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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.60 São Paulo jul./dez. 2015

 

RESENHAS

 

Nos caminhos da ficção psicanalítica

 

 

Leda Herrmann

Psicanalista, membro efetivo da SBPSP. Diretora do Instituto de Psicanálise da SBPSP

Endereço para correspondência

 

 

Sofio, Fernanda. Literacura. Psicanálise como forma literária. São Paulo: FAP-UNIFESP, 2015. 312 p.

O livro de Fernanda Sofio, Literacura. Psicanálise como forma literária, resultado de elaboração sobre sua pesquisa de doutorado no Instituto de Psicologia da USP, pode ser pensado como respostas da autora a perguntas que formulou, ao iniciar a pesquisa, e para o tratamento de seus dados.

Infância de Adão e outras ficções freudianas (Herrmann, 2002) - literatura ou Psicanálise?

2ª Qual a relação entre as duas áreas?

Duas perguntas que esse livro propõe-se a responder e que concentram o trabalho de pesquisa e elaboração de Sofio.

3ª A pergunta a que Fernanda Sofio foi levada na medida em que respondia às duas anteriores: qual o projeto de Fabio Herrmann?

As duas primeiras perguntas partem da proposta de Fabio Herrmann de ser a ficção o reino análogo da Psicanálise, o lugar de refúgio do psicanalista para considerar sua ação clínica e sua construção teórica. As respostas propiciadas por Fernanda explicitam e exercitam a questão da ficção como reino análogo da Psicanálise.

A terceira pergunta diz respeito à elaboração de Sofio, no decorrer do livro, sobre o projeto psicanalítico de Herrmann. Ao se deparar com construções teóricas da Teoria dos Campos, criação de Fabio Herrmann, pela análise que faz de algumas "ficções freudianas" do livro A infância de Adão, Sofio, por meio da forma como lida com o disfarce que tomam em ficção psicanalítica narrativa, vai penetrando e explicitando o alcance desse pensamento.

O livro de Fernanda Sofio, apoiado na teoria do análogo, explora a ideia em uma extensa pesquisa na e da própria obra desse autor. Exercita-a e avança para considerações sobre a forma literária das psicanálises engendrarem unidade estética. Sofio trabalha tanto o campo de conhecimento da Psicanálise e de sua característica de produção, como o próprio campo literário da unidade estética, avançando também para as possibilidades postas pelo pensamento de Herrmann. A matéria de pesquisa é o livro A infância de Adão e outras ficções freudianas, um livro de contos psicanalíticos. A análise de Sofio toma o caminho de pensar a Psicanálise como forma literária, o que a aproxima do plano estético. "[...] as psicanálises são literatura e, simultaneamente, são Psicanálise. É que elas estão sempre construídas pelo método interpretativo psicanalítico, o que a meu ver caracteriza sua estrutura comum [...] é seu invariante" (p. 32). O método psicanalítico, definido por Herrmann como ruptura de campo - desencontro produtivo de sentido, nas palavras da autora na página 32 -, produz psicanálises e seu saber apresenta-se, segundo Herrmann e Sofio, em forma literária ficcional. Teorias psicanalíticas resultam dessa possibilidade de emersão de sentidos propiciada pelo método interpretativo. São, em última análise, modelos, e nunca descrevem fatos, pois sentidos não são fatos da vida real, mas a compõem e a colorem.

Literacura - um neologismo -, Fernanda Sofio o encontrou em meio à narrativa de uma das ficções freudianas de Herrmann, A infância de Adão (Herrmann, p. 112), e o tomou como representante, ou interpretante, para a discussão empreendida no livro. O conto, a autora considera como "uma espécie de monólogo interior analítico da personagem [...]" (p. 49). É Adão homem psicanalítico por excelência porque se constrói e se re-vela a si mesmo e ao leitor apenas por interpretação, cura-se pela narrativa com que Herrmann no-lo apresenta. "Literacura não é um termo explorado na obra de Herrmann. É uma entre as inúmeras construções poéticas que compõem o léxico do protagonista Adão, referido por Herrmann como língua adâmica, tendo sido mencionada essa única vez" (p. 50). Aos meandros da literacura dedica-se Sofio nas análises que empreende nos capítulos 3, "Interpretações possíveis das ficções freudianas", e 4, "Clínica extensa pela narrativa".

