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Ide (São Paulo) vol.38 no.61 São Paulo ago. 2016

 

EM PAUTA | CORPO: MISTÉRIO, AMBIGUIDADE

 

A escrita do corpo em O Vice-cônsul, de Marguerite Duras1

 

The writing of the body in Marguerite Duras' The Vice-Consul

 

 

Maria Cristina Vianna Kuntz

Doutora em Língua e Literatura Francesa pela FFLCH-USP. Pós-doutoranda no DTLLC (Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada) da FFLCH-USP. Professora colaboradora na PUC (2003-2013). Autora de Marguerite Duras, trajetória da mulher, desejo infinito, 2014

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O Vice-cônsul, publicado em 1966, é um dos mais de cinquenta títulos da vasta obra de Marguerite Duras (1914-1996). Anne-Marie Stretter é a mulher do embaixador da França e o Vice-cônsul será seu parceiro em alguns momentos e amante frustrado em outros. Partindo de teorias de Blanchot, que consideram a escritura um ato "corporal", e de Barthes, que explica o próprio texto como "um corpo", refletiremos sobre a dificuldade quase "carnal" que a autora confessa ter tido para escrever esse livro. Por outro lado, os conceitos deleuzianos sobre o "corpo sem órgãos" nos auxiliarão na construção do significado do romance, examinando em que medida sua ação se realiza sobre e com os corpos dos protagonistas. Neste trabalho, examinaremos a presença da voz "encarnada" da autora.

Palavras-chave: Marguerite Duras. Narrativa especular. Texto como corpo. Mulher.


SUMMARY

The Vice-consul, published in 1966, is one of the most important Marguerite Duras' novel (1914-1996). Anne-Marie Stretter is the French Ambassador's wife and the Vice-consul will be her partner and the frustrated lover. Based on Blanchot's theories that consider the writing as a "body" act (L'espace littéraire) and on Barthes' theories that explain the text as "a body" itself (Plaisir du Texte), we will reflect about the author's confession that she would have had an almost "charnel" difficulty to write this book specifically. In the other hand, the Deleuze's concepts about the "body without organs" will help us to examine the protagonists' actions that are illustrated and realized by their bodies. We will also focus how the reader can perceive the author's "corporeal voice" in the novel.

Keywords: Marguerite Duras. Mirror structure. Text as body. Woman.


 

 

Marguerite Duras nasceu na Indochina Francesa, atual Vietnã, em 1914. Era filha de professores franceses que se engajaram no programa colonialista da época. Perdeu o pai aos sete anos, mas permaneceu com a família naquele lugar longínquo até seus dezessete anos, quando foi estudar em Paris. Graduando-se em Direito e Matemática, estabeleceu-se na capital e jamais voltou à terra natal. Com seus mais de cinquenta títulos, destaca-se na Literatura Francesa da segunda metade do século XX, sendo suas obras traduzidas aproximadamente em quarenta idiomas. Em seu livro O amante, Prêmio Goncourt 1984, ela conta o início da travessia do oceano Índico e, em diversas entrevistas, declara que esses lugares distantes a marcaram para sempre, assim como sua obra.

Na década de 1950, chama a atenção da crítica com Barragem contra o Pacífico e Moderato Cantabile. Logo após o sucesso de O deslumbramento (Le Ravissement de Lol V. Stein, 1964), a autora publica O Vice-cônsul (1966), que foi fruto de muito "esforço", conforme ela própria declara:

Era um estado doloroso, mas sem sofrimento [...]. Não era triste. Era desesperador. Eu embarcara no trabalho mais difícil da minha vida: meu amante de Lahore, escrever sua vida. Escrever O Vice-cônsul2. (Duras, 1993, p. 25)

Talvez esse sofrimento se deva ao fato de a própria autora ter conhecido a realidade colonial composta por uma sociedade branca expatriada, exploradora, de cujas injustiças ela e sua família haviam sido vítimas; de outro lado, a pobreza extrema, a miséria da Índia (que fala por si), que ela também testemunhara (cf. Duras & Gauthier, 1974, p. 206).

