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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.61 São Paulo ago. 2016

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

João A. Frayze-Pereira

Editor

 

 

Caro leitor,

Considerando a tradição cartesiana que se estende até nós, segundo a qual se existe como coisa ou como consciência, o filósofo Maurice Merleau-Ponty examina o legado deixado por essa tradição e elabora uma crítica radical às duas posturas teóricas, reducionistas, derivadas dela - o subjetivismo filosófico e o objetivismo científico. E demonstra que elas são apenas aparentemente antagônicas, pois ambas pressupõem a dicotomia sujeito/ objeto do conhecimento. Mais do que isso, descobre que a realidade do próprio corpo impede a fixação em qualquer um dos polos daquela dicotomia e, portanto, os reducionismos implicados por ela, pois o corpo é um sensível que, ao mesmo tempo, é capaz de sentir, um sensível-sentiente - um "corpo reflexivo". E a reflexão que realiza implica transformações no modo como concebe o conhecimento. Apenas para dar uma ideia, refiro-me a uma das teses de Merleau-Ponty que afirma "o corpo é um mistério":

Eis o enigma: meu corpo é simultaneamente vidente e visível. Ele, que olha todas as coisas, também pode olhar-se e reconhecer, então, naquilo que vê o "outro lado" de seu poder vidente. Ele se vê vendo, se toca tocando, é visível e sensível para si mesmo. É um si, não por transparência, como o pensamento que pensa tudo assimilando-o, constituindo-o, transformando-o em pensamento - mas um si por confusão, narcisismo, inerência daquele que vê naquilo que vê, daquele que toca naquilo que toca, do sentiente no sentido [...]. Visível e móvel, meu corpo está no número das coisas, é uma delas: preso no tecido do mundo, sua coesão é a de uma coisa. Mas, porque vê e se move, mantém as coisas em círculo ao seu redor: elas são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua carne, fazem parte de sua definição plena e o mundo é feito do próprio estofo do corpo. Esses deslocamentos, essas antinomias são maneiras diversas de dizer que a visão é tomada ou se faz do meio das coisas, lá onde um visível se põe a ver, torna-se visível para si e pela visão de todas as coisas, lá onde, qual a água mãe no cristal, a indivisão do sentiente e do sentido persiste.

Assim, pode-se perguntar: no entrecruzamento das mãos, por exemplo, como colocar uma delas como sujeito e a outra como objeto? Na experiência ambígua do ver, como determinar quem vê e quem é visto, se o corpo não é nem simplesmente coisa vista nem apenas vidente? Em suma, na ambígua experiência do corpo consigo mesmo revela-se o embaralhamento da relação sujeito-objeto, mistura que também se verifica, ontologicamente, não apenas na relação do corpo com as coisas, mas também com os outros.

Nesse sentido, se admitirmos com Freud que o eu é corporal, como pensar a relação entre corpos, isto é, entre eus, se não no campo da intercorporeidade?

Nesse campo ambíguo, Virginia Woolf pergunta:

"Que sei eu do eu? Que sei eu do outro, o outro mesmo, o de fora, não o nosso outro tão íntimo? Consigo, em algum momento, em um único momento, chegar até ele?"

Nessa medida, perguntamos - teria a Psicanálise o que oferecer para a reflexão sobre essa problemática ambígua específica? Teriam a experiência clínica e a teoria psicanalítica condições de possibilidade para a ultrapassagem daquela clássica dicotomia e dos seus impasses epistemológicos? Quer dizer, considerando que desde a "sociedade disciplinar" (Foucault) até o advento da atual "era do vazio" (Lipovetsky), a misteriosa realidade do corpo tem corrido inúmeros riscos, sobretudo, o de ser tragicamente pervertida, até o limite do desaparecimento, "como à beira do mar um rosto de areia" (Foucault), indagamos - até que ponto a Psicanálise, com a força do pensamento teórico-clínico, pode problematizar essa tendência controladora que tem como um de seus pontos de apoio a consciência desencarnada que "manipula as coisas e renuncia a habitá-las" (Merleau-Ponty)? Reconhecendo que desde Freud, até as mais recentes elaborações realizadas pelos pósteros, revela-se que o espírito introduz-se no corpo, assim como, inversamente, o corpo introduz-se no espírito, acreditamos que a Psicanálise pode ter um papel fundamental na discussão da ambiguidade misteriosa que atravessa o corpo de ponta a ponta.

É desse campo de reflexão que os autores presentes neste volume se dispuseram a participar, enviando-nos artigos nos quais a temática proposta é discutida de alguns pontos de vista, começando com uma pergunta básica - onde começa o corpo? E, em seguida, configuram-se inúmeras questões como a do corpo vivo, finito e transitório, como morada do ser, inseparável da mente, e relacionado ao campo cultural, como realidade trabalhada na literatura e na arte. E, integrado a essa pauta, abrimos outro capítulo - Contraponto - para reunir um coro de vozes, nem sempre concordantes, sobre uma temática interessante: a tatuagem e outras expressões corporais, sua significação e funções na sociedade atual. Cabe mencionar ainda que os demais capítulos em Outras pautas - Artigo, Literárias, Resenhas - formam um fundo, não menos essencial, para compor a edição desse número da ide. Esperamos que os leitores desfrutem. E que a figura de Salomé, ambígua e misteriosa, desejosa de comunicação com o outro, possa instigá-los a se envolver com a leitura, realizando uma boa meditação.*

 

 

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