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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.61 São Paulo ago. 2016

 

EM PAUTA | CORPO: MISTÉRIO, AMBIGUIDADE

 

Corpo vivo: finitude e transitoriedade

 

Living body: finitude and transience

 

 

Plinio Montagna

Plinio Montagna é psicanalista didata, ex-presidente da SBPSP e ex-presidente da ABP/Febrapsi. Mestre em psiquiatria e ex-docente da Faculdade de Medicina da USP. Chair do Comitê de Psicanálise e Lei da International Psychoanalytical Association

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RESUMO

O autor aborda, a partir de vivência e reflexões psicanalíticas, situações e conceitos relacionados à finitude/infinitude, vida plena/terminalidade, situações-limite como reveladoras de experiências até então inapreensíveis por nós.

Palavras-chave: Tempo. Limite. Finitude. Infinitude. Morte. Terminalidade.


SUMMARY

Departing from his experience in life and psychoanalysis, the author brings some reflexions about finitude/infinitude, life/ death, dying patients; limit; time; middle age.

Keywords: Time. Limit. Finitude. Infinitude. Death. Terminality.


 

 

We are now much farther along the flow of "the river-run" of analysis and of life, having moved from the symptomatic storms at the start to those existential ones before only hinted at. Now we discover that the distinction between analysis and life is less clear than we had imagined. Although transference and life are fleeting wisps of existence, each ephemeral, the stuff that dreams are made on, still they are as real as experience can ever be. They are the very substance of being - of being, and of becoming, but also of ending. (Warren Polland, 2014)

 

Primeiro, a "infinitude"

Minha paciente, aficionada pelo jogo de boliche, conta-me que o que mais a encanta nesse esporte é que os pinos caídos são recolhidos pelos fios que os prendiam - todos os pinos - e a seguir repostos exatamente como antes, no mesmo lugar. Tudo permanece igual. Sempre igual.

A imagem remonta à resiliência; os pinos resistem ao choque, reerguem-se, levantam-se após os golpes. Mas para essa, por outro lado, falta um dado importante, não há alteração do sujeito em face dos strikes da vida, fruto de aprendizado.

De outra mirada, no contexto da bipolaridade que a acompanha há muitos anos, seu apreço pela imutabilidade, pela não mudança, pode representar uma "defesa maníaca que se instala no reino da ausência de trabalho do luto; como negação, propondo a fantasia da imobilidade". Ou "fuga para a fantasia onipotente" (1935, p. 131), como diz Winnicott, compondo a negação de sua realidade interna contra o desalento ou a morte interior.

Seu percurso associativo desembocará, em última instância, no medo da desintegração, na morte psíquica - mas também física, que no universo winnicottiano transcende ao medo da castração. São questões que, como o "medo do breakdown", pertencem ao campo do inconsciente vivido, representado mas não recalcado.

Esta introdução circunscreve o pano de fundo do presente artigo: a questão do luto - o trabalho possível de luto.

Esse é compreendido como o conglomerado de processos favoráveis que se desenvolvem em face da perda, que incluem a aceitação da realidade e a readaptação a ela. Para isso é básico que esta, a perda, seja reconhecida pelo indivíduo. Para Freud (1913) a maior tarefa do luto é afastar a memória e esperanças de sobrevivente morto.

É claro que o ser humano nem sempre está apto ao trabalho interior do luto diante dos impactos das perdas inevitáveis da vida, como o envelhecimento e a perspectiva da morte. Diante deles frequentemente a realidade é distorcida ou negada (Kogan, 2007).

Mas, quando é possível, sua elaboração nos leva a uma melhor diferenciação entre self e objeto, passado e presente, realidade e fantasia. Também leva a uma reorganização do ego e a uma mais suave interação entre o mundo interior e o exterior.

 

Momento fatal e vida

Quando Winnicott anota em seu caderno pessoal: "Oh, God! May i be alive when I die" (Deus, que eu esteja vivo quando eu morrer), descrevendo a seguir seus órgãos viscerais se alterando no post mortem, várias são as observações possíveis.

