organiza o nosso Instituto de formação de candidatos, do qual é diretora de 1961 a 1975.

Em 1971, ela organiza o Instituto de Brasília, levando professores de nosso Instituto para lá e convidados ilustres, entre eles, Bion.

Ela tem uma vastíssima produção, tendo trabalhos editados em revistas nacionais e internacionais, como atesta a sua extensa bibliografia, que inclui desde temas psicanalíticos, como agressão, carência afetiva, comunicação não verbal, depressão, fantasia inconsciente e acting-out, homossexualidade, identificação projetiva, mente homicida, posição pré-depressiva, regressão, resistência à psicanálise, sintomas obsessivos, sonhos, transferência, temas ligados à Formação e à História da Psicanálise, assim como temas referentes à produção psicanalítica e à fundação de novos núcleos, até comentários de filmes e peças teatrais. Escreveu também sobre a psicanálise e a sociedade, saúde mental, educação; sobre Freud, Melanie Klein e Bion, e sobre psicanálise infantil.

Inicia o Curso de Formação de Analistas de Crianças em 1976, convidando o casal uruguaio Prego e Silva para ministrar o primeiro curso, contando com a colaboração de Lygia Amaral em 1979 (Bicudo, 1994). Ao final da entrevista, peço-lhe para falar sobre o que pensa ser importante em relação à psicanálise.

Ela diz que a contribuição específica da psicanálise é primeiramente a proposta de conhecimento do espaço psíquico e, em segundo lugar, a integração deste com os espaços físico e social. "Quanto mais saudável uma pessoa, mais integra esses espaços, quanto mais doente, mais os desintegra: o doente quebra a lei da integração físico-mente-social... Agora percebo que, subjetivamente falando, o que me levou à psicanálise foi a necessidade da integração da minha personalidade, nos três níveis. Percebi a importância do meio social no desenvolvimento quando fui da Escola do Brás para a Escola da Praça: as oportunidades eram outras. No início escolhi a psicanálise porque nela encontrei abertura para o existencial social: eu podia ter uma formação como psicanalista e ter um lugar de trabalho no social. Só aos poucos fui descobrindo que o ser psíquico é mais importante que o ser social: é o que comanda a integração com o social e com o físico, embora o físico venha antes. Mas o físico é limitado, o psíquico não: pode se expandir por toda a vida, está sempre aberto para o existir. Primeiro há o espaço físico do útero, que muda com o nascimento e consequentemente abre espaço para o psíquico. Então o físico e o psíquico vão precisar do espaço social para se desenvolverem, ao mesmo tempo que vão produzindo esse espaço social. A criança vai precisar dos cuidados físicos e psíquicos da mãe para poder crescer física e psiquicamente, ao mesmo tempo que vai havendo crescimento psíquico da mãe e o espaço social da criança e dela também vai se alargando. Tudo vai se articulando."

Então ela me pergunta: "Por que estamos falando disso?". Respondo: "Estou interessada em saber como é que a senhora foi des-virginando espaço para a psicanálise com a sua personalidade". Ela ri: "Que coragem a sua!". E, pensativa, me responde que essa é a história dela: ao dar-se conta de como a ampliação do espaço psíquico era importante para ampliar o espaço social, começara a ampliação do seu meio social, indo da escola do Brás para a Escola da Praça, onde teve muita receptividade e fez muitas das amizades que tem até hoje. E, ainda pensativa, continua: "o brasileiro é muito receptivo ao novo e isso quer dizer que temos receptividade psíquica, e se a temos, podemos ampliar o espaço social apropriado para a existência do ser humano".

Essa é Virgínia Bicudo: viva, entusiasmada, transmitindo sempre algo novo, como se colhido ali, no momento em que com-vivemos.

Essa foi a segunda mulher-esteio da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

 

A terceira é Lygia Amaral.

 

LYGIA ALCÂNTARA DO AMARAL

Lygia Amaral me recebeu em seu terraço envidraçado, com vista para o verde e os pássaros da Praça Buenos Aires, e me contou que agora está só trabalhando meio período e "fazendo suas observações". Tem observado as crianças da praça e como são tratadas pelos adultos. Contou-me de uma menina muito pequena que ainda não sabia falar e que, quando vinha com o avô, soltava-se para brincar, mas que era presa ao colo pela babá quando vinha com esta. A menina percebeu a atenção de Lygia a ela e, assim, pôde ter iniciativa para libertar-se da babá e brincar.