Laure Adler, uma das biógrafas de Duras, registra que, nessa época, a escritora aceitara a encomenda de um filme, um roteiro sobre o problema do alcoolismo, para um laboratório farmacêutico (cf. Adler, 1998, p. 603). Assim, o homem que bebia porque vivia entediado se transformará no Vice-cônsul de Lahore. Ao mesmo tempo que escreve O deslumbramento (1964), seu grande sucesso dessa fase, a autora vai completando O Vice-cônsul, esse livro de "perdição". Assim, os protagonistas, Anne-Marie, o Vice-cônsul e a Mendiga, percorrerão "a estrada do abandono" (Duras, 1966, p. 28), o caminho da perdição.

 

O Vice-cônsul - a estrutura

A história inaugural desse romance surpreende o leitor porque, à primeira vista, parece nada ter a ver com o personagem título. Trata-se da história de uma moça que ficou grávida e por isso foi expulsa de sua casa. Nos três primeiros capítulos, o leitor acompanha sua trajetória de fome e solidão. Ela caminha em círculos, como perdida, sem rumo certo. Essa história é contada por um narrador de segundo grau, um dos personagens da narrativa principal.

É, pois, uma narrativa especular (en abyme)3 que, embora prospectiva, não anuncia a principal, ao contrário, de certa maneira, com ela compete.

A narrativa principal gira em torno de uma recepção que acontecerá na Embaixada da França em Calcutá, na Índia. A autora introduz o leitor na situação paradoxal, característica da colônia, a vida ociosa do pessoal da administração entre festas e intrigas e, de outro lado, a miséria e a lepra, traço indelével da Índia dessa época colonial: "[...] palmeiras, lepra e luz crepuscular"4.

No primeiro momento, os personagens comentam sobre um ato "louco", grave, cometido pelo Vice-cônsul; instala-se, pois, um suspense sobre esse crime "terrível", só revelado bem adiante: ele matara os leprosos que se amontoavam na praça de Shalimar. Por isso todos o abominam, exceto Anne-Marie, mulher do embaixador da França, a quem ele se liga apaixonadamente, embora saiba o quanto ela é inacessível.

 

A escritura do corpo

Blanchot define o trabalho visceral que uma escritura exige, o empenho de um escritor na elaboração de sua obra: "[...] uma realização do infinito que existe no espírito, que apenas vê nele a ocasião de se reconhecer e de se exercer indefinidamente"5 (Blanchot, 1955, p. 107).

Considerando o resultado desse esforço de criação, ele compara a obra literária a um corpo:

O que é a obra de arte? O momento excepcional em que a possibilidade se transforma em poder, em que lei e forma vazia, somente rica de indeterminação, o espírito se transforma na certeza de uma forma realizada, se transforma em corpo que é a forma e nesta bela forma que é um corpo6. (Blanchot, 1955, p. 107 – grifo nosso)

Assim, Blanchot cristaliza a materialidade da obra de arte que se liga ao criador como um corpo revestido da sua própria carne.

Em O prazer do texto, refletindo sobre a escritura, Barthes também a relaciona ao corpo: "O texto tem uma forma humana, é uma figura, um anagrama do corpo"7 (Barthes, 1973, p. 30 - grifo nosso). Portanto, ele estabelece uma relação direta, indelével, entre criador e criatura, insinuando que talvez o texto possa se apoderar do escritor: "[...] O prazer do texto é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias ideias"8 (Barthes, 1973, p. 30 - grifo nosso).

Esse crítico instaura uma autonomia do texto que domina e absorve o escritor de tal maneira que somente a conclusão da obra poderá libertá-lo, alma e corpo.

Nesse sentido, Duras confessa ter enfrentado grande dificuldade na escrita de O Vice-cônsul. Segundo Laure Adler, a autora atravessava um período complicado, "estava em um estado de torpor" (hébétude), consequência do álcool que consumia justamente para realizar e expandir sua inspiração (1998, p. 604). Em seu diário íntimo, havia anotações sobre o processo da escrita desse romance:

[...] na excitação criada pelo álcool pode-se descobrir como Duras sustenta fisicamente seus personagens, identifica-se com cada um deles, pratica o corpo a corpo, se abandona, titubeia, recomeça novamente. [...] Ela lhes dá uma alma, um corpo, uma existência9. (Adler, 1998, p. 605)

Portanto, pressentimos que esse romance tenha se "apoderado" da autora e que ela tenha se entregado às "ideias" de seu próprio corpo.

Confirmando a importância do "ciclo da Índia", na entrevista a Xavière Gauthier, Duras resume o quanto significou para ela O Vice-cônsul, juntamente com O deslumbramento e O amor:

"Há três livros e um filme [...] que mais me perturbaram"10 (Duras & Gauthier, 1974, p. 54).