Podemos vislumbrar aí um desejo onipotente de autopreservação, análogo ao do bebê que precisa da ilusão de ter criado o seio. Ele quer ter preservado da consciência do limite (Goldman, 2014).

Mas também podemos enxergar a perspectiva de um espaço psíquico que mantém a vida e a morte simultaneamente (Goldman, 2014), o que representaria mais um de seus paradoxos, mais uma de suas transições. Ele parece propor um espaço de transição, de superposição entre elas, vida e morte.

Porém, a meu ver, sua mais importante lição é o exemplo do anseio à vitalidade até o último instante. De estar vigoroso, ativo, ágil até o fim. Note-se que o termo alive tem conotação, além de vivo, de ativo, vigoroso, vitalizado, ágil.

Com isso ele indica um valor, um modelo que enaltece não somente um estado de alma para um dado momento, mas assinala também um paradigma para o viver. "Ainda que exista a morte, mantenhamos o vigor e a vitalidade no viver", é o que parece anunciar. É uma centelha vital, o brilho do impulso à vida e crescimento que é parte do bebê, que nasce com ele e que carrega consigo "de um modo que nós não temos de compreender" (Winnicott, 1964, p. 27).

Essa vitalidade diz respeito a Eros, que surge na obra freudiana quando ele divide impulso de morte e impulso de vida, ligando Eros ao impulso de vida ou de amor (Loewald, 1971, p.62), que transcende a anterior utilização do termo libido.

É disso que parece falar Winnicott, de vitalidade, e é a isso, a rigor, que se refere a vida e a psicanálise.

 

Vida plena (full life)

Uma ideia que tem me inspirado ultimamente e sobre a qual tenho me debruçado vem a ser: "Nunca é tarde para se tornar a pessoa que você poderia ter sido". É algo diverso daquilo a que classicamente se costuma referir como escopo da psicanálise, "nunca é tarde para conhecer a pessoa que realmente se é".

Chega uma época na vida, quando muita água já passou embaixo da ponte, quando a vida corre solta em seu vai e vem, em que se trata mais de atualizar as virtualidades do não ter sido, de cumprir as perspectivas das nossas potencialidades, a partir do que sabemos ser nosso. Refiro-me a um momento da vida em que as marcas da experiência permitem dimensionar razoavelmente nossa estrutura psíquica, reconhecendo esse nosso con-junto relativamente estável de funções.

Está em jogo a integração possível dos diversos personagens de nosso teatro mental e de sua ação conjunta, coordenada. Mais do que nunca, trata-se de agir, de ocupar-se do "daqui para frente", a partir da utilização do instrumental do qual dispomos.

Uma paciente de 83 anos, por exemplo, pode pela primeira vez pintar e expor sua arte, fazer uma exposição de arte, um homem de 75 anos pode surpreender a todos nós e revisitar um amor passado etc.

A questão fundamental é a da vitalidade.

A essa fase da vida podemos chamar de full life, ou "vida plena", quando a morte já se registrou como cidadã em nossa alma, quando a vida já vai além da meia idade, os dados talvez já estão lançados.

De todo modo o fazer analítico continua a se inscrever na possibilidade de encontrarmos ou construirmos sentidos e significados por meio da experiência.

Lembremos que experiência requer tempo e distância, memória e imaginação (Donoghue, 1981).

Ela se compõe como a iluminação controlada por um dimmer, que inicialmente propicia uma visão muito tênue, crepuscular, e paulatinamente vai configurando uma visão clara, com discernimento dos elementos em jogo (Winnicott, 1945, p. 152), por exemplo, diferencia entre alguma coisa que meramente está acontecendo e viver uma experiência (juntos, mãe e bebê).

 

Situações-limite

Vivemos enquanto analistas a curiosa experiência de constatarmos, especularmos, revelarmos, criarmos, dentro de um universo singular. Ao mesmo tempo que ele tem como condição para sua existência estar apartado da vida cotidiana, é parte inextricável desta.