Lygia Amaral viveu em fazenda, solta, subindo em árvore, montando a cavalo. Fez o primário em São Sebastião do Paraíso e depois veio morar na casa do tio, irmão da mãe, para estudar em São Paulo. Fez o ginásio no Santa Inês e de lá foi para a Escola da Praça fazer o Complementar e o Normal. Conta que o pai, José Proença de Alcântara, era fazendeiro, mas nunca prendeu as filhas: queria que estudassem, e sua mãe, Maria Pimenta de Alcântara, nunca se empenhou em casá-las, como faziam as mães daqueles tempos. Em 1929, ao se formar professora, recebeu cadeira em Presidente Prudente: ninguém da família falou "é longe, não vá". Até o bisavô, que gostava das netas e jogava cartas com elas, estimulou-a. Ela ficou lá apenas seis meses e voltou para São Paulo, indo para o Instituto de Higiene fun-dado por Paula Souza, onde conheceu Durval e a psicanálise. Sua irmã, Gleth, da qual Lygia tem um retrato feito por Tarsila, também tornou-se educadora sanitária e foi fundadora da Faculdade de Enfermagem de Ribeirão Preto.

Lygia Amaral, com a atenção dada por Durval Marcondes às Educadoras Sanitárias, oferecendo-lhes escuta e conhecimentos psicanalíticos, também pôde libertar-se dos trilhos oferecidos às moças de sua classe social.

Assim como Virgínia sai do Brás para a Escola da Praça, Lygia vai desta para o Brás e os bairros das classes menos abastadas: era a psicanálise abrindo seu caminho em São Paulo e ampliando espaços de convivência humana. Seu noivo teve que aceitá-la assim e aceitar também que ela sempre buscasse meios mais amplos para desenvolver seus conhecimentos e sua personalidade: ela, assim como Virgínia, vai a Londres depois da formação psicanalítica e frequenta cursos para trazer conhecimentos.

"Em dezembro de 1938, eu estava jogando tênis no Clube Inglês, minha irmã veio e disse: '- Olha, um presente de aniversário! Saiu a clínica que o Durval estava pleiteando'". Era uma clínica para formar profissionais de saúde mental, coroando o trabalho pioneiro que as educadoras sanitárias faziam por toda São Paulo, entre elas, Virgínia Bicudo. Em 1950, a então deputada Conceição Santa Maria visita a Clínica de Saúde Mental e possibilita uma bolsa de estudos a Lygia, que no ano seguinte ficará em Londres por seis meses, deixando aqui dois filhos pequenos. É a primeira vez que Lygia viaja à Europa, e o marido, para acompanhá-la, desfaz-se de parte de bens que acabara de herdar, após ouvir dela: "Vou, porque se não for e continuar o meu trabalho, tão difícil, não aguentarei seguir por muito tempo". Ela se "referia tanto ao trabalho com as crianças que visitava quanto ao trabalho com pacientes, que eram realmente muito doentes. E aí foi muito bom. Meu marido também foi" (1997, p. 84).

É assim que Lygia, que iniciara sua análise e o Instituto em 1945, parte em 1951 para a Europa, participando com Adelheid Koch do Congresso de Amsterdã, onde a Sociedade de Psicanálise de São Paulo é reconhecida pela IPA e onde conheceu Jones, "velhinho, ágil, com seus olhinhos muito expressivos" (Sagawa, 1994).

Em Londres, conhece Melanie Klein, que "é imponente, bonita apesar da idade, fala com segurança, mas há nela algo amargo que não sei definir" (Sagawa, 1994). Instala-se perto da Tavistock, onde faz cursos, torna-se amiga de Esther Bick e acompanha o seminário de crianças de John Bowlby, tendo como colegas Martha Harris e Dina Rosenblut. Torna-se também amiga de Izabel Menzies e Frances Tustin, que fazem análise com Bion. Na British Society, participa de tudo o que pode: seminários de Anna Freud, Melanie Klein, Paula Heimann, Winnicott e faz supervisões com Hanna Segal, emigrada da Polônia. "Eu não era kleiniana, não era annafreudiana. Eu era aquela que estava interessada nessa amplitude, nessa grandeza do espírito humano... ou da alma humana, como vocês quiserem" [...]."Encontrei pessoas de grande delicadeza, de grande capacidade de percepção, que não ficavam restritas a essas disputas de grupos". Lá em Londres "estavam também nessa época Décio Soares de Souza e Emílo Rodrigué", e "era um encanto estar ali com aquela gente que trabalhava tremendamente - vocês sabem que trabalho de analista é uma árdua tarefa" (1997, pp. 96-97).