Concluímos que de sua primeira fase, isto é, até a década de 1970, quando ela começa a dedicar-se mais ao cinema e ao teatro, são esses os prediletos e, dentre os três, O Vice-cônsul foi o mais sofrido, o mais difícil, o mais "arriscado", porque é um livro que ultrapassa as fronteiras dos acontecimentos sem mencioná-los, apenas traduzindo a miséria, a dor e a infelicidade provocadas pela situação de exploração e pelo colonialismo (cf.Adler, 1998, p. 607).

Ao estudar a importância do corpo na obra de Duras, muitos autores focalizam, sobretudo, as relações entre homem e mulher, o aspecto sexual, o adultério, o casamento como instituição falida, o amor proibido, enfim, as várias manifestações do desejo humano que são, de fato, temas prediletos da autora (como se pode ver em Le séjour des corps, de Philippe Vilain).

No presente estudo, pretendemos mostrar, nesse romance de Duras, a presença do corpo como organismo humano em toda sua materialidade e ao mesmo tempo prenhe de todo seu sentimento, ou ao contrário, coisificado, esvaziado de sua humanidade.

Deleuze nos fala de "corpo pleno", que remete a três tipos de corpos: o estado biológico (o corpo humano), ou qualquer corpo que possua um organismo (até um inseto), ou ainda, em um âmbito mais amplo, qualquer corpo onde exista uma solidez (que ocupe um lugar no tempo e no espaço) (cf. Machado, 2011, p. 6).

Em O Vice-cônsul, veremos que os corpos dos personagens é que marcam suas ações; através deles (corpos) expressam suas angústias, seus sofrimentos. Por isso diríamos que a escritura de Duras torna-se "carnal", "visceral" (cf. Blanchot), do ponto de vista da autoria e do ponto de vista da própria escritura que se realiza principalmente nos protagonistas.

Por outro lado, em muitos momentos, os corpos parecerão aniquilados, conforme explica Deleuze, esvaziados "de seus fantasmas, do conjunto de significâncias e de subjetivações" (Deleuze & Guattari, 1996, p. 11), o que ele chama de "corpo sem órgãos".

Guimarães, em artigo que estuda "As relações texto-corpo de Al-Berto e as imagens de Deleuze e Guattari", ressalta que existem obras literárias em que se encontra a "presença obstinada do significante corpo em toda a obra, articulada ao ato literário" (Guimarães, 2006, p. 86). Em O Vice-cônsul, verificamos essa mesma presença: os corpos dos protagonistas serão os significantes sobre os quais se construirá o significado. Ao mesmo tempo, o leitor perceberá que a fluidez da(s) história(s) e da própria escritura tem como âncora, exatamente, esses mesmos corpos.

 

A mendiga

Como dissemos acima, a primeira narrativa se inicia com a expulsão de uma moça da casa materna. O leitor a seguirá em seu caminho de aprendizagem e perdição, conforme lhe ordenara a mãe: "É preciso perder-se. [...] Você aprenderá"11 (Duras, 1966, p.9). Submissa, "cabeça baixa" (Duras, 1982, p. 8), começa sua caminhada, trajetória de miséria, solidão e loucura.

Junto ao grande lago, mistura-se à multidão de mendigos e de mulheres abandonadas e famintas. Então a fome toma conta de seu corpo. Sua inanição a faz perder todo o cabelo e ela se torna "uma bonza suja" e careca12 (Duras, 1982, p. 13).

Esquálida, exausta, ela dorme o tempo todo, como se voltasse ao útero materno. A contradição patenteia-se em seu próprio ventre que abriga uma criança, uma vida, que, a cada momento, invade mais o seu corpo, come toda sua comida e a deixa muito fraca: "Ela vomita, se esforça por vomitar a criança, extirpá-la [...]"13 (Duras, 1982, p. 14).

Seu corpo vai avolumando-se como as águas do grande lago Tonlé-Sap, cujo tamanho se decuplica na época da cheia. Assim, seu desespero de mulher abandonada se revelará consoante à transformação de seu corpo. Sem perspectiva, sua única certeza era de que não poderia guardar, criar "a coisa" que crescia em seu ventre (Duras,1982, p. 41).

