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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.61 São Paulo ago. 2016

 

CONTRAPONTO

 

Elipses freudianas: as práticas e usos do corpo como sintoma da subjetividade neoliberal1

 

Freudian ellipses: the practices and uses of the body as a symptom of neoliberal subjectivity

 

 

Nelson da Silva JuniorI; Jean-Luc GaspardII

IPsicanalista, doutor pela Universidade Paris vii, professor livre-docente e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise, juntamente com Christian Dunker e Vladimir Safatle. Autor dos livros Le fictionnel en psychanalyse. Une étude à partir de l'œuvre de Fernando Pessoa (2000), Linguagens e pensamento. A lógica na razão e desrazão (2007) e Histeria e gênero: o sexo como desencontro (2015)
IIPsicanalista, maître de conférences em psicopatologia clínica. Diretor da unidade Recherches en Psychopathologie: champs et pratiques spécifiques.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Assumindo que, em psicanálise, os sofrimentos individuais remetem a formas gerais do discurso, visamos discutir os pressupostos metodológicos que permitem o pensamento freudiano chegar às condições sociais de possibilidade dos sofrimentos individuais. Com efeito, tal recuo permite que, em um segundo momento, Freud considere como sintomáticas as formas discursivas convencionalmente consideradas como normais. Busca-se assim tomar as modificações corporais como sintomas da cultura atual, marcadas pelo que Lacan chamou de discurso da ciência e discurso capitalista e que se organizam em torno do que o discurso neoliberal promove como um sujeito ideal.

Palavras-chave: Modificações corporais. Patologias do social. Masoquismo. Subjetividade neoliberal.


SUMMARY

Assuming that in Psychoanalysis the individual suffering refers to general forms of speech, we aim to discuss the methodological assumptions which enable the Freudian thought to infer the social conditions of possibility of individual suffering. Such assumptions allow Freud, in a second moment, to consider as symptomatic some discursive forms conventionally considered as normal. So, we attempt to take the body modifications as symptoms of the current culture , marked by what Lacan called the discourse of science and the capitalist discourse and which are organized upon what the neoliberal discourse prones as an ideal subject.

Keywords: Body modifications. Social pathologies. Masochism. Neoliberal subjectivity.


 

É evidente que o impacto das relações de poder sobre o corpo, por meio de dispositivos e de saberes, é comum a todas as épocas e culturas (Le Breton, 1990; Berthelot, 1998). Mas, diferentemente de outrora, quando as sociedades eram locais, bem definidas e estruturadas a partir de rituais religiosos ou de iniciação muito eficazes, o modo de subjetivação presente no atual discurso neoliberal, ou seja, seus modos de constituição do corpo e da relação com a sexualidade, parece se organizar em torno da categoria do indivíduo, responsabilizando cada um pelo modo como ele terá "acesso à sua própria inteligibilidade, à totalidade de seu corpo e à sua identidade" (Foucault, 1976, p. 205). Mas o que é o sujeito neoliberal? A matriz conceitual do sujeito ideal do neoliberalismo, o homo economicus, concebe-o como funcionando em "uma mecânica certamente egoísta, mas sobretudo sem transcendência: ele não cessa jamais o processo de maximização de sua utilidade em nome de exigências apresentadas como 'superiores'" (Lagasnerie, 2012, p. 154). Isso quer dizer simplesmente que, nesse tipo ideal de sujeito, valores transcendentais ao indivíduo, como, por exemplo, a Justiça e/ou a coisa pública, a res publica, são obsoletos e sem sentido. Com efeito, não cabe, na lógica constitutiva desse novo sujeito, uma renúncia ao interesse pessoal em nome do interesse de todos. Há, assim, um novo ideal em jogo no discurso, que orienta os ideais de cada um dos sujeitos inseridos nessa cultura.

