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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.61 São Paulo ago. 2016

 

EM PAUTA | CORPO: MISTÉRIO, AMBIGUIDADE

 

Passos, manchas e traços

 

Steps, spots and traces

 

 

Vera L. C. Lamanno-Adamo

Membro efetivo e analista didata do GEP-Campinas e da SBPSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tomando como ponto de partida o livro de contos do poeta e escritor português Herberto Helder, a autora traça um paralelo entre a presença do corpo na escrita e no processo de análise.

Palavras-chave: Herberto Helder. Corpo. Processo analítico. Poesia.


SUMMARY

On the path of the short stories written by the Portuguese poet and writer Herberto Helder, the author draws a parallel between the presence of the body in the literature and in the analytical process.

Keywords: Herberto Helder. Body. Analytical process. Poetry.


 

 

Sem pedir licença,
o corpo
entrou,
subverteu,
desalinhou

Os passos em volta é o primeiro livro de prosa do poeta português Herberto Helder, nascido em Funchal, Ilha da Madeira, em 23 de novembro de 1930. Esse livro foi editado pela primeira vez em 1963, quando Herberto estava para completar 33 anos. Pouco antes, ele havia feito uma longa viagem por países da Europa: Holanda, França, Bélgica e Dinamarca. A experiência com essas viagens serve de pano de fundo para a narrativa presente no livro.

Mas não se trata de um livro autobiográfico, é muito mais do que autobiográfico. São passos no interior de si, tendo como estímulo uma interação com o mundo e com o modo de enxergá-lo.

Os passos em volta contém vinte e três contos que interagem uns com os outros, dando-nos a ver o olhar do poeta em suas viagens. Começa assim: "se eu quisesse enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio. Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isto" (p. 11).

Viaja pela solidão, pelo terror, pelo medo - "vai perdendo o nome pelo país adiante... sempre assim, sempre, cidades inexplicáveis no meio da terra ou prados imensos onde se tem medo"(p. 15).

Há a necessidade de se entorpecer para dar conta do terror e da solidão, daquele sentimento de estar completamente só no meio dos outros, horrivelmente só no meio de tanto barulho - "[...] sento-me neste bar e embebedo-me. Preciso estar bêbado. Vejo os vestidos vermelhos e azuis das raparigas escoando-se por entre as mesas. Toca-se a música lancinante. Gosto deste bar. Atordoa-me" (p. 28).

E mais adiante:

o rosto que se perdera, que possivelmente caíra do corpo e rolara debaixo das mesas, o rosto? Lembraste? [...] como se o mundo inteiro cavasse uma ressaca no corpo de cada um, e essa límpida desordem deixasse o coração escorrido. [...] Não sei nada. Atrevo-me a acender um novo cigarro. E o terror entra silenciosamente na minha vida. (pp. 40, 51 e 67)

Com o escritor vamos a Holanda, onde o poeta pensa na tradição e diz para si mesmo: "eu sou alimentado pelos séculos, vivo afogado na história de outros homens. E a sua alma é travessada pelo sopro primordial" (p. 15). Passamos pela "Teoria das cores", onde um pintor se vê abismado com a mutação da cor de um peixe que está retratando. Ancoramos em "O grito": "serei um colecionador de gritos?" (p. 33). Seguindo adiante, encontramos "Os comboios que vão para Antuérpia": "Posso falar? Podemos falar?" (p. 37). Continuando a viagem passamos por "Lugar lugares", um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: "é o meu inferno, é o meu paraíso" (p. 39). Prosseguindo, nos deparamos com "Escadas metafísicas", "onde as pessoas perdem-se nos desvãos, degraus, cotovelos, nas penumbras da casa confusa" (p. 47).

E chegamos ao décimo primeiro conto.

São vinte e três contos, o que permite a um deles ser o central. O décimo primeiro seria o conto central, e o curioso, é que esse conto destoa dos demais, já não são pessoas e lugares que fundam os sentidos e estimulam a tessitura de uma narrativa poética, mas, sim, o próprio corpo do narrador.

