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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.60 São Paulo jul./dez. 2015

 

ARTIGOS

 

A tirania do tempo real e o imperialismo da velocidade1

 

The tyranny of real time and the imperialism of speed

 

 

Marisa Pelella Mélega

Membro efetivo e analista didata da SBPSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo coloca em discussão a temporalidade que atravessa o ser humano, desde o nascimento até a morte, considerando a tecnologia que impõe uma velocidade que supera a condição sensorial e imaginativa da mente. Em outras palavras, baseando-se nas ideias de Bion, pretendemos considerar o confronto entre a protomente e a mente simbólica.

Palavras-chave: Tempo real. Experiência emocional. Protomente. Mente simbólica.


SUMMARY

This paper discusses the temporality that impacts the human being, from birth to death, considering the technology that imposes a speed that surpasses the sensory and imaginative condition of the mind. In other words, based on Bion's ideas we will consider the confrontation between the proto-mind and the symbolic mind.

Keywords: Real time. Emotional experience. Automatic mind. Symbolic mind.


 

 

A já tão conhecida discussão entre o homem e a máquina poderia ser redimensionada em forma de mente simbólica e mente automática ou mente e cérebro. Estamos num mundo em que a desigualdade mais gritante se dá entre a mente não pensante (a protomente), com a qual a sociedade se ocupa, oferecendo todo tipo de estímulo, alimentos, benesses e entretenimentos, e a mente pensante (mente simbólica), massacrada pelos fenômenos de grupo e massa, reprimida pela nossa epistemologia educacional desvalorizada, subnutrida pelo social que demanda produção vendável, índices de audiência etc., enfim, sucesso quantitativo.

Na obra de Huxley há uma curiosa "saída" para dar lugar à mente pensante: a criação de castas humanas, mais um testemunho do quanto é antiga essa questão. Ciro Marcondes Filho2, em Cenários do mundo novo (1998), encaminha essa discussão, lançando mão ora de sua cultura filosófica e política ora de sua sabedoria, desmascarando os "oásis eletrônicos" e mostrando a organização perversa e totalmente distante do "bem social".

A tecnologia existe, é um fato na "aldeia global", fruto da inteligência que busca novos recursos para enfrentar a condição humana, sua precariedade diante de um destino quase nunca aceito: a deterioração e a finitude da vida. Mas toda descoberta científica ou tecnológica, que desvenda e cria, não pode ser orientada por uma Ética.

O uso da descoberta teria de ser ético e isto é responsabilidade do homem e da sociedade.

No entanto, pensar sempre no seu uso para fins humanísticos, construtivos, para aumentar os recursos de vida, é pensar num só lado da moeda e não levar em conta a dualidade da mente humana.

Quem teve experiências com o mundo interno de crianças sabe de seu funcionamento maniqueísta e inexorável, um mundo mágico de necessidades imperiosas, de satisfações imediatas, de fantasias violentas, e até assassinas, e de desamparo brutal diante "desses fatos psíquicos". Somente um desenvolvimento emocional favorável à construção de um aparato para pensar pode fazer evoluir esse "estado de coisas". Parece que chegar a esse nível de funcionamento tem sido difícil para a humanidade, e um dos fatores para tal insucesso é o modo pelo qual se lida com as emoções e com a educação infantil, modo esse que não depende de informações ou receitas, mas do real exercício de funções parentais e equivalentes. Estas, ao falharem, são substituídas por comportamentos como aplacar, submeter, reprimir, seduzir, enfim, métodos educativos que pouco contribuem para o crescimento de uma mente pensante.

Diante de dois campos absolutamente fascinantes, o da comunicação social, sobre o qual não me sinto preparada para opinar ou fazer uma leitura crítica, e o da psicanálise, resolvi fazer aproximações entre as duas ciências que parecem ter um objeto de estudo em comum, contextos e metodologia diferentes, abordagem e aplicações também diversas. É uma tentativa muito incerta que conta com um único trunfo: a autenticidade de meu interesse por ambas.

O tempo, o espaço, a velocidade de realização, o sensorial sendo abolido e a experiência vai se tornando somente mental. Será isso possível?

A experiência sensorial tem uma velocidade diferente daquela do pensamento imaginativo. A práxis também. O homem pode imaginar estar no Japão, estando em São Paulo, e ter uma experiência através de memória-passado (se já esteve no Japão) ou memória-futuro (se idealizou a sua estada no Japão). Pode ser uma experiência estética ou não, um sonho, uma alucinação, mas, de qualquer modo, "sua mente foi lá!". O homem deseja ir para a Lua ou Marte e, em decorrência disso, inventa tecnologia para tornar sua fantasia realidade.