Cabe perguntar se essa herança tardia da modernidade, se esse movimento quase planetário de individualização, se esse cuidado contemporâneo de si promovido por tal discurso que prega exclusivamente a soberania absoluta de si, não age, na verdade, como um engodo, uma ilusão alienante do sujeito, que esconde uma dominação de discursos cada vez mais totalizante e hegemônica e também o mal-estar particular a essa dominação? Essa suposição nos convida a investigar como se dão os modos de produção das subjetividades atuais para compreender como novos sintomas podem eventualmente surgir em tal cultura (Gaspard, 2010). Nossas pesquisas de campo em psicopatologia, organizadas a partir da referência à teoria psicanalítica, visam, nesse sentido, demonstrar a hipótese que situa o desenvolvimento de certas práticas e usos do corpo enquanto respostas a impasses e à lógica do laço social contemporâneo (Hiltenbrand, 2005). Nossa hipótese de leitura da cultura a partir das práticas e usos do corpo é de que é por meio da variedade das respostas individuais, que implicam e fazem uso do corpo, por meio de novos modos de gozar ou de novas maneiras para os sujeitos de tomar posição diante do saber, do poder e do sexo, que poderemos localizar as consequências subjetivas da atual economia de normalização, inerente ao neoliberalismo e a sua principal expressão discursiva, a publicidade.

Freud supunha que a cultura possui um poder causal na produção de suas patologias e se referia a estas como "patologias da comunidade culturalizada" (Freud 1930/1999). Buscaremos primeiramente demonstrar como funcionam sua leitura e seu diagnóstico da cultura, para em seguida abordar o que as práticas do corpo nos informam sobre a cultura atual.

Comecemos com algumas observações preliminares sobre a abordagem psicanalítica do corpo: a saber, que, para a Psicanálise, um corpo é sempre construído pelos discursos, e que, portanto, haverá falhas nessa construção. Mas talvez seja mais preciso falarmos em falhas necessárias: estamos nos referindo ao desencontro estrutural do corpo diante do que se sabe e se diz sobre ele, sobre sua impossibilidade de compreensão absoluta pela linguagem. Freud descreve esse desencontro constitutivo pelo modo tateante como o adulto busca a ação específica, aquela capaz de apaziguar os gritos do recém-nascido em desespero. O adulto não sabe a priori do que sofre seu bebê, o choro não possui desde o início um significado nem a capacidade de significar. Lacan retoma esse desencontro enquanto estrutural, isto é, como impossibilidade, uma vez que, para além dos erros e acertos do adulto, é sua própria captura na linguagem que separa o sujeito de um estado de imanência ontológica com seu corpo. Contudo, e simultaneamente a essa separação, a linguagem dá um corpo ao bebê, isto é, um corpo com significados nele inscritos e capaz de inscrever significados em outros corpos. Mas esse novo corpo, vítima e autor de significações, é essencialmente falho, exposto à experiência sempre lacunar do próprio campo do sentido.

Assim, do ponto de vista da Psicanálise, o corpo se apresenta com uma dupla existência. Por um lado, ele é nomeado pelos pais e pela cultura desses pais, e, nesse sentido, o corpo é construído segundo a arbitrariedade dos significantes e de suas combinatórias a cada caso. Mas, por outro lado, esse corpo, ainda que seja construído pela cultura, sistematicamente a ultrapassa na medida em que jamais poderá ser totalmente nomeado pela linguagem. Ora, é precisamente por meio dos desencontros e falhas na construção simbólica dos corpos que este outro corpo, perdido e inapreensível pela linguagem, presentifica-se sob a forma de sofrimento e gozo (Melman, 2005).