Nesse conto não são mais os traços das cidades que instigam o "sopro primordial". Não são mais as cidades com suas ruas circulares, os metros de terra, o cemitério burguês, as histórias terríveis - a imigrante clandestina, sem documentos e que não queria voltar, o homem que, após ter um grande sucesso em uma tourada, é espancado sob o mando do toureiro que fracassou.

No décimo primeiro conto é o corpo que "liberta uma força dramática da frágil trama entre ele e as pessoas". Mais especificamente, um corpo com mancha branca que se alastra.

"Doenças da pele" é sobre um homem que em uma noite de maio olha para as próprias mãos e vê uma nódoa branca. Ele era um homem tranquilo, emocionalmente disponível, convivia com bastante gente: "claro, não amava ninguém, mas considerava-se uma pessoa sem culpas, conhecendo o valor das regras, amando o vagar da terra e das estações. Organizara um conjunto de aforismos" (p. 53).

E, então, sentado a ler, vê uma nódoa esbranquiçada na base do polegar. Uma irritação qualquer na pele. Perguntou-se: um eczema branco?

Isso estava acontecendo em maio, o mês que ele mais gostava, e o livro que lia era excelente: "quanto ao resto, é óbvio que eu me alheava das pessoas que estavam ou entravam ou saíam de minha vida" (p. 54).

Quando foi se deitar percebeu que a mancha havia aumentado, abrangia toda a base do dedo, como um "anel grosseiro". Quando chegou a noite ele teve um sonho:

[...] umas escadas de pedra, do cimo delas, eu fazia um sinal imperceptível de despedida a alguém que se afastava embaixo. Atravessei as portas que se abriam e fechavam à minha passagem sem eu lhes tocar. Depois senti-me cair de um telhado que lentamente se inclinava e por onde eu ia rolando. Havia um pântano no fundo, e mergulhei nele. Durante o sonho, a mão direita agarrava um punhado de brasas. (p. 55)

Acordou bruscamente e acendeu a luz.

A mancha alargava, apareciam outras, outras mais, encheram a palma da mão. E assim novos dias invadiram a vida dele, dias sombrios e ardentes, enquanto as manchas avançavam pulso acima. As suas convicções começaram a vacilar e ele a aproximar-se mais das pessoas. Enquanto isso, a mão que até então era humanista, hábil e construtora, ganhava uma "insólita nobreza, era agora uma mão nefasta, proibida entre os homens, subversiva" (p. 55).

A mancha continuava se alastrando, enquanto ele se aproximava das pessoas e tinha com elas conversas apaixonadas e instáveis, começava a amá-las com aflição.

A mão esquerda começou também a ser atacada e descobriu certa manhã uma mancha no meio da testa, redonda como um olho. A mancha se propagou rapidamente, atingindo o corpo todo: "nu na frente do alto espelho, tocava devagar no corpo e sentia vômitos. Transformara-se num réptil branco... na casa ao lado cantavam... um telefone tocava em qualquer parte... e, na treva do quarto,luzia a fundura do espelho"(p.57).Ele estava nu,lá dentro.

Já não são mais pessoas e cidades que orbitam o medo, a solidão, o terror; o corpo é o elemento crucial desse conto. São manchas brancas que tomam todo o corpo e atravessam a alma do protagonista. É a mão subversiva, nefasta, com nódoas brancas que leva o homem a se despedir de "sua plácida dignidade e inteligência sobre a desordem". O corpo subversivo é o que atravessa portas, que cai da altura e mergulha em pântano fundo. É o corpo nu luzindo na fundura do espelho. É um corpo com mãos que agarram um punhado de brasas.

As manchas brancas projetavam-se em seu corpo e tornavam-se projetores.