As novas tecnologias cobrem distâncias em tempos jamais imaginados e permitem encontros, comunicações, emissões e recepções, levando-nos a pular degraus do habitual processo que vai do contato sensorial e emocional do objeto de estudo e de comunicação elaboração simbólica e pensamento.

O problema atualmente parece ser não mais o de como "distribuir" a informação, como "divulgar" a ideia num curto tempo, e sim qual ideia e qual informação!

A impressão é de que os atores estão no palco muito antes da peça ter sido escrita! O problema é que gerar o pensar, elaborar situação, necessita de tempo real, de tempo "orgânico", de mente humana. Uma plantação de tomates poderá ser acelerada em sua produção por dispositivos químicos ou tecnologias até certo limite, mas não sabemos se o produto final será tomate ou alguma espécie resultante de mutações ou uma deterioração do inicial tomate.

A velocidade, ou mesmo a instantaneidade em "conseguir realizar", alimenta um sentimento de poder e de controle sobre o mundo das coisas e dos viventes, tornando-os disponíveis a qualquer momento desejado. Multiplica a tão limitada existência humana, num clima maníaco em que a passagem do tempo e a finitude da vida ficam esquecidas!

Por que ficamos tão atraídos pelo poder e pelo controle que a nova tecnologia é capaz de nos dar?

O poder de influir e modificar a realidade externa pode ser usado para evitar estar nos "espaços de sofrimento", para iludir os conflitos vindos da ambiguidade, iludir o sofrimento que a visão realística do mundo interno e externo gera, com consequente depressão e tristeza que tanto assustam o ser humano.

Parece que a questão reside em nossa limitada capacidade de pensar e esta poderia nos dar um real poder.

 

Gênese e desenvolvimento do pensamento

Bion foi o primeiro psicanalista a chamar a atenção sobre a gênese do pensamento. Em Uma teoria do pensar (1962), ele parte da experiência emocional do indivíduo que precisa ser elaborada e transformada em representação simbólica utilizável em sonhos, pensamentos, lembranças, raciocínios, julgamentos, decisões e ações. Ao colocar a experiência emocional como primeiro passo nos processos do pensamento, Bion colocou a emoção no centro do problema, tratando-a como o verdadeiro núcleo do significado da mente humana e distinguindo-a, portanto, das variações quantitativas de excitação do aparato neurofisiológico.

O que é uma experiência emocional e como podemos saber que ela se verifica em nós e nos outros? Essa pergunta nos remete à distinção entre atividade mental pensante e atividade mental não pensante da protomente, da mente automática. Bion nos faz entender que grande parte de nossa vida é vivida "sem o concurso da mente", fora da área na qual as experiências emocionais são aceitas, observadas e pensadas por meio da simbolização do significado das emoções suscitadas. Admitimos que nossa sobrevivência seria impossível se não reagíssemos com obediência automática (sem o concurso da mente) às instâncias culturais, fato que configura nossa capacidade de adaptação social a partir de processos primitivos, como o imprinting, a identificação adesiva, o mimetismo e outros.

Que recursos temos em nossa personalidade para que o crescimento da mente pensante ou mente simbólica ocorra? A resposta parece ser que desde que vivemos e observemos uma experiência emocional, isso põe em movimento outro processo (diferente da obediência automática), que foi denominado por Bion de "aprender da experiência emocional".

Isso quer dizer que, quando somos capazes de extrair um significado da experiência emocional vivida, estamos aumentando nossa condição de pensar. Significado implica uma complexidade de experiências perceptivas que está além da possibilidade de explicação por meio de modalidades causais, e que deve ser explorada com a imaginação, utilizando como primeiro passo a simbolização. O significado, afirma Meltzer (1984), está distante do mundo finito da causalidade e navega no mar infinito do universo do discurso, no qual nada pode ser provado, nada está certo ou errado, e o parâmetro de diferenciado é individual.

No desenvolvimento da personalidade, nós, como os animais, necessitamos inicialmente das modalidades primitivas de identificação, mimetismo, condicionamento etc., mas, paralelamente, vão acontecendo os processos de experiência emocional e de aprendizado através do pensamento.

Bion descreveu em detalhes o papel central da mãe que inicia as funções do pensamento do bebê, o qual vai se tornando autônomo nessa atividade por meio da internalização de um objeto pensante.