É desse cantinho que apreciamos o ser humano, a partir de nosso método e de nós mesmos, enquanto pessoas. Nele, procuramos a mais primordial singularidade, podendo até arriscar alguma generalização, como o fez Freud. Guardamos a ciência de que cada homem é igual a todos os homens; cada homem é igual a alguns homens; cada homem é igual a nenhum outro homem.

É entre a radical singularidade, o singular plural e o universalmente humano que nos situamos, movendo-nos dos meandros da transferência aos volteios da vida.

Poland cogita: "embora transferência e vida sejam porções fugazes da existência, a matéria da qual os sonhos são feitos, ainda assim eles são tão reais quanto a experiência poderá ser. Eles são a substância do ser - do ser, do vir a ser e também do terminar" ( Poland, 2014).

Nesse contexto incomum buscamos distinguir, nas franjas do discurso e do pré-discursivo, as nuances entre transferência e vida, para em dado momento perceber que nem sempre as distinções são nítidas, havendo, na sessão e no conjunto delas, tempos em que as bordas esfumaçam.

A dessemelhança entre psicanálise e vida esmaece particularmente em situações-limite, de uma ou de outra.

Estas, as situações-limite, colocam em xeque a própria existência (Jaspers), seja da análise ou da própria vida. Elas desvelam os limites da existência, revelam aspectos da experiência até então inapreensíveis. Ou então permitem recuperar registros mais típicos, fazendo surgir aspectos que estavam latentes nas demais situações.

O indivíduo perdeu as certezas que antes o norteavam, os parâmetros que consolidavam sua segurança. São necessários movimentos que descortinem novos cenários.

Se de certo modo há que se viver cada uma de nossas situações, cada um de nossos momentos, como limite, enquanto seres humanos e psicanalistas, não há como negar que existem circunstâncias, na vida e no decorrer de uma análise, em que essas situações dominam o cenário, tomam o primeiro plano e se tornam elas mesmas protagonistas do nosso pensar e fazer.

Roussillon (2006) lembra que ocorrem "certas conjunturas transferenciais que levam a análise da situação transferencial a seu limite, que aquecem ao extremo as condições/pré-condições da prática psicanalítica, obrigando-as assim a se explicitarem mais completamente".

Exemplos dessas são os inúmeros momentos de acting que não podem ser contidos por interpretações, eventualmente, nem tampouco pelas palavras. Ameaças reais de autodestruição por várias vias são parte dessa amostragem. Em situações extremas, por exemplo, em que vida e morte estão em jogo, há de se tomar preventivamente atitudes concretas visando a proteção do indivíduo.

A proximidade da morte evidencia uma situação-limite por excelência. No nosso ofício, sua explicitação se dá no lidar com pacientes em estado terminal.

 

Terminalidade

Terminalidade é o termo que a medicina reserva a uma condição de saúde, de qualidade e grau, que irreversivelmente conduzirá em tempo breve à morte. A ela se dispensam hoje em dia discussões éticas fascinantes. Estipula-se que o médico deverá abandonar procedimentos diagnósticos ou terapêuticos desnecessários, mas não abandonar o paciente, levando a ele toda a sorte de cuidados paliativos necessários para seu conforto e bem-estar.

Esta progressão do momento de vida em direção à morte, sem perspectiva de recuperação, que se costuma chamar de condição terminal. Há quem insista que somos todos terminais desde o nascimento. Verdade por um lado, por outro longe de dar conta da especificidade e das complexidades das circunstâncias que aqui nos referimos, buscando resgatar o sentido particular desse modo de olhar.

A rigor, a ideia de que "ao nascer começamos a morrer e o fim começa na origem é um lugar-comum que se encontra tanto em São Bernardo como em Montaigne" (Ariès, 1977, p. 104). A declaração de Freud de que "a meta de toda a vida é a morte" (1920, p. 38) se harmoniza com Montaigne, para o qual vivemos para aprender a morrer, pensamento que já encontramos em Sêneca.

Mas, se para Montaigne o melhor jeito de viver é não se preocupar com ela (Bakewelll, 2010, pp. 12-22), há quem viva diuturnamente pensando na morte. Exemplo disso são as curiosas "encenações" da morte relatadas por Sêneca1.