Mas não é de estranhar. Herberto Helder contestou o dualismo cartesiano mente/corpo. Contestou, no âmbito literário, poéticas que privilegiam o "pensamento", esquecendo-se do corpo enquanto lugar do poético (Picosque, 2010).

Leitor de Baudellaire, Lautréamont, dos surrealistas, entre outros, agrega à sua obra a concepção de uma poética elaborada com o corpo. Para Herberto, o poema é um instrumento físico, orgânico.

[...] o poema é um instrumento, mas não das disciplinas da cultura. É uma ferramenta para acordar as vísceras - um empurrão em todas as partes ao mesmo tempo. Bem mais forte que uma boa dose de LSD. Age no córtex cerebral, caímos em percepções novas, tudo se torna físico. Compreendemos em sentido revulsivo. As tripas dirigem o universo. (Helder, 1987, p. 124, citado por Picosque, 2010)

Lembro-me que uma paciente me disse: "o que estou sabendo sobre mim levará um tempo para ser assimilado, pois terá que ir entrando pela pele". Depois ela me contou que há anos, de tempos em tempos, ficava com alergia nas mãos. Provavelmente com escamações e prurido.

Uma paciente coça-se.

Uma paciente arranca pedaços da pele, das costas, dos braços, da cabeça: "a analista por vezes coça, em ressonância, as zonas correspondentes de seu próprio corpo" (Herrmann, 1991, p. 173).

Que feridas e em que peles? Questiona Herrmann, trata-se de uma pele metafórica, aqui superposta à cútis?

[...] a paciente havia desenhado em sua pele uma espécie de mapa-múndi afetivo. Num lugar coçava uma amiga que havia abandonado, noutro coçava a mãe que, de criança, a fazia esperar, ou coçava a analista que lhe preparava um lugar de tortura: a sala de espera. (Herrmann, 2001, p. 180)

Recordo-me de uma paciente que não se lembrava de quase nada de sua infância. Seu pai havia falecido quando ela tinha seis anos, mas ela não se recordava de nada a respeito. Não tinha lembrança de seu rosto, de sua voz, ou de alguma cena em que estivessem juntos. Em um período da análise, quando se aproximou de vivências afetivas em relação à perda do pai, seu corpo ficou repleto de placas vermelhas, devido a uma urticária. Lembro-me de que a imagem do seu corpo todo manchado levou-me a associá-lo a um corpo mapeado e me recordei, em seguida, de que certos povos indígenas traziam tatuado na pele o mapa do lugar onde viviam. Essa era a única vestimenta que utilizavam, convertiam seus corpos em mapas, demarcando o lugar onde haviam nascido.

O corpo mapeado descongelou a memória e trouxe a dor da perda na pele, lembrando que para Valéry (citado por Deleuze, 1998) o mais profundo é a pele.

Com outra paciente, o corpo foi também o referencial privilegiado, só que desta feita foi a narrativa de seu corpo perfurado que nos retirou da altura e nos fez mergulhar em pântano fundo.

Até um pouco antes de iniciarmos análise, conforme me relatou, ela era uma pessoa sensata, equilibrada e bastante procurada por amigos e familiares para opinar sobre seus problemas e decisões. No entanto, já não se reconhecia mais. Estava agitada, sentia-se estranha e tinha medo de enlouquecer. Quando se olhava no espelho, contou-me, tinha a nítida impressão de que aquela não era ela, aquele não era seu rosto, seu corpo.

Sentava-se, ela não conseguia deitar no divã, olhava-me fixamente, movimentava os pés e as mãos, e então ficava em silêncio por um longo período até cair em sonolência. "Só quero dormir", dizia.

O que ela tentava me comunicar com sonolência e movimentos de pés e de mãos? Muitas vezes colocava as mãos nos ouvidos e dizia: "Minha cabeça está estalando, estou sufocando, preciso ir embora e dormir". Às vezes dizia que estava com náusea e não parava de salivar, e na sessão seguinte me comunicava que, assim que chegou em casa, vomitou.