Essa grandiosa concepção, afirma Meltzer (1984), nos obriga a colocar a linguagem numa posição mais humilde e considerá-la apenas como uma das muitas "formas simbólicas" (Cassirer, 1925) por meio das quais é posto em movimento o pensamento.A linguagem pode ser considerada como um aperfeiçoamento progressivo do "canto e dança" (Langer, 1989), que, na história das religiões primitivas, parecem ser as expressões originais do êxtase religioso diante da beleza e do mistério do mundo (emoção estética).

Desenvolver uma atividade pensante como a que descrevi acima, seguindo o referencial psicanalítico de W. Bion, pelo pensar a partir das experiências emocionais, é o que promove crescimento da mente simbólica, noção essa que aparece de diversas formas em Cenários do novo mundo (1998).

Em Inteligência artificial (1998, p. 16), Ciro Marcondes Filho dá parâmetros possíveis por meio dos quais a máquina pode ajudar ao homem, sempre lembrando que opera com lógica distinta da mente humana e que, portanto, não poderia substituir "atividades de constituição de consciência", como a do professor ou, acrescentaria eu, em qualquer interação em que é preciso transmitir um modelo pensante. A sabedoria não é conhecimento e não é informação, diz Marcondes Filho. Em psicanálise pensamos ser fruto da maturidade da atividade pensante do ser humano.

Em Estética da violência (1998, p. 36), o mesmo autor nos relembra o bárbaro ritual de genocídios e extermínios ao som de canções populares e uniformes da SS de Hitler num verdadeiro festim nacional e sem consciência de culpa. Afirma que hoje a estética da violência sobrevive na imprensa e na TV. O horror, a destruição e as mutilações tornaram-se um produto vendável.

Em A swiftean diatribe, Meltzer (1986) comenta, a propósito da estética da violência, que o horror excita em nós um estado perverso de mente em vez de nos comover.

Ciro Marcondes Filho pergunta, o que se passa com as pessoas que perderam a noção da fronteira entre a civilização e a barbárie? Talvez a violência se tornou uma forma de ligação, um "organizador social" numa época em que desapareceram os demais organizadores.

No mencionado livro, o autor "pinta vários quadros" que têm como premissa um fato para ele indiscutível: a tecnologia avança a passos rápidos.

Nascida da inteligência humana, ameaça sair completamente de seu controle, escrevendo uma história que transcende o imaginável, mas que nos horroriza se pensarmos que o homem pode estar submetido a um "construto" gerado por funcionamentos não humanos!

Assustados, podemos recorrer a mitos, lendas e contos de fadas de nossa cultura que, quais oráculos gregos, nos façam entender os nossos destinos. Um deles conta que Gepeto se tornou escravo do boneco de madeira a quem deu vida, uma vida "como se", uma imitação da vida humana por ter em sua essência a emoção, a "inteligência emocional". No clássico conto, Pinóquio termina por humanizar-se pelo amor e bondade, o que lhe provoca uma forte emoção estética pela beleza do funcionamento mental de Gepeto.

Como essa fábula poderia ser aplicada ao poder tecnológico? Que transformações deveriam ocorrer para que uma "alma nasça" da organização dos dispositivos tecnológicos?

Ao abordar a Estética na era tecnológica, Ciro Marcondes Filho considera que as novas tecnologias deixam muitas interrogações no campo da experiência estética. Diante dos recursos eletrônicos, que mudanças sofrem a sensibilidade humana e suas manifestações, e como se adequa a ela a experiência artística? Escreve: "Uma nova forma de apreender o fato estético estaria em considerá-lo dissociado da figura tradicional do criador, do mito burguês da realização e sua substituição pela intervenção, capaz de produzir uma experiência e uma imagem" (1998, p. 35).

Na sociedade atual, as conhecidas formas de controle praticamente desapareceram, assim como suas consequentes "violências ingênuas", aquelas que todos são capazes de perceber e se revoltar.

Ciro Marcondes Filho aponta para as novas formas de poder e dominação ainda nebulosas, e até invisíveis, surgidas das novas tecnologias que administram a sociedade não mais amadoristicamente, como no sistema do Estado convencional. É o "verdadeiro mundo", diz Marcondes Filho, em que só os iniciados e com senha têm acesso! Nesse mundo, ninguém está sentado no trono ou na cadeira presidencial dirigindo e definindo. O sistema se autorregula, identifica e classifica a todos: passe o cartão magnético e na tela aparece nosso Curriculum Vitae, nossos gostos, opções políticas, afinidades eletivas, tudo o que interessa à sociedade, como target para controle, marketing e publicidade.

"A civilização da técnica naturalmente mantém os controles." "O que nos torna perplexos é sua arrogância, sua indiferença diante de nós, essa superioridade ancorada na racionalidade das máquinas que nos torna como peças menores e desprezíveis do sistema."