Akhtar lembra que "a horrenda bruxa da morte torna-se a musa de nossa criatividade" (2011, pp.88-89), apresentando-se como paradigmática em tempos e culturas diversas, orientais e ocidentais, e vê um paralelo na declaração de Freud com o poeta urdu Mirza Assad Ulla Khan Ghalib (1797-1869), para quem, poeticamente, "o grande êxtase para uma gota é cair no rio e se tornar uno com ele".

Morrer tem ressonâncias particulares em cada cultura. Num tempo romântico dizia-se que a pessoa sabia quando ia morrer. Isso se observa hoje, em alguns casos. Lembro-me de que no internato médico, assistindo a uma paciente grave, na UTI da clínica cardiológica, uma paciente não tão grave dizia ao grupo de médicos que discutiam seu caso: "Não se preocupem comigo, doutores, cuidem de outro paciente; vou morrer hoje". À incredulidade de toda a equipe médica, em questão de horas, malgrado os cuidados adequados que a princípio deveriam ser suficientemente eficazes, ela morreu.

Na Índia hoje existe um hotel para aqueles que têm estimados quinze dias de vida, no máximo. A ideia é proporcionar uma morte num lugar sagrado, tendo as cinzas jogadas no rio Ganges, de alto significado espiritual.

A morte de cada um se inscreve na universalidade da morte e do morrer. As fases de Elizabeth Kluber Ross, de modo geral, reafirmam-se: negação e isolamento, raiva, negociação, depressão, aceitação (Ross, 1970). Frequentemente há sobreposição e concomitância entre elas, como no desenvolvimento das fases da libido2.

Nosso desafio como psicanalistas, com pacientes nessas condições, comporta características particulares. Recolho-as de minha vivência com paciente terminal e das descritas por colegas.

A primeira delas é acerca da conversa direta com o paciente sobre sua morte. Ela tem um tempo certo, que emerge a partir do material dele. Em minha experiência, assim como "morte não é uma conversa para crianças", a conversa franca sobre ela com o paciente terminal não só tem o seu tempo como não é uma conversa com a criança que existe dentro dele, mas com seus aspectos mais adultos, a não ser acerca das conversas das fantasias e angústias ligadas ao tema, por exemplo, a morte equivalendo a ficar sozinho, ou mesmo angústias claustrofóbicas, vendo-se dentro do caixão.

Mais do que a morte e o morrer, nossa conversa, mesmo com o paciente terminal, é sobre a vida e o viver, considerando-se que o problema universal é - o que se faz com o tempo que nos resta, quer sejam décadas, anos, dias de vida, nunca sabemos com certeza.

Como aponto em meu trabalho de 1991, a questão é ajudar a pessoa a viver a vida até onde for possível, e da melhor forma possível. A paciente, referida anteriormente, me disse: "minha morte, doutor, entrego a Deus; quero com o senhor falar da vida e da minha verdade".

Sentimentos intensos possivelmente surgirão, como o sentimento de ser descartado pela vida, por Deus ou outra instância; no campo relacional elementos extremamente persecutórios entram em jogo, explicitando-se frequentemente na contratransferência.

Durante aquele atendimento, certa vez, picado por um inseto, criei para mim um quadro persecutório intenso a respeito do desenvolvimento daquela tumefação inflamatória como um tumor maligno. Esses elementos persecutórios, em níveis somáticos, entram também no trabalho de Cortezzi (2014).

A compreensão analítica de momentos dessa natureza direciona uma integração no polo depressivo, favorecendo a possibilidade do paciente lidar de forma mais integrada com seus objetos internos e externos, incluindo movimentos reparatórios.

Outra observação, compartilhada por Hagglund (1981), é que os pacientes terminais incitam vivos e intensos sentimentos de proximidade, num contexto de pesar e de dor. Questões fundamentais da existência humana compartilhada se escancaram diante de nós; como nunca as fronteiras entre psicanálise e vida se esfumaçam, "pedaços fugazes da efêmera existência" são o que são, apontando para a matéria do sonho, da qual é feita a existência.