Temos, nessa hipótese psicanalítica, três posições teóricas importantes. A primeira diz respeito à insuficiência, ou melhor, à fragmentariedade estrutural da linguagem diante do real do corpo. O saber sobre o real do corpo jamais será absoluto. A segunda é que o sofrimento e o gozo são indissociáveis da existência humana, esta espécie "afligida pela linguagem", para retomar a expressão de Lacan. O sofrimento sinaliza que não somos só feitos de linguagem, mas também do que lhe escapa. A terceira é que se podem isolar pelo menos dois vetores causais do sofrimento. O primeiro se localiza nesta paradoxal relação de determinação e exclusão mútua da linguagem com o corpo inerente ao advento, ou melhor, ao nascimento do sujeito no universo da linguagem. Junto com o corpo nomeado, há sempre um sofrimento estrutural, invariável e necessário. Mas há um segundo vetor causal do sofrimento, presente na arbitrariedade dos significantes e suas combinatórias. Esse segundo tipo de sofrimento admite variações, pois há combinatórias significantes que são sensivelmente mais flexíveis e arejadas que outras, conforme nos demonstra a clínica.

A presença desses dois centros causais do sofrimento convida a pensar esse circuito como uma elipse, figura geométrica que tem dois centros em sua construção. Pretendemos demonstrar que, a partir da figura de uma elipse causal, uma homologia estrutural pode ser reconhecida entre a teoria do corpo do sujeito e a teoria social de Freud.

 

As patologias do social segundo Freud

Desde o início, a teoria psicanalítica parece se organizar segundo um antagonismo entre a natureza e a cultura: por um lado, o recalcamento pulsional é necessário para a instauração da cultura, por outro lado, seus efeitos serão patológicos sobre os sujeitos e suas relações "culturalizadas". Mas, ao longo da obra de Freud, os efeitos patológicos em questão, ou seja, as patologias do social, sofrem uma alteração importante. Num primeiro momento, Freud concebe uma conciliação possível entre pulsionalidade e cultura sem resto patológico. A cultura retiraria da pulsão apenas o que seria necessário para sua constituição e, exceto nos casos de renúncias pulsionais excessivas, não haveria patologias causadas pela cultura. Mas, a partir de 1920, tal conciliação se torna conceitualmente impossível, quando uma nova teoria pulsional inviabiliza a solução sublimatória para o antagonismo entre a natureza e a cultura. Nessa teoria, toda e qualquer sublimação teria como efeito a desfusão pulsional, liberando a pulsão de morte para agir sem rédeas ou para se reenlaçar a Eros em refusões particularmente nefastas (Silva Junior, 2012b).

Para nossa discussão, o importante nesta versão da etiologia cultural do sofrimento é uma implacável lógica proposta pelo pensamento freudiano: o mal-estar da civilização adquire uma segunda faceta, ao lado daquela dos sintomas neuróticos, a saber, a inevitável liberação da pulsão de morte pela própria cultura, obrigando o psiquismo a dominá-la por uma economia masoquista, expressa fundamentalmente pelo sentimento de culpa inconsciente (Silva Junior, 2012a; Gaspard et. al., 2014).

Nesse nível de teorização, o que está sendo colocado em jogo por Freud é evidentemente uma antropologia filosófica, ou seja, uma teoria preocupada em compreender como se deu a separação entre a animalidade e o humano. Se pensarmos na figura da elipse, essa será, contudo, apenas um dos dois centros causais da teoria das patologias do social em Freud. No segundo centro, a eficácia patogênica do sofrimento é atribuída por Freud ao problema da verdade; mais especificamente, à relação deficitária dos discursos com a verdade dos sujeitos e de sua vida em comunidade. Em outras palavras, as grandes narrativas de uma cultura, seus ideais, suas exigências morais, podem fazer adoecer na medida em que estabelecem relações deficitárias dos seus sujeitos com a verdade de sua história e de seus desejos.

Assim, se o primeiro centro da elipse causal do sofrimento diz respeito a uma antropologia filosófica, à teoria sobre o que torna o homem diferente dos animais, o segundo centro se inscreve numa filosofia da história, isto é, a relação do homem com sua verdade. É no segundo centro do sofrimento que se localiza o papel propriamente político das teses psicanalíticas. Desde 1908, em A moral sexual civilizada e a neurose moderna, até 1930, em O mal-estar na civilização, uma mesma acusação de hipocrisia moral é feita por Freud contra os discursos que negam ou escamoteiam a irredutível natureza sexualizada e/ou agressiva do ser humano.