"E tudo isso sem ideologia suporte, sem qualquer mito, sem nenhum princípio logico-filosófico ordenador. É pura forma." Estamos diante do criador dominado pela criação? Criação fruto da arrogância do criador? Ser capaz de criar objetos que o removam da condição de trabalho, de limitação de tempo e espaço? Que fazem o criador sentir-se livre, sem proibições, sem acessos negados. Mas não livre da responsabilidade sobre si mesmo e ter que se haver com seus "demônios internos", com sua própria destrutividade; não livre de ter que lidar com sua própria ambiguidade.

Em O pós-moderno, Ciro Marcondes Filho afirma que esse conceito não conseguiu livrar-se de sua ascendência do moderno e que é preciso buscar um novo procedimento metodológico:

Propõe-se uma nova leitura do termo hermenêutica. Não mais como atingimento de uma verdade, de um sentido de uma razão escondida atrás da aparência dos fenômenos, como pressupunha a filosofia idealista. É preciso abordar o fenômeno, tentar compreendê-lo não de forma analítica dissecando-o em partes, implodindo sua organização interna. (Marcondes Filho, 1998, p. 43)

Esta mudança do pensamento científico e filosófico, vinda da própria aplicação da prática do pensamento idealista, ocorreu também na psicanálise, ou melhor, na concepção da prática analítica, da relação humana e do crescimento da mente simbólica. "Freud explica" era um slogan popular que expressava uma verdade: a ciência era explicativa. O raciocínio causa e efeito, a dominação científica do objeto pelo "conhecimento verdadeiro", está longe da postura metodológica para conhecer o objeto quando este objeto faz parte da mente humana. Parece que a observação e a descrição num campo em que se acolhe e se permite ao objeto "ser" é o método a se pôr em prática. Para isso, o observador tem de se desfazer do pensamento dominador, explicador, e saber que sempre haverá uma inatingibilidade no conhecimento do objeto.

A questão é como conciliar essas duas tendências: a grandeza dessa visão metodológica e a estreiteza do conhecimento inflado pela tecnologia, segundo o qual, saber nomes, ter as senhas de acesso, ter informação à disposição significa conhecer o objeto. Estamos novamente no controle e dominação.

Em Tempo e morte (1998, p. 99) encontro uma incrível semelhança do conceito de transformação, o que é um fato no caso de desenvolvimento embriológico e ontogenético do ser humano em fases, conforme descrição de Freud. Mas tal semelhança não serve quando se trata do desenvolvimento da mente simbólica. O conceito de transformação de campo de experiências, usando a psicanálise atual, parece mais adequado, embora requeira um espaço de imaginação. O uso de campo em vez de fases evolutivas tem de ser visto como um fluxo constante, oferecendo à mente do sujeito um campo infinito de escolha, no qual a "prontidão" biológica do conceito de evolução de fases é substituída por um nível muito sofisticado de possibilidades conceituais impostos pela lógica interna da formação de conceitos (Meltzer, 1986).

Sob essa perspectiva, a vida mental tem um processo, passo a passo, da desordem à ordem no mundo de significados. A área simbólica da mente dirigida à criação de sentido de nossas experiências não tem nenhum passado, a não ser o que se tornou estrutura, e não tem futuro, porque tudo é absoluto e inequivocamente imprevisível.

Haveria muito ainda a aproximar, a aprofundar e a considerar, mas há a "pressão do tempo real" que ordena, em nome da minha realidade, que eu pare por aqui.

 

REFERÊNCIAS

Bion, W. (1991). Uma teoria sobre o processo de pensar. In Estudos Psicanalíticos Revisados. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1962).         [ Links ]

Huxley, A. (1932). Admirável mundo novo.         [ Links ]

Marcondes Filho, C. (1998). Cenários do mundo novo. São Paulo: Edições NTC.         [ Links ]

Meltzer, D. (1986). Studies in Extended Metapsychology. Cluie Press for the Roland Harris Trust Library.         [ Links ]

Meltzer, D. (1984). Dream life. Cluie Press for the Roland Harris Trust Library.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
MARISA PELELLA MÉLEGA
Av. Vereador José Diniz, 3720 - cj. 202
04604-007 - São Paulo - SP
tel.: 11 5092-3883
pmelega@uol.com.br

Recebido 24.04.2015
Aceito 08.05.2015

 

 

1. Título tirado de Paul Virilio, crítico de novas tecnologias.
2. Ciro Marcondes Filho, docente de pós-graduação em jornalismo na Universidade de São Paulo.

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