Após o nascimento, ela caminharia com aquele fardo às costas, mas, subnutrida, a criança pesava-lhe como um corpo vazio, "corpo sem órgãos", porque parecia já não ter vida.

Depois de entregar aquele corpo inerte a uma "dama" branca, ela prossegue seu caminho, falta-lhe, porém, o peso do corpo da filha; vazio o ventre, vazio o coração, insuportável solidão. Esse momento de separação inevitável dos corpos marcará o começo da sua loucura, o absurdo da existência, a violência maior: "a loucura na floresta"14 (Duras, 1982, p. 70).

Durante dez anos, percorrerá uma grande extensão, de Savanakhet, no Laos, até Calcutá, na Índia. Daí em diante, ela invade a narrativa principal e seu corpo sujo e careca transforma-se em uma verdadeira "mendiga" (Duras, 1966, p. 67), junto à horda de miseráveis e leprosos que estarão sempre à beira do Ganges.

Assim, esse personagem constitui a alegoria do sofrimento de todas as mães impossibilitadas de criar seus filhos, mulheres abandonadas em meio a mais extrema miséria. O corpo dilacerado, cuja fome "rói" suas entranhas, constitui a metáfora de seu sofrimento espiritual, em total desamparo de sua vida sub-humana.

 

Anne-Marie Stretter

Anne-Marie é um nome emblemático da cultura ocidental que poderia representar todas as mulheres do Ocidente.

Com seu porte majestoso, embora um pouco "magra", ela "atravessa" os salões admirada ou observada por todos: ela é a mulher do embaixador da França, a anfitriã, a "Rainha de Calcutá" (Duras, 1966, p. 202), a rainha do pequeno círculo de admiradores, os adidos da embaixada.

A estrutura especular do romance permite, em geral, observar a reduplicação das duas protagonistas, as semelhanças entre a narrativa encaixada e encaixante (principal), como homonímias dos protagonistas, de um personagem com o autor, a repetição de um cenário revelador etc. (cf. Dällenbach, 1977, p. 65). Nesse caso, não há homonímia (aliás, a mendiga sequer tem nome), e aparentemente não há semelhanças, visto que elas vivem em mundos antagônicos: o da abundância e o da extrema miséria. Entretanto, essa oposição permitirá aproximar seus destinos de mulher: mulheres abandonadas que vivem sua dor semelhante.

Ao contrário da mendiga, cuja ação se mostra in medias res15, Anne-Marie é primeiramente vista pelos demais "brancos não adaptados": "Irrepreensível e bondosa; [...] e caridosa"16 (Duras, 1982, p. 79), e tolerante, porque se mostra atenciosa para com o Vice-cônsul; entretanto, a descrição de seu vestido de tule negro, sensual, na recepção, já anuncia seu comportamento sedutor e até leviano junto aos homens brancos da Embaixada.

Após a recepção, estende-se sobre um divã em seu boudoir, o corpo inerte, sonolento, denuncia o tédio e a indiferença em companhia de seus íntimos.

Enquanto conversam sobre a história de uma mendiga, escrita por Peter Morgan, um dos personagens, ela mergulha em um sono profundo e se torna ainda mais atraente. Seu corpo lânguido, porém, parece enfeitiçar e se oferecer a seus acompanhantes que disputam seus favores e até suas carícias: "Levanta a cabeça e sorri também. Um só olhar e as portas da branca Calcutá docemente cedem"17 (Duras, 1982, p. 85).

Por outro lado, seu passado a envolve em mistério: há dezessete anos, deixara o marido em Savanakhet (o mesmo lugar de onde viera a mendiga) e seguira o Embaixador a caminho da Índia: "Em Calcutá, ainda hoje não se sabe se, quando ele a encontrou em Savanakhet, ela fora deixada no fundo da desonra ou da dor"18 (Duras, 1982, p.110).

Assim, pode-se estabelecer um contraponto entre a "Blanche de Calcutta" (Duras, 1966, p. 152) e a mendiga que também viera de longe, intrigando a todos com seu jeito, seu corpo asqueroso, de bonza suja e careca. Contudo, adaptada ao local, sem consciência de qualquer perigo, a mendiga não teme a lepra. Apesar de sua miséria, goza de liberdade, graças à sua loucura: vai e volta das Ilhas ou nada nas águas do Ganges sempre que deseja. Em alguns momentos, como se fosse a própria Parca, um anúncio de morte19, sua figura grotesca assusta os admiradores de Anne-Marie.