Ao longo do processo de análise, fui progressivamente percebendo que essa paciente se utilizava do arcabouço físico para comunicar experiências aterrorizadoras. Sua comunicação comigo era física, orgânica. Uma ferramenta para acordar as vísceras?

Um dia, contou-me que, meses antes de iniciar a análise, sua avó havia morrido. Falou isso em um tom seco que produziu em mim um forte ruído, um som difícil de suportar e descrever.

Olhei para ela e a vi trêmula. Com movimentos rápidos colocava, sem parar, os cabelos lisos e compridos para trás. Nenhum fio podia ficar desalinhado.

Conversamos sobre como a perda de sua avó provocava nela tumulto e desorganização. Punha-se então a alisar os cabelos numa tentativa de alinhar as ideias para não enlouquecer.

Após uma pausa, ela me disse: "quando eu tinha cinco anos, subi na tampa da privada para dar descarga e escorreguei, o vaso sanitário se quebrou e perfurou minha barriga, foi um corte fundo e as minhas tripas pularam para fora".

Dentro e fora, consciente e inconsciente estavam sob o efeito de um rasgo profundo. O que era para ser mantido dentro saltou para fora de forma abrupta e aberrante, desmantelando o equilíbrio psíquico alcançado até então.

O corpo, no decorrer de um processo analítico, torna-se um elemento crucial: mapa-múndi afetivo, campo de batalha onde a história se dramatiza, cenário de representações (MacDougall, 1991). Algumas vezes o corpo entra em cena como uma espécie de buffer (Bleger, 1968). Buffering significa diminuir um choque, acolchoar, suavizar. Na ciência da computação buffer é uma área de armazenamento temporário de dados, para evitar dano ou perda. Assim como um buffer, o corpo às vezes promove uma facilitação psicossomática para evitar danos de enorme proporção: "a elaboração fantasística se apoiando na 'parte lesada do corpo', enquanto esta vai se curando" (Dejours, 1991, p. 22).

Para Dejours (1991) não existe uma simples passagem do soma para a psique. Para esse autor, a relação entre soma e psi-que é da ordem de uma integração subversiva, em que a lógica psíquica, dentro da concepção de subversão, nunca se liberta da lógica somática, pelo contrário, alimenta-se dela e nela se renova ou se faz aprisionar. Resulta daí que a relação entre a ordem somática e a ordem psíquica é do tipo dia-bólica, no sentido etimológico do termo, ou seja, em oposição à sim-bólica, fadada a uma obra de separação e descolamento.

Retorno ao livro Os passos em volta, mais especificamente ao último conto: "Trezentos e sessenta graus".

Ao contrário do que se possa imaginar, esse conto não é um giro de trezentos e sessenta graus, retornando ao ponto inicial. Na casa dos pais o "envelhecimento já tudo atravessara... a casa... como uma escrita onde as palavras se motivam e desenvolvem por si próprias e as metáforas se geram como animadas extensões da carne, do sangue" (p. 123).

 

REFERÊNCIAS

Bleger, J. (1988). Simbiose e ambiguidade. Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1968).         [ Links ]

Dejours, C. (2003). Repressão e subversão em psicossomática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Deleuze, G. (1998). A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Helder, H. (2010). Os passos em volta. Rio de Janeiro: Azougue Editorial.         [ Links ]

Herrmann, F. (1991). Clínica psicanalítica: a arte da interpretação. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

MacDougall, J. (1991). Teatros do corpo. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Picosque, T. A. (2010). A poética obscura e corporal de Herberto Helder. Revista Desassossego, n. 3. Recuperado em 10/12/2015 www.revistas.usp.br/desassossego/article/view /47408/51141.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
VERA L. C. LAMANNO-ADAMO
Av. João Mendes Jr., 180/17
13024-030 - Campinas - SP
tel.: 19 3254-0824
vlamannoadamo@gmail.com

Recebido 03.02.2016
Aceito 21.03.2016

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