Aquece-se uma vivência do sublime como dimensão da estética e as dimensões do humano, do profundamente humano da vivência e da relação. A busca do contato é intensa, e permanece até o ponto em que o paciente pode mantê-lo com o ambiente, até o limiar de sua regressão psicossomática, narcísica, ao extremo limite de suas condições clínicas.

É um contato que em última instância se sabe fadado a talvez terminar em breve, escancarando nossa impotência diante do morrer. Por vezes um receio de ser absorvido na regressão do paciente ou no afeto simbiótico leva, e é comum ao medo de ser tragado, para dentro do processo de morrer. Isto ocorre com o próprio analista/terapeuta ou familiares do paciente.

O analista precisa suportar as regressões ou deterioração física do paciente, resistindo à tentação de vê-lo somente como uma psique comunicante. Isto é enfatizado por Hagglund. Em minha experiência, as oscilações do movimento psíquico em direção à dissociação, por um lado, e à integração, por outro, são características fundamentais do trabalho com o paciente terminal, e uma das perspectivas da ação analítica se inscreve exatamente na possibilidade de facilitar esses momentos integrativos, da organização de caminho na direção de se colocar em paz consigo mesmo.

O capítulo da reparação estará em primeiro plano. É claro que a possibilidade dessa prevalecer depende da maturidade emocional, como um todo, do paciente e da qualidade de seus objetos internos.

Relevante é notar que, apesar de a intensidade dos afetos envolvida possa ser muito grande, não se trata de, ao cuidar de um paciente terminal, acentuar qualquer aspecto de suporte ou apoio. Trata-se, sim, de manter o enfoque analítico, como fica claro nos trabalhos mencionados, inclusive o de Minerbo (1998), sustentando um setting interno. O setting interno é o principal amparo norteador do trabalho em curso. Meu trabalho de 1991 mostra isso com clareza.

É essencial o analista se apresentar inteiramente, com toda a sua pessoa, de maneira absolutamente veraz, no contato com o paciente. Se isso é relevante em qualquer análise, aqui é essencial. Desbordando-se a fronteira entre análise e vida, a aventura analítica concentra seus riscos nessa exposição emocional do analista.

Mantendo-nos como analistas é possível, ao menos na minha experiência, que elementos de enactment, mais do que interpretações formais, pontuem o processo. Em outro trabalho (Montagna, 2001) discuto o encontro, mais além da díade transferência/contratransferência.

Uma ressalva: é bem diferente estarmos diante de um paciente, ou de uma pessoa na vida, com ameaça concreta de morte, se ele for adolescente ou se estiver em idade mais avançada. É claro que o significado da morte é absolutamente individual, mas também podemos dizer que seu significado e impacto variam em diferentes pontos da vida.

 

Finitude

Esse zoom na terminalidade teve a finalidade de materializar a discussão por meio de considerações sobre o contato analítico com pacientes terminais. Agora podemos afastar nossa lente para considerar de modo mais amplo, na prática clínica e em concepções outras, questões da finitude e da consciência desta.

Trabalho clássico e dos mais lidos da literatura psicanalítica é "Death and Midlife Crisis", do psicanalista inglês Elliott Jaques (1965), publicado inicialmente no International Journal e com inúmeras republicações em livros e revistas diversos. O autor contempla a instalação da consciência efetiva da mortalidade no indivíduo, o alojamento da própria morte pessoal enquanto "cidadã" do mundo interno. Esse conhecimento real e definitivo da própria finitude, para ele, demarca a "crise da meia idade".

Nesse momento do apogeu da vida tem-se a consciência de que ela é inexoravelmente datada. Em geral não se trata somente da perda de parentes e amigos, mas também da própria morte, ainda que num horizonte não necessariamente imediato. Estamos falando de fases de vida, é claro que, a cada um, vivências de morte e da mortalidade se apresentarão em momentos particulares e diversos.