Em contraposição, Anne-Marie encanta a todos e deve ficar em Calcutá, limitada a um mundo restrito, superficial, sem perspectivas, comparável ao calor que a sufoca de maneira insuportável. Incapaz de expressar-se, ela se desfaz em lágrimas: "Parece-lhe que no exílio do olhar da embaixatriz, após o cair da noite, havia lágrimas que esperavam a manhã"20 (Duras, 1966, p. 164).

Mesmo rodeada pelos "homens de Calcutá" (Duras, 1966, p. 198), no luxuoso hotel Prince of Wales, a tristeza encobre o perfume de seu corpo: "Dir-se-ia que a embriaguez ganha espaço, que se expande o odor de uma mulher que chora"21 (Duras, 1966, p. 196).

No decorrer do romance, sua figura heráldica aniquila-se, parece chegar ao limite ("corpo sem órgãos") e adquire características sinistras, à semelhança da mendiga: "Ela é magra sob o peignoir preto, ela cerra as pálpebras e sua beleza desaparece. Em qual insuportável bem-estar ela se encontra?"22 (Duras, 1966, pp. 195-196). Seria esse um tipo de êxtase, de desligamento, de gozo na ausência? Dessa forma, a figura majestosa do início da história vai desvanecendo-se, sua roupa escura e seu aspecto desfigurado apontam para um abatimento que toma conta do seu corpo em um torpor quase letal:

Seu corpo alongado não apresenta mais o volume habitual. Ela é achatada, leve, tem a retidão de uma morta. Tem os olhos fechados, mas não dorme, ao contrário. O próprio rosto está modificado, diferente, amassado sobre si mesmo, envelhecido. Subitamente tornou-se aquela que, feia, teria sido outra mulher23. (Duras, 1966, p. 197)

Portanto, se ambas as protagonistas diferem diametralmente quanto a seus corpos, seu aspecto físico e sua situação social, elas se aproximam em sua obsessão pelas águas e em seu aniquilamento, isto é, a loucura da mendiga (bonza careca) equivale em certa medida ao tédio, ao torpor, ao vazio de Anne-Marie com sua "cabeça vazia de pensamentos".

Assim, elas parecem unir seus destinos semelhantes de mulheres solitárias e abandonadas: "[...] flor de longa haste que caminha, procura e pousa sobre o canto da mendiga"24 (Duras, 1966, p. 207).

Por isso mesmo, comparando as duas, Julia Kristeva declara: "O universo etéreo de Anne-Marie adquire uma dimensão de loucura que não seria tão intenso sem o empréstimo (a presença) da mendiga"25 (1987, p. 255).

 

O Vice-cônsul

O Vice-cônsul, que dá título ao romance, é o coadjuvante de Anne-Marie na narrativa principal. Danielle Bajomé observa as estruturas triangulares dos romances de Marguerite Duras e explica que o Vice-cônsul fecha o triângulo, não no sentido amoroso, mas em um jogo de espelhos ele reflete traços dessas duas mulheres, Anne-Marie e a mendiga (Bajomé, 1993, p. 263).

Introduzido ao leitor por meio de um relatório ao Embaixador, que tenta justificar sua atitude "insensata" (Duras, 1966, p. 41), não o descrevendo como louco ou criminoso, mas apenas como um bêbado, com problemas nervosos. Na verdade, o seu ato tresloucado é comparável a um genocídio26.

No início da narrativa principal, ele "atravessa" os jardins da embaixada e depois "observa" os leprosos em uma praça - postura que anuncia o crime cometido na praça de Shalimar, em Lahore, onde era Vice-cônsul. Sob o calor escaldante, "quase nu" (Duras, 1982, p. 37), em seu quarto, a inquietação de seu corpo mostra sua ansiedade, sua insônia.

Vemos, pois, que também sua ação é caracterizada através de seu corpo, seus gestos e seus gritos.

Ao companheiro de noitadas no clube local, o Vice-cônsul conta que "é virgem" (Duras, 1982, p.60) e que estaria apaixonado por Anne-Marie, cuja bicicleta, que fica sempre junto à quadra de tênis, ele parece admirar como objeto fetiche27: "- Um objeto poderia substituir, a árvore que ela tocou, e também a bicicleta"28 (Duras, 1966, p. 80). Ou seja, ante sua dificuldade, ele se satisfaria apenas dessa maneira.