Voltando ao Brasil, participa com Durval, em 1954, da organização de um Curso de Psicologia Clínica no Curso de Filosofia da USP, cujo "objetivo era levar para gente nova e interessada, eram vocês5 naquele tempo, o estudo dos problemas emocionais de um modo vivo, dinâmico","[...] levar os alunos a sentirem e perceberem de modo bem próximo as inferências psicanalíticas; e assim o estudo da psicanálise foi se desenvolvendo juntamente com a psicoterapia de grupo e individual do aluno" (1979, pp. 7-8).

E nesse mesmo ano do IV Centenário de São Paulo, participa do 1º Congresso Latino Americano de Saúde Mental, na Faculdade de Medicina, recebendo ordem de prisão, juntamente com Virgínia Bicudo, por não ser médica. Em junho de 1957, vemos Adelheid Koch, presidente da Sociedade, ainda às voltas com a fiscalização do trabalho do analista, receber normas do Ministério da Saúde quanto ao trabalho do psicanalista, cujos clientes devem ser "enviados por indicação escrita de médico diplomado sob cuja responsabilidade ficarão" (Medeiros, 1957).

Em 1959, Lygia torna-se didata.

Participa ativamente de congressos nacionais e internacionais, apresentando trabalhos sobre aspectos regressivos, acting-out e instinto de morte, adolescência, desenvolvimento infantil, introjeção e relação mãe-bebê.

Em 1979, no Curso de Formação de Analistas de Crianças, do qual é cofundadora com Virgínia Bicudo, inicia grupos de Observação da Relação Mãe-Bebê, os quais ministra até nos deixar.

 

JUDITH ANDREUCCI

Judith Andreucci diz sentir-se privilegiada por ter por pais "um casal muito raro": a mãe, carioca, é Noemia Seixas, pianista talentosa que desiste da bolsa de estudos que a levaria à Europa, como sua colega Guiomar Novaes, para casar-se com o médico paulista Aurélio Teixeira de Carvalho, recém-formado no Rio de Janeiro. Ele começa a clinicar em Santos, instalando a família numa casa em frente ao mar, perto da Ilha Porchat. Ele tem uma vasta biblioteca, em várias línguas, e Judith lembra-se da mãe tocando piano para o pai após o jantar: "os dois eram encantadores, formavam um casal lindo...".

Judith lembra-se do pai lendo para ela livros em francês, declamando poesias: "ajudava a sonhar". Aprendeu a ler com seis anos para ter acesso aos livros. Conta que junto desse seu lado sonhador havia um lado de menina travessa: ia cedinho para a praia andar pelas pedras, caçar siris, pescar... E nas férias ia para a fazenda do avô paterno em São José do Rio Pardo. Tinha paixão por mar e por mato.

Quando tinha nove anos a família mudou-se para São Paulo e Judith foi para o Colégio São José, como semi-interna, e estranha tremendamente: não podia conversar, não podia pisar fora da passadeira. E ela não seguia as regras previstas. Uma vez ela fez uma composição e as freiras chamaram o pai para perguntar se ela teria lido sobre o tema em algum lugar antes. O pai respondeu: "Jamais. Saiu da cabecinha dela mesmo". As freiras tinham esquema para tudo: para a prova não era permitido fazer composição livre, tinha que ser no padrão exigido. Foi muito difícil para Judith se adaptar: Judith ficou nesse colégio até os 12 anos, e "foi como um fechamento da liberdade e dos sonhos". As alunas valorizadas eram as que faziam muito bem trabalhos manuais e Judith nunca conseguiu: "é o meu nó górdio até hoje". Não ganhou nunca medalha de comportamento, mas tinha ótimas notas nas matérias.

A vantagem desses quatro anos no colégio de freiras é que elas eram francesas e só admitiam que se falasse em francês: quando Judith saiu de lá tinha adquirido o domínio da língua: pensava e falava em francês.

Aos 12 anos ela foi para o Caetano de Campos, a Escola da Praça, até finalizar o Curso Normal, aos 16 anos, e ganhar um concurso para ser professora no interior. Como o pai não a deixou ir, foi para o Instituto de Higiene estudar, como algumas de suas colegas.

Judith conta que viveu num ambiente culturalmente muito rico. A irmã de seu pai, Alice Teixeira de Carvalho, era pintora, aluna de Pedro Alexandrino, e depois que o avô morreu, veio morar em sua casa. Assim, Judith vai com a tia a exposições e concertos. Aproveitou muito a adolescência: "gostava de festas, carnaval, era muito alegre". Tocava violão e declamava, sendo aluna de Noemia Nascimento Gama. Casa-se aos 19 anos, depois de seis anos de namoro, com o médico Newton Luiz Andreucci, e vão morar no interior, em Bebedouro, por um ano.