A meia idade nos reserva usualmente a perda de nossos pais e outras pessoas queridas, mais velhas. Em minha experiência, tanto a consciência como essas perdas reais, colocando-nos diante da necessidade de refazermos o trabalho de luto, testará nossa capacidade de realizá-lo e ultrapassá-lo.

Se conseguimos ultrapassá-lo, uma nova ordem se impõe, nova forma de criatividade, uma outra espira se implanta na espiral da travessia da posição depressiva. Cria-se um novo interessante paradoxo. A consciência de nossa finitude, de nossa pequenez diante da vida, do mundo, das coisas, nos permite olhar para a beleza do mundo em sua infinitude.

Nosso repertório se acresce de uma nova apreensão estética, a experiência estética da vida se aprimora. Se assimilamos a dor dessa transitoriedade e a encaramos, o valor das coisas, da vida, do mundo, aumenta, boquiabertos que ficamos com a incrível discrepância entre a infinitude do mundo e nossa pequenez. Eventualmente nos sentimos apenas um grão, um elo minúsculo na cadeia da vida e das gerações. Como reflete Freud, a transitoriedade nos dá o valor da escassez do tempo (Freud, 1915b).

Mas nem sempre é assim. Sem um trabalho interior, uma reação melancólica advém. Há pouco tempo, fui chamado para atender uma paciente de meia idade, em contexto de vida dessa natureza, a qual, internada num hospital em São Paulo, recusava-se a se alimentar a ponto de necessitar ser nutrida por meio de sonda nasogástrica.

Dinastias chinesas enterraram, na morte dos imperadores, um exército inteiro em suas tumbas. Reações de luto replicam simbólica ou por vezes literalmente essa prática - eventualmente pessoas enterram-se, simbólica ou literalmente, junto com os entes queridos que se vão.

E tudo isso ocorre ainda que, como diz Freud,"no inconsciente todos estão convencidos de sua imortalidade" (Freud, 1915b). A rigor, parece-me difícil supor a literalidade dessa concepção; fantasias, eventualmente até reveladas por sonhos, imortalidade e paralização, podem representar equivalentes no inconsciente das fantasias em relação à morte.

A consciência da morte, em última instância, impõe-se, muitas vezes, ao indivíduo. Minha paciente terminal (do trabalho de 1991) sonha com um relógio na parede, sem ponteiros, invadido por ratos que o corroem, subindo e descendo pelo pêndulo, aos poucos transformando-o em nada. No caso, a regressão psicossomática era grande.

A dor psíquica não pode ser aqui subestimada. Trata-se de uma ferida aberta na alma, que Freud refere à melancolia em Luto e melancolia (Freud, 1917).

Em relação à imortalidade, o que se observa é que, quanto mais ciente da mortalidade, é possível que mais as pessoas queiram crer em histórias relacionadas a viver para sempre (Cave). São quatro os sistemas de crenças relacionados às promessas de imortalidade, de cunho religioso, que ele mostra estarem de algum modo replicadas nas buscas científicas. O primeiro diz respeito à evitação da morte; todas as culturas possuem algum mito ou busca acerca de vivermos para sempre (busca de Eldorado, Shangri-lá etc.). Na cultura de hoje, a busca de prolongar a vida até algum elixir da imortalidade prevalecer.

O segundo se refere à crença na ressurreição. Muçulmanos, cristãos e judeus fazem menção ao morrer, mas de algum modo retornar, e a ciência nos métodos de crioconservação de algum modo espera conseguir exatamente isso (Timothy Leary).

O terceiro registra a crença na vida após a morte, deixar para trás o corpo e continuar em novos horizontes. Winnicott (1935, p.206) descreve a díade crucificação/ressurreição do cristianismo como uma castração simbólica seguida por ereção, referindo-se à tristeza da Sexta-feira Santa de tristeza e desesperança seguida pela Ascensão da Páscoa, defesa maníaca que marca o fim da depressão. O correlato na ciência vem a ser a esperança de upload dos conteúdos da mente para um sistema computacional que preservará, no futuro, a mente desencarnada, continuando a existir.

O quarto são os legados, de cada um, àquilo que se deixa no mundo, por meio de filhos e descendência, da fama e família.