Visto por outrem, em uma das raríssimas descrições de personagem denuncia-se o peso dessa virgindade:

Ele é alto, viu? Ela lhe chega às orelhas. Ele veste o smoking com desembaraço. Aspecto enganador da silhueta e do rosto de traços regulares. Honra do nome... abstinência terrível do homem de Lahore, de Lahore mártir, leprosa, na qual ele matou, sobre a qual ele jurou liquidar a morte29. (Duras, 1966, p. 123)

Ante "a transparência dos olhos verde-água" (Duras, 1966, p.125) de Anne-Marie, seu corpo todo treme e ele fala da lepra, do medo dessa doença e finalmente de Lahore. Assim, o seu desejo, sob o medo, confunde-se com a própria doença e com a matança em Lahore na praça de Shalimar. Anne-Marie tenta justificar, mas, conforme está no seu relatório, é "impossível", inexplicável. Ela própria acaba por sentenciá-lo no comentário com seus amigos: "um homem morto" (Duras, 1966, p. 127). Com esse crime inominável, ele teria tentado matar a si próprio, a sua incapacidade de amar, seu corpo intocado, seu vazio; exterminaria o absurdo do mundo, a miséria, a doença.

Expulso do grupo social, provoca escândalo com gritos terríveis. Em seguida, o narrador focaliza a mendiga, que aguarda os restos de comida às portas da embaixada, e, realçando a miséria e a loucura, aproxima, assim, os dois personagens: "[...] magreza de Calcutá, [...] sentada entre os loucos, ela está aí, a cabeça vazia, o coração morto [...]"30 (Duras, 1966, p. 149).

O aniquilamento de ambos, seus corpos esvaziados de desejos, coloca-os definitivamente entre os loucos e leprosos, sendo a lepra a metáfora da loucura.

 

Anne-Marie, a mendiga e o Vice-cônsul

A estrutura da narrativa especular coloca em confronto as duas protagonistas e o Vice-cônsul e aprofunda o seu significado, além de propor uma reflexão sobre a escrita.

Duras ressalta a importância desse mundo "corporal" que envolve as caminhadas de seus personagens: "Estamos em um mundo totalmente corporal. É caminhando que lhe vem sua lembrança [...] não é refletindo"31 (Duras & Porte, 1977, p. 98). Embora essa afirmação seja a respeito de Lol (O deslumbramento), também podemos aplicá-la às longas trajetórias percorridas pela mendiga, pelo Vice-cônsul e por Anne-Marie.

A mendiga, expulsa de casa, durante dez anos, atravessou os territórios do Vietnã até Calcutá em uma "estrada de abandono" e perdição (Duras, 1966, p. 28). Anne-Marie e o Vice-cônsul vieram do hemisfério Norte (ela de Veneza, ele de Paris) em missão diplomática e percorreram outras cidades da Ásia até chegarem à Índia, onde, na verdade, parecem buscar suas respectivas identidades32.

O Vice-cônsul jamais acedeu a um corpo de mulher e, embora enamorado de Anne-Marie, não consegue aproximar-se convenientemente. Abandonado pela mãe, vive sua solidão e sua loucura injustificável, o peso de seu crime, seu segredo conhecido por todos. Continuará marginalizado (vem de Lahore/ Là-hors/ lá de fora), abominado por todos, embora o "sistema" ainda possa permitir-lhe certo conforto.

Como a Mendiga, ele faz parte do mundo da loucura, e como Anne-Marie, vive um vazio, um tédio, uma vida sem sentido, praticamente aguardando a morte, porque quem mata quer morrer. Por outro lado, ambas mergulham e renascem no ventre maternal, o rio Ganges, a lagoa, o mar.

 

Conclusão

Assim, nesse jogo de espelhos, os três personagens, cada um à sua maneira, acham-se ligados por sua marginalidade: a solidão, o vazio, a loucura, a morte.

Vimos que o romance gira em torno dessas trajetórias que acabam em Calcutá, terra sagrada, ancestral, transformada no imaginário de Duras. Esses corpos que atravessam continentes tornam-se significativos, apontando para questões de toda a humanidade: a miséria humana, a movimentação de corpos sem rumo certo, como a mendiga; de corpos doentes, como o Vice-cônsul; de corpos vazios e tristes, como Anne-Marie.