Para as análises do capítulo 3, Fernanda Sofio retoma a ideia que trabalho em meu livro, Andaimes do real: a construção de um pensamento (2007), de que o pensamento de Herrmann já nasce com a configuração gestáltica da consideração aos fundamentos da Psicanálise e não conhece desvios desse ponto de nascimento. Essa configuração está presente por todo desenvolvimento da obra e pode ser considerado em qualquer de seus pontos. Assim também na forma narrativa de conto com que se mostra no livro A infância de Adão e outras ficções freudianas. À Fernanda Sofio não interessa só a análise formal dos contos, como uma escrita da Psicanálise em forma literária, mas também penetrar os pontos de desenvolvimento do pensamento de Herrmann que cada um deles toca, refere ou desenvolve. Na primeira notícia que nos dá da análise empreendida sobre as cinco ficções freudianas de Herrmann (p. 47), resumidamente, Sofio evidencia como elas são ficções apoiadas em construções clínico-teóricas da obra.

Já no capítulo 3, dedicado à análise das cinco ficções por ela escolhidas, introduz o leitor nesse mundo de ficções freudianas:

Nesta série em particular, cada ficção freudiana oferece uma perspectiva do método psicanalítico. Todas elas se constroem a partir dele, mas cada uma centra-se num aspecto alternativo. "Bondade" fala da perspectiva do psicanalista, mais propriamente, do narrador-psicanalista. "Bashô" metaforiza o tempo curto, também conhecido como o "aqui e agora" da interpretação psicanalítica, o tempo do eu disse, ele disse, mas in loco, não no après-coup e sim como consideração posterior. "O Escorpião e a Tartaruga" contempla a episteme da Psicanálise, tanto onde ela não está, na pesquisa "burocrática", que pode transformar os pesquisadores em meras personagens, assim como onde - segundo a Teoria dos Campos - ela pode ser encontrada: na ação do método interpretativo. É que a própria narrativa, onisciente, contada numa espécie de après-coup, mostra como o conhecimento se cria, e isto fica metaforizado com a perspectiva de Nigrius, uma personagem impossível, mas contemplável no âmbito da ficção, que não se submete à passagem do tempo como as outras personagens. "Notícia de Límbia" considera o lugar metafórico da interpretação psicanalítica, inaugurando uma espécie de ficção metafísica psicanalítica, acerca de seu lócus metafórico. "A Infância de Adão" considera o lugar do paciente enquanto Homem Psicanalítico1, ou seja, exibe o interior da ruptura de campo no processo interpretativo de uma psicanálise de consultório metaforizada, da perspectiva do paciente - que talvez seja, também, a do "analista" - que experimenta esse processo e caminha em direção à cura. (pp. 91-92)

No decorrer do capítulo, o leitor não está sendo apenas apresentado a cada uma das ficções selecionadas, mas ao fio que as relacionam como psicanálises possíveis, apresentadas pela força da ficção. Essas narrativas em seu conjunto apresentam a perspectiva da psicanálise da Teoria dos Campos e, também, do autor do livro que se desdobra, como propõe Sofio, em narrador - por exemplo, em "Bondade" é um "narrador-psicanalista" (p. 95) que delineia através desse conto/crônica um estudo sobre a bondade como sentimento.

As demais análises das outras quatro ficções, escolhidas por Sofio, vão considerar, cada uma, aspectos da obra de Herrmann que metaforicamente tocam, bem como atravessam, o encontro de Psicanálise e ficção. Na exploração dessa travessia, a autora pinça, amplia e particulariza a condição ficcional proposta por Herrmann de reino análogo de retiro do psicanalista, tanto na sua produção clínica como teórica. Busca alguns pontos de contato na forma estética desses contos psicanalíticos, ou freudianos, como os batizou Herrmann, explora as relações que encontra e amplia o caminho de percurso da Psicanálise como ciência artística, condição que seu método interpretativo lhe dá.

A leitura desse capítulo não substitui a leitura das narrativas de Herrmann do livro A infância de Adão e outras ficções freudianas, no entanto permite ao leitor acompanhar os enredos que elas percorrem, particularizando em cada uma as explorações no tema do análogo para além da escrita de Herrmann e mais especificadas no campo da crítica literária.