Retomemos a ideia central desse percurso para em seguida avançarmos para a questão das marcas corporais como sintomas da cultura atual. A homologia estrutural na teoria freudiana do corpo e da cultura foi definida por meio da figura da elipse, onde cada centro corresponde a uma causa diferente do sofrimento humano. No primeiro centro, a hominização e a inserção na linguagem produzem um resto necessário de sofrimento e gozo. No segundo centro da elipse, a relação dos sujeitos com a verdade pode potencializar ou atenuar o sofrimento proveniente da estrutura de impasse entre o corpo e a linguagem, no nível ontogenético, e entre a natureza e a cultura, no nível filogenético.

Como já mencionado, na teoria freudiana o masoquismo é o processo que garante a possibilidade de constituição do laço social, uma vez que ele é o único processo psíquico capaz de atenuar o poder da pulsão de morte de inviabilizar a vida em sociedade caso esta se expresse como pulsão de destruição, isto é, caso esta seja desviada para o próximo. É nesse sentido que privilegiaremos a descrição das práticas do corpo como soluções inventadas pelos sujeitos para se abrigarem no laço social pela chave do masoquismo.

 

Usos do corpo e masoquismos

Os resultados de nossa pesquisa sobre as marcas corporais2 demonstram que as funções psíquicas das práticas do corpo podem ser descritas pelas três modalidades de masoquismo apresentadas por Freud. Retomemos algumas referências sobre esse conceito. Após mudanças radicais na base pulsional da teoria psicanalítica com o texto Para além do princípio de prazer (1920), Freud dá ao masoquismo um lugar central na organização psíquica em O problema econômico do masoquismo (1924/1982). Note-se, contudo, que o masoquismo é descrito segundo uma singular tripartição entre um masoquismo originário ou erógeno, e dois outros, dele derivados: o masoquismo feminino e o masoquismo moral. Dito de outro modo, enquanto o masoquismo originário é parte da estrutura de todo e qualquer sujeito, o masoquismo feminino e o moral seriam suas possíveis expressões. O masoquismo originário seria uma disposição fisiológica do ser humano a associar qualquer tensão ou sensação de dor ao prazer. A separação final entre esses dois tipos de sensações só se dá pela intervenção da educação e da cultura. O masoquismo feminino se expressaria nos clichês do masoquismo como perversão sexual, no qual a humilhação e a servidão física e psíquica são condições para a excitação erótica. Contudo, são as expressões do masoquismo moral as mais particularmente inquietantes. Por um lado, ele responderia por uma aparente intencionalidade do destino, em que acontecimentos em série parecem intencionalmente se encadear para levar o sujeito à ruína. Por outro, o masoquismo moral seria responsável pela disposição dos sujeitos ao sacrifício ético, ao prazer na renúncia ao prazer, e, em suas expressões patológicas, por ações criminosas que seriam realizadas unicamente em vista da necessidade de punição inconsciente. Segundo Freud, o masoquismo moral resulta de uma relação entre duas instâncias psíquicas, o Eu e o Super-eu. Ele seria o preço a pagar pela vida do ser humano em sociedade, que exige o recalcamento de sua agressividade constitutiva, a qual foi conceitualizada pela pulsão de morte. Eis por que Freud o aponta como um inevitável mal-estar da civilização (Freud, 1930/1999).