Desse modo, Duras lança sua palavra, tenta exprimir "a dor das Índias" (Duras, 1966, p. 157) e até o final de seus dias (1996), à semelhança da mendiga, continua sua caminhada e sua escritura: "Ela caminharia, [...] uma caminhada muito longa, [...] ela caminharia, e a frase com ela [...]"33 (Duras, 1966, pp. 179-180).

Na entrevista a Michelle Porte, a autora revela como se deixa invadir por sua vivência, a "massa do vivido", e, à semelhança da mendiga "careca" ou de Anne-Marie com sua cabeça "vazia", ela se entrega à escritura:

Quando eu escrevo, tenho o sentimento de estar na desconcentração extrema, não tenho absolutamente consciência de mim mesma, sou como uma peneira, tenho a cabeça esburacada [...]. O que chega para você na escrita, é, sem dúvida, simplesmente a massa do vivido [...]34. (Duras & Porte, 1977, pp. 98-99).

E essa massa do vivido é por ela transformada com uma voz "encarnada", fruto de seu empenho não apenas intelectual, mas provinda de uma "sombra interna", do âmago de seu próprio corpo:

Na minha sombra interna, onde o impulso do eu acontece, na minha região escrita, eu leio que se passa isto. [...] Tento traduzir o ilegível, passando por um veículo da linguagem indiferenciada, igualitária. Privo-me, pois, da integridade da sombra interna que, em mim, compensa a vida vivida35. (Duras & Gauthier, 1974, p. 50)

 

REFERÊNCIAS

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Roudinesco, E. & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. (V. Ribeiro, L. Magalhães, trads.). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Vilain, P. (2010). Dans le séjour des corps. Chatou: Ed. de la Transparence.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
MARIA CRISTINA VIANNA KUNTZ
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Recebido 08.04.2016
Aceito 30.04.2016

 

 