Legados, filhos, descendência, fazem-nos pensar que o medo da morte se infiltra no fundamental terror do aniquilamento.

Se a consciência corporificada da finitude se instaura por meio da e pela crise da meia idade, uma concentração de atenção consciente sobre ela se dá, em geral, a partir dos sessenta anos em diante.

Mudança é a qualidade que define o tempo. E nosso corpo, de pouquinho em pouquinho, não nos deixa esquecer que ele não se cansa de passar. A mortalidade é insistentemente proclamada, e, com ela, enovelamo-nos ao, por um lado, aceitá-la, e por outro, trabalhar com ela em nossa mente. A consciência de nossa vulnerabilidade rouba a cena.

De novo, alguns se abatem mas outros descobrem novas energias e florescem, começando novas venturas, como se a vida oferecesse oportunidades que nunca antes se poderia ousar a tentar. Para alguns, essas novas perspectivas se instalam como uma "segunda adolescência".

 

Permanência e impermanência

Cada vez mais se inscreve a certeza de que a vida é datada, não é atemporal como nosso inconsciente.

E nossa relação com a morte, amalgamada em diferentes misturas de elementos, no curso de nossa existência, plasmando nossa vida e nosso caminho, se por um lado universal, exibe forte inserção cultural. A maneira de a cultura lidar com o viver e o morrer dita muitas das atitudes pessoais diante disso.

A impermanência nos define, mas a própria existência da cultura, do humano, principia pela atitude de nosso grupo diante da morte.

Antes do homo sapiens, desde os neandertais existem urnas funerárias, ou seja, uma ação cultural específica relacionada ao morrer. Com as sepulturas, alguma referência simbólica da morte. Rituais funerários existem desde o paleolítico superior.

Os rituais do luto têm vários objetivos, desde facilitar o trabalho do luto até "espantar os mortos persecutórios", protegendo assim os vivos.

Não é difícil entendermos que são correlatos da morte a ausência e o não ser, que possibilitam a formação do pensamento no ser humano.

Perda e ausência - e particularmente a percepção dela - são essenciais para nossa sobrevivência, para nossa construção do mundo e do mundo simbólico (Freud, 1911). O mundo mental, suas representações e construção do simbolismo, dependem do que não está. Desse modo, o não ser, em última instância a morte, determina o ponto nodal não só da cultura humana, como da construção do indivíduo em sua condição de humanidade.

Por isso se pode dizer que a morte dá sentido à vida.

A travessia da natureza para a cultura dá-se em dois níveis. No material, a fabricação de ferramenta de sílex bruto e pelos indícios de fogueira; do ponto de vista espiritual, também os homens de Neandertal engendram o "humano do humano", enterrando ou dando algum tipo de sepultura a seus mortos (Pittard). Não há nenhum grupo humano que abandone seus mortos ou que os abandone sem ritos (Morin, p. 25). É impressionante, diz Morin, a crença universal na imortalidade.

Fundamentalmente, é o mistério da vida, muito além de nossa compreensão, que deve ser sustentado por cada um de nós, desde o zero até a passagem ao nosso silêncio.

 

REFERÊNCIAS

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PLINIO MONTAGNA
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Recebido 01.06.2016
Aceito 04.06.2016

 

 

1. Conta ele que um rico romano, Pacuvius, encenava diariamente uma cerimônia de seu funeral na qual ele era transportado de uma mesa para sua cama num esquife, enquanto seus convidados e servos entoavam: "Ele viveu sua vida, ele viveu sua vida" (p. 110).
2. Em nossa cultura, o psicanalista Akhtar (2011), por exemplo, descreve ainda o que considera uma "morte suficientemente boa: a) natural; b) madura (depois dos 70 anos); c) esperada, não súbita; d) honrosa, deixando um legado decente; e) com funeral e testamento pré-arranjados; f) civilizada, com a presença de entes queridos em circunstâncias agradáveis; g) aceita; h) pesarosa, capaz de se sentir tristeza, mas sem colapso; i) pacífica, com amor.

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