O modelo econômico do masoquismo fornece uma chave de compreensão inédita da economia psíquica do sujeito. De fato, ao postular um masoquismo originário no ser humano, Freud emancipa a reflexão psicanalítica das tradições darwinista e humanista que o pensam como naturalmente bom. Apenas o equilíbrio instável entre essas três modalidades de satisfação masoquista e o sadismo, que desvia essa agressão para o próximo, forneceria a solução para responder como o homem não acaba sempre dando cabo de sua própria vida. Freud descreve tal equilíbrio como dependente das relações entre a historicidade do sujeito e da cultura. Estamos, pois, diante de um conceito que possui uma expressão em cada um dos polos da elipse freudiana acima descritos. O masoquismo erógeno seria a expressão de sofrimento invariável, ligada ao fato do ser humano estar vivo. Já suas expressões nas formas de masoquismo feminino e de masoquismo moral se colocam como dependentes da cultura e da história dos sujeitos e representam a expressão variável do conceito, localizável no segundo polo da elipse. Passemos aos resultados empíricos de nossa pesquisa e às inferências que elas sugerem sobre a cultura atual.

Alguns sujeitos de nossas entrevistas optam, por um lado, por tatuagens que marcam sua pertença a tribos, grupos rígidos e eventualmente a organizações religiosas e a times de futebol. Trata-se de soluções que são compatíveis com aquelas sintomáticas, indissociáveis do eixo simbólico e que se organizam em torno de figuras de liderança e, em última instância, organizadas em torno do masoquismo moral. Encontramos também soluções que se apoiam no imaginário, como aquelas marcas e modificações corporais que se mostram a serviço de um projeto de construção de uma identidade fortemente imaginarizada, seja com imagens de nomes que idealizam virtudes, seja com imagens de figuras idealizadas. A especularidade parece definir a lógica presente em muitas dessas modificações, como mostra o crescente mercado das cirurgias estéticas. Esse tipo de solução coincide com o que Freud denominou de masoquismo feminino, no qual a cena fantasmática é organizada de modo a colocar o sujeito como objeto passivo do gozo do outro.

Mas há também um terceiro tipo de práticas do corpo, particularmente inquietante em sua perigosa aproximação com o real e que, de certo modo, está sempre presente em toda prática corporal. Aqui a busca que parece dominar os sujeitos é a de uma experiência de intensidade absoluta, experiência excesso em que o sujeito simplesmente se dissolve ou apaga, como, por exemplo, nas suspensões corporais (Silva Junior & Lirio, 2005a). Diante da ausência de cenas fantasmáticas, de fantasias eróticas e de culpabilidade inconsciente, tais práticas parecem ser soluções características do masoquismo erógeno.

 

O narcisismo em tempos neoliberais e suas carências simbólicas

Esta última modalidade de práticas corporais, fundada exclusivamente sobre o masoquismo erógeno, é o elemento que mais chama a atenção em vista de sua novidade no cenário cultural. Seu caráter inédito nos convida a avançar até a hipótese de que um reequilíbrio está em jogo na economia masoquista. Como conceber as causas de tal mudança em nossa economia psíquica?

Retomemos a relação entre a incompletude da linguagem, sua construção fragmentária do corpo e o sofrimento como resultante do que não foi nomeado nesse corpo. No caso do discurso que a lógica neoliberal sustenta em nossa cultura, colocando, sobretudo, as organizações narcísicas em uma posição de ideal, podemos conceber que será esse mesmo discurso que abrirá as carências simbólicas específicas dessa cultura.

Seja no campo das patologias, seja no campo dos comportamentos aceitos como normais, há fenômenos sociais que indicam que as modificações corporais estão a serviço dos ideais egológicos, que invariavelmente relegam o corpo a um estatuto instrumental, aquele responsável pela identidade do sujeito. Com efeito, as tatuagens parecem muitas vezes compensar e substituir estruturas simbólicas da identidade, como, por exemplo, a substituição das narrativas de si pela apropriação egoica do corpo pelas tatuagens (Silva Junior et. al., 2009). Mas não é apenas nesse tipo de modificação corporal, supostamente "bem-sucedida", que podemos encontrar a prevalência narcísica. A precariedade simbólica das organizações especulares invariavelmente se expressa em práticas corporais compreensíveis na chave do masoquismo erógeno, mas não somente nos usos e práticas do corpo (Gaspard & Doucet, 2009). A proliferação e a coletivização dos modos de gozo no campo do consumo (Silva Junior & Lirio, 2005), a busca de sensações extremas, os adoecimentos da função desejante, são igualmente compreensíveis como desorganizações do equilíbrio narcísico.