1. A reflexão deste trabalho é um prolongamento das pesquisas de meu doutorado que versaram sobre Moderato Cantabile e o Ciclo da Índia (O deslumbramento, O Vice-cônsul e O amor), de Marguerite Duras.
2. "C'était un état de douleur sans souffrance [...]. Ce n'était pas triste. C'était désesperé. J'étais embarquée dans le travail le plus difficile de ma vie : mon amant de Lahore, écrire sa vie. Ecrire Le Vice-Consul" (Duras, 1993, p. 25). Quando não indicadas expressamente, as traduções do francês são da autora.
3. A narrativa especular consiste em uma narrativa que se desenvolve dentro de uma outra mais importante, a principal. O narrador da segunda narrativa é, em geral, um dos personagens da história principal. Como indica o adjetivo, ela se desenvolve em espelho, isto é, apresentando uma situação análoga à da narrativa principal. Ela tem uma função metaficcional, isto é, de refletir sobre a escrita (cf. Dällenbach, 1977, p. 25).
4. "[...] palmes, lèpre et lumière crépusculaire" (Duras, 1966, p. 32).
5. "[...] réalisation de ce qu' il y a d'infini dans l'esprit, qui ne voit en elle que l'occasion de se reconnaître et de s'exercer indéfiniment."
6. "[...] qu'est-ce que l'oeuvre? Le moment exceptionnel où la possibilté devient pouvoir, où loi et forme vide qui n'est riche que de l'indéterminé, l'esprit devient la certitude d'une forme réalisée, devient ce corps qui est la forme et cette belle forme qui est un beau corps."
7. "Le texte a une forme humaine, c'est una figure, un anagramme du corps?"
8. "[...] ce plaisir du texte est ce moment où mon corps va suivre ses propres idées - car mon corps n'a pas les mêmes idées que moi."
9. "[...] dans l'excitation créée par l'alcohol on peut découvrir comment Duras tient physiquement ses personnages, s'identifie à chacun d'eux, pratique le corps à corps, s'abandonne, titube, repart. [...] Elle leur donne une âme, un corps, une existence."
10. "Il y a trois livres et un film [...] qui m'ont le plus bouleversée."
11. "Il faut se perdre. [...] Tu apprendras."
12. "[...] une bonzesse sale."
13. "Elle vomit, s'efforce de vomir l'enfant, de se l'extirper [...]."
14. "[...] la folie dans la fôret."
15. Quando a ação já se anuncia no início do livro (cf. Bourneff & Ouellet, 1978, p. 58).
16. "Irréprochable, et bonne, [...] et charitable" (Duras, 1966, p. 100).
17. "Elle rélève la tête et sourit aussi. Un seul regard et le portes de la blanche de Calcutta doucement cèdent" (Duras, 1966, p. 107).
18. "[...] à Calcuta on ne sait pas encore aujourd'hui si elle était réléguée au fond de la honte ou de la douleur à Savanakhet lorsqu'il l'a trouvée" (Duras, 1966, p. 99).
19. As Parcas são, na literatura latina, as deusas do destino, elas fabricam o fio da vida, do destino. Para os gregos, eram as Moiras que também perseguiam os homens, preparando-lhes acidentes, até levá-los à morte (cf. Brunel, 1988, p. 1140).
20. "Il lui semble que dans l'exil du regard de l'ambassatrice, depuis le commencement de la nuit il y avait des larmes qui attendaient le matin."
21. "On dirait que l'ivresse gagne, que l'odeur d'une femme qui pleure, se répand."
22. "Elle est maigre sous le peignoir noir, elle serre les paupières, sa beauté a disparu. Dans quelle insuportable bien-être se trouve-t-elle?"
23. "Son corps allongé paraît privé du volume habituel. Elle est plate, legère, elle a la rectitude d'une morte. Elle a les yeux fermés, mais elle ne dort pas, c'est le contraire. Le visage lui-même, est modifié, différent, il est ramassé sur lui-même, vieilli. Elle est devenue subitement celle que, laide, cette femme aurait été."
24. "[...] fleur à longue tige qui chemine, cherche et se pose sur le chant de la mendiante."
25. "L'univers étheré d'Anne-Marie acquiert une dimension de folie qu'il n'aurait pas aussi fortement sans l'empreinte sur lui de l'autre rôdeuse."
26. Sabe-se que Duras jamais se conformou com o genocídio contra os judeus ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial, por isso em várias obras ela trata diretamente desse assunto (por exemplo, La Douleur, Abahn Sabanah David, Aurelia Steiner, Détruire, dit-elle etc.).
27. "Fetichismo", que vem de "fetiche", que quer dizer sortilégio. "Designa quer uma atitude da vida sexual normal que consiste em privilegiar uma parte do corpo do parceiro, quer uma perversão sexual (fetichismo patológico) caracterizado pelo fato de uma das partes do corpo (pé, boca, seios) ou objetos relacionados (sapatos, chapéus, tecido) serem tomados como objeto exclusivo de uma excitação ou ato sexuais" (Roudinesco & Plon, 1998, p. 235).
28. "Un objet pourrait faire l'affaire, l'arbre qu'elle a touché, la byciclette aussi."
29. "Il est grand, vous avez vu? Elle lui arrive à l'oreille. Il porte le smoking avec aisance. Aspect trompeur de la silhouette et du visage aux traits réguliers. Honneur du nom... abstinence terrible de l'homme de Lahore, de Lahore martyre, lépreuse, dans quoi il a tué, sur quoi il a adjuré la mort de fondre."
30. "[...] maigreur de Calcutá, elle est assise entre les fous, elle est là, tête vide, coeur mort [...]" (Duras, 1966, p. 149).
31. "Nous sommes dans un monde totalement corporel. C'est en marchant qu'une autre mémoire lui vient [...] ce n'est pas en réfléchissant [...]".
32. "[...] essas Índias pertencem ao imaginário cujas raízes históricas podem-se detectar na fusão dos mitos de origem sempre fascinantes para o homem medieval que os cristalizou na América de índios e de Eldorados" (Pinto, 1996, p. 157).
33. "Elle marcherait, [...] une marche très longue [...] elle marcherait et la phrase avec elle."
34. "Quand j'ecris, j'ai le sentiment d'être dans l'extrême déconcentration, je ne me possède plus du tout, je suis moi même un passoire, j'ai la tête trouée [...]. Ce qui vous arrive dessus dans l'écrit, c'est sans doute tout simplement la masse du vécu [...]".
35. "Dans mon ombre interne où la fomentation du moi par moi se fait, dans ma région écrite, je lis que c'est passé cela. [...]. Je tente de traduire l'illisible, en passant par un véhicule du langage indifférencié, égalitaire. Je me prive donc de l'intégrite de l'ombre interne qui, en moi, balance la vie vécue."

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