Penso que o desafio maior que Fernanda Sofio enfrentou foi na análise do conto "A infância de Adão". Sua leitura é em si desafiadora porque descreve o interior de um processo de análise, sendo ele tomado pelas palavras do "paciente literário", Adão, o primeiro homem bíblico, o que nunca teve infância. Busca em Joyce, Kafka e Fernando Pessoa os inspiradores literários de Herrmann, cujos rastros de influência e referência o autor deixou espalhados pela sua obra. Trata-se de uma análise cuidadosa em que Fernanda Sofio procura deslindar o conjunto de metáforas de situações clínicas que percorrem o conto.

No capítulo 4, "Clínica extensa pela narrativa", procura trazer para a escrita da clínica, sua clínica, aspectos da ficção literária. Trata-se de um exercício clínico que, pela narrativa construída por Sofio em cada um deles, explora a escrita psicanalítica para descrever/inventar três atendimentos de sua clínica.

Partindo do pressuposto de que todo relato clínico se apresenta em um recorte, e que nenhum relato pode ser "o caso em si", dado que sempre compreende uma transformação pela via interpretativa, logo no início do capítulo a autora coloca o leitor na perspectiva ficcional da narrativa clínica:

É evidente que busco resgatar o caráter lúdico da escrita da clínica psicanalítica. Para esse fim, empreendo o exercício aqui proposto com a escrita da clínica, como que brincando de anotá-la, mas objetivando não perder de vista a reprodução do efeito terapêutico que caracteriza cada atendimento; caberá ao leitor comentar/discutir/criticar se esta maneira mostrou-se adequada para retratar a clínica, contemplando, por um lado, o exercício da função terapêutica do método psicanalítico nos atendimentos delineados e, por outro, sua forma literária. (pp. 263-264)

Uma característica própria desse livro, que também estava na tese defendida por Sofio, é a de cada capítulo conter as conclusões a que a autora foi chegando para aquele ponto tratado, estendendo-as sempre para o âmbito de seu argumento principal contido no subtítulo, "Psicanálise como forma literária". Assim não há um capítulo final de conclusões, o que é habitual em teses e em livros que implicam pesquisa. O último capítulo, o quinto, "Apanhado final", sintetiza os propósitos de seu estudo, ou seja, "ser possível pensar Psicanálise (com P maiúsculo, enquanto disciplina ou ciência futura) como forma literária" (p. 291). Poderíamos dizer que, como está no título, faz um breve apanhado do percurso percorrido nesse estudo e das principais ideias trabalhadas no tema do reino análogo da Psicanálise, a literatura de ficção, tendo como objeto de estudo o livro de Fabio Herrmann, A infância de Adão e outras ficções freudianas, e relatos de seus atendimentos clínicos.

O precioso Prefácio de João A. Frayze-Pereira, também orientador de Fernanda Sofio no doutorado, refletindo sobre a psicanálise compatível com as artes, percorre brevemente esse específico ponto de consideração em alguns autores contemporâneos. Assim aproxima-se do texto de Sofio. Concluo com ele:

Nesse sentido, da literatura à clínica, Fernanda Sofio considera o pensamento de Fabio Herrmann. Mas, ao ler as ficções escritas pelo autor - leitor de Borges, Kafka e Joyce, de Guimarães Rosa, Fernando Pessoa e Bashô - vai além dele, uma vez que na posição de leitora de um leitor reflexivo, também na companhia de Freud, de escritores e críticos literários como, por exemplo, Antonio Candido, Rosenfeld e Piglia, Casares, David Arriguci e Booth, entre outros, Fernanda faz a Teoria dos Campos trabalhar. Ou seja, interroga essa teoria e, com essa operação reflexiva, aponta para um campo impensado da obra de Herrmann, não daquilo que a obra não pensou, mas daquilo que, ao pensar, a obra dá a pensar. (p. 16)

 

 

Endereço para correspondência:
LEDA HERRMANN
Rua Girassol, 34 – cj. 102
05433-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 3088-8123
herrmannfl@globo.com

Recebido 08.06.2015
Aceito 13.06.2015

 

 

1. Em seus escritos diurnos, Herrmann (Andaimes do real: o método da Psicanálise, 1991a, pp. 22-23, e Clínica psicanalítica: a arte da interpretação, 1991b, pp. 21-31) propõe uma ficção para a clínica: ao entrar em análise, o paciente deixaria "brotar de si" o ser em condição de análise, que nasceria de uma crise experimental de identidade.

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