Ao voltar a São Paulo, Judith volta para o Instituto de Higiene, na década de 40. Foi aí que começou a ser traçada a vocação de Judith: após o curso, ministrado por professores da Faculdade de Medicina, podia-se escolher estagiar em escolas, centros de saúde ou hospitais de doença físicas ou mentais. Judith escolheu estagiar no Juqueri e optou pelo pavilhão de crianças com problemas mentais. Depois do estágio foi fazer seu trabalho como Educadora Sanitária, visitando casas de crianças com problemas, indicadas pelas escolas que frequentavam. Foi percebendo então que o que lhe interessava era compreender a mente humana, sob orientação de Durval que oferecia conhecimentos psicanalíticos e sugestões de leituras.

Judith, tendo percebido que teria de ter mais conhecimentos para enfrentar seu trabalho, resolve então fazer vestibular para o Curso de Filosofia da Faculdade de Ciências e Letras da USP. Havia momentos em que achava quase impossível conciliar tanta coisa: casamento, estudos, trabalho... Mas termina o curso e faz pós-graduação em Psicologia, com Anita Cabral, responsável pela cadeira de Psicologia do Curso de Filosofia, no qual é convidada posteriormente por Durval, em 1969, a ser supervisora de Psicologia Clínica. Judith então realiza um trabalho de atendimento junto à Cruz Vermelha, onde seus supervisionandos vão estagiar. Lembra-se de que "cada passinho foi conseguido com muita luta", mas era um trabalho que era uma conquista em relação aos primeiros tempos como educadora sanitária. Bem mais tarde, Judith é honrada com o título de Psicóloga, pela Academia de Psicologia, "numa solenidade comovente": lá estavam os seus antigos supervisionandos, agora doutores...

Mas voltemos ao tempo em que Judith estava finalizando o Curso de Filosofia. Percebendo "que precisava mais do que somente a ampliação de conhecimentos", resolve fazer análise com a doutora Koch, iniciando sua formação em 1959. "A doutora sempre cobrou muito pouco. Se cobrasse mais, eu não poderia ter feito análise: eu pagava com o que ganhava".

No Instituto, muito cedo viveu a desidealização daquilo que a fazia acreditar que os psicanalistas eram pessoas singularmente equilibradas. Viveu grandes sofrimentos, "principalmente porque se tratavam de pessoas muito queridas: pessoas que desciam do Olimpo e passavam a viver na Terra"."[...] Acho que a gente aprende a ser mais humana quando passa por situações assim". Diz que foi muito sofrido, mas que aprendeu a ser firme e a não se abalar.

Em sua formação como psicanalista tem como supervisores Darcy Uchôa, Lygia Amaral, Virgínia Bicudo e Décio de Souza. Faz supervisões com Bleger, Grinberg e Libermann, quando vem da Argentina para cá, e com todos os estrangeiros importantes que nos visitaram, recordando-se particularmente de Rosenfeld e Bion. Faz também uma reanálise com Frank Philips, quando este retorna ao Brasil.

Judith gosta muito de escrever poesias e alguns de seus artigos científicos tem títulos poéticos, como "Aquele olhar". Escreve sobre acting-out e falso progresso, oralidade, estados pré-verbais, regressões em pacientes limítrofes e psicóticos, situações arcaicas e sobre critérios de cura, etapas finais do tratamento analítico e supervisão.

Lembrando-se da época em que as filhas eram pequenas, diz: "nunca deixei minhas filhas na hora da refeição: era uma correria pelas escadarias até o Anhangabaú6 ao ir pegar o ônibus para o Paraíso para almoçar com elas: morávamos na Rua Eça de Queiroz".

Diz que a família teve sempre prioridade para ela e que até hoje tem. "Meus pais sempre foram muito ligados entre si e aos filhos: herdei deles esses padrões tradicionais...".

Ocupou vários cargos na Sociedade: foi delegada da COPAL (antiga FEPAL) por vários anos, junto com Darcy Uchôa, acompanhando-o a todos os congressos latino-americanos; tesoureira em várias gestões e pertenceu à Comissão de Seleção de Candidatos e à Comissão de Seleção Didatas. Foi até convidada a ser presidente, mas recusou, pois na época as filhas eram adolescentes e precisavam muito dela.

Sempre valorizou muito ter tempo livre, para a família e para se aprimorar: ler, produzir, estudar seus casos: "cada caso é um enigma".

Sente-se muito gratificada por ter tomado esse caminho.