Segundo essa hipótese, devemos supor uma alteração importante dos laços sociais ou dos discursos. Nas mudanças do novo século, na queda das ideologias, na obsoletização do inconsciente (Sauret, 2008) e, sobretudo, nos novos modos de organização familiar, parece estar em curso uma alteração importante no mosaico identitário e identificatório sobre o qual se fundariam as novas subjetividades.

Se o discurso da ciência (Askofare, 2014) pode participar da forclusão do sujeito, parece indiscutível que essa nova realidade produza efeitos sobre as modalidades de subjetivação, uma vez que ela se traduz por um tipo de rejeição da questão sobre o sentido do ser e da morte, assim como pelo não reconhecimento do sentido particular da vida para cada um em prol da promoção do ego e de suas conquistas imaginárias (Gaspard, 2014).

Lacan chamou de discurso da ciência e de discurso capitalista os laços sociais e os discursos que redefinem o contexto simbólico de nossa cultura de um modo radical. De que modo? O discurso da ciência reza que não há sentido no mundo, apenas explicações, e que tudo que existe pode ser explicado. Esse discurso afeta profundamente a relação dos sujeitos com o saber, no sentido de uma idealização e de uma crença na onipotência do saber científico. O discurso capitalista, por sua vez, diz que não há interdição, apenas impotência ou potência financeira, o que afeta a relação dos sujeitos com o gozo, que passa a ser considerado como sempre possível.

Em um mundo sem sentido, apenas organizado pelo funcionamento racionalizante, no qual todo gozo é virtualmente possível mediante o poder financeiro, é evidente que a própria estrutura dos sintomas neuróticos é abalada: sem a autoridade que garantiria o sentido e, portanto, o suposto saber, e sem a interdição que organizaria o desejo, a estrutura de solução de compromisso que organiza o sintoma fica necessariamente comprometida (Sauret, 2008), mas não necessariamente invalidada, uma vez que outras formas de laço social continuam a existir. É nesse sentido que compreendemos o aumento da frequência, até certo ponto inédita, de expressões praticamente puras do masoquismo erógeno em sujeitos instalados em uma indubitável organização neurótica. Essas seriam as expressões do gozo e do sofrimento próprio dos corpos nomeados pela chave do narcisismo sem limites do indivíduo-empresa, ou seja, do modo de subjetivação promovido pelo discurso neoliberal.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
NELSON DA SILVA JUNIOR
Av. Prof. Mello Moraes, 1721
05508-900 – São Paulo – SP
tel.: 11 5051-5311
nesj@usp.br

JEAN-LUC GASPARD
Place du Recteur Henri Le Moal
35043 Rennes cedex – France
jlgaspard@wanadoo.fr / jean-lucgaspard@gmail.com

Recebido 10.04.2016
Aceito 07.05.2016

 

 

1. Origem do trabalho: pesquisa desenvolvida pelo Programa de Pós-Graduação do IP-USP em Psicologia Social em colaboração com o Laboratoire de Psychopathologie et Clinique Psychanalytique (Equipe d'accueil 4050), Université Rennes 2, França - "Estudo comparativo internacional das marcas corporais autoinfligidas à luz do laço social contemporâneo. Funções das tatuagens e escarificações na economia psíquica dos jovens adultos: gênese, relação aos corpos, solução subjetiva", 2008-2012; financiada pelo Programa Capes-Cofecub, processo 609/08.
2. Cf. primeira nota.

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