Diz sentir saudades do tempo em que fazia Filosofia e "era aluna do Cruz Costa, que nos estimulava a pensar, e do Lívio Teixeira, um vanguardista. Quando tinha prova, ele dizia: - 'Podem trazer tudo o que quiserem'. Levava-se uma livraria...". E acrescenta: "Se tivesse duas vidas, fazia Filosofia outra vez...".

Sente saudades também de Bleger e de Grinberg: um dia estavam numa galeria e este pediu à ela que desse um nome a um quadro. Ela escreveu o nome num papelzinho e Léon Grinberg também. Quando abriram, o nome era o mesmo: "Depressão". "É uma compreensão do inconsciente inexplicável pela razão, talvez até pela intuição."

Quando lhe pergunto se quer acrescentar mais alguma coisa, ela diz que se sente contente de ver seus "filhos analistas, cada um tão diferente do outro", por esse Brasil afora. "Esse nosso Brasil é tão grande. Imagine que, querendo voltar à fazenda de menina, fui parar há 20 anos a 2000 quilômetros daqui, às margens do Araguaia, onde pudemos comprar umas terras. São muitos espaços a serem conhecidos, aqueles cerrados imensos, como a alma humana. Aí eu parti para aquela amplidão. E foi a ventura da minha vida". E continua: "Era um lugar tão primitivo e onde os seres humanos são tão primitivos: são como diamantes que nunca foram burilados. O convívio com eles, com esses mundos tão escuros onde sempre tem um pontinho de luz de onde se pode partir, tem ajudado o meu trabalho com os pacientes e tem me inspirado a escrever. É para lá que vou nas férias, me recompor". E, "para finalizar, queria dizer que estou muito grata com a entrevista, que para mim foi uma dessas coisas imprevistas que gratificam a vida. Encontrei alguém que caminhou comigo e senti que me acompanhou".

Senti-me feliz como ela, seguindo-a por mares e matas, respirando o ar modernista da "Filosofia" e o ar aberto das margens do Araguaia, muito longe das gaiolas das freiras, pisando fora de todas as previstas passadeiras...

 

NOSSAS MULHERES

Se "alegria é a prova dos 9" (Andrade, 1928), nossas mulheres todas passaram por ela: discreta em Adelheid, exuberante em Virgínia, exata em Lygia e vivíssima em Judith, a alegria é o ponto comum em nossas primeiras mulheres analistas. Adelheid Koch, na primeira carta que escreve aos pais (1936), diz que aprendeu com eles a "estar atenta à felicidade".

A mulher exaltada pelos modernistas é "ser pensante, dotada de capacidade intelectual, ágil e alegre, esportiva e dinâmica, inserida no ritmo da modernidade, e não aquela outra, conduzida pelo homem, sua serva paciente e acomodada, chorona e lânguida"."[...] Não é mais o ser acomodado e amorfo, dependente do pai ou do marido, dominada pela família. Ela é inteligente, capaz de raciocinar - ressaltam e insistem Menotti e Mário. O que significa, em derradeira análise, ser livre, independente, segura de si mesma, condutora do próprio destino" (Silva Brito, 1976).

Nossas pioneiras, como vimos, foram corajosamente atrás de espaço de trabalho e de desenvolvimento de conhecimento e "encontraram na psicanálise esse espaço profissional e científico que não encontrariam em nenhum lugar" (Sagawa, 2000).

A mulher psicanalista, como a artista, constrói seu próprio espaço de realização e de respeito como ser humano, passo a passo, ao lado das mulheres modernistas.

 

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Endereço para correspondência:
TERESA ROCHA LEITE HAUDENSCHILD
Rua Tomé de Souza, 1029
05079-200 - São Paulo - SP
tel.: 11 3834-9428
thaudenschild@gmail.com

Recebido 29.04.2015
Aceito 08.05.2015

 

 

1. Apresentado em 2000, no evento "Freud: conflito e cultura" (MASP), no módulo "Brasil: Psicanálise e Modernismo", na mesa "Modernismo, mulher e psicanálise". Nesse trabalho, a partir de entrevistas (não publicadas) com Eleonore, filha de Adelheid Koch, Virgínia Bicudo, Lygia Amaral e Judith Andreucci, a autora relata o início da formação psicanalítica em São Paulo.
2. Poema de Manuel Bandeira, "Os sapos", citado por Mário de Andrade em seu poema "Anhangabaú".
3. Essa água-marinha pertence hoje a sua neta, Cláudia, filha de Esther, sua primogênita.
4. Câncer nas glândulas salivares.
5. Myrna Pia Favilli e Sonia Curvo de Azambuja que a entrevistam.
6. Seu consultório à época era na Rua Barão de Itapetininga.

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