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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.61 São Paulo ago. 2016

 

CONTRAPONTO

 

De corpo e pele

 

Body and skin

 

 

Silvana Rea

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Graduação em Cinema e Psicologia e doutora em Psicologia da Arte pelo IP-USP. Editora da Revista Brasileira de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho aborda a questão da pele, do corpo e da psicanálise na filmografia de Peter Greenaway, especialmente no filme O livro de cabeceira.

Palavras-chave: Cinema. Corpo. Pele. Peter Greenaway. Psicanálise.


SUMMARY

This work deals with skin, body and psychoanalysis in Peter Greenaway's movies, particularly The pillow book.

Keywords: Cinema. Body. Skin. Peter Greenaway. Psychoanalysis.


 

 

Na peça A ideia fixa (1988), Paul Valéry empresta voz a um filósofo que, em conversa com o amigo médico, argumenta ser a pele o que há de mais profundo no homem. E, assim, Valéry coloca um paradoxo: o órgão mais superficial do ser humano é o mais profundo.

A pele mantém um estatuto paradoxal: ela é simultaneamente dentro e fora, e, ao estabelecer uma fronteira porosa, coloca-se em posição de superar qualquer dicotomia de superfície e profundidade.

Permeável e impermeável, superficial e profunda, lugar do bem-estar, da sedução, da dor e do prazer. A pele atrai investimentos libidinais, separa e une os diferentes sensórios. Por sua fragilidade, remete ao desamparo original. Por seu envolvimento e elasticidade, nos protege (Anzieu, 1989). Por seus poros, a pele é meio de comunicação, de trânsito e de trocas. Mas a pele também propõe limites do território de um e de outro.

A questão da pele está em O livro de cabeceira, dirigido por Peter Greenaway em 1996. O roteiro centra a ação na década de 1970 em Kioto, onde a cada ano um escritor grava no rosto de sua filha, Nagiko, uma benção de aniversário. Quando adulta, ela passa a buscar amantes calígrafos que utilizem sua pele para escrita, até conhecer o tradutor Jerome, que oferece a ela o seu corpo como papel.

No filme, a superfície e a profundidade da pele no corpo de Nagiko e no de seus amantes, da pele na tela de cinema, e também da pele na tela da pintura.

Sim, porque Peter Greenaway tem formação em artes plásticas, que estudou no Walthamstow College of Art, em Newport. Apenas em 1965 inicia no cinema, primeiramente como montador e depois como diretor.

Esse fato nos ajuda a entender o seu interesse em realizar, a cada filme, o exercício de reescrever as imagens da história da arte. E, mais especificamente, Greenaway traz da história da arte para sua filmografia a teatralidade barroca, presente, por exemplo, em O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante, de 1989. Na ambientação cenográfica, a citação da obra Banquete dos Oficiais da Companhia de São Jorge, do holandês Frans Hals.

A tela, bem postada no centro do salão do restaurante, ironicamente denominado Le Hollandais, retrata os milicianos não como soldados guerreiros, mas divertindo-se em um banquete.

 

 

Estilo da Contrarreforma, o Barroco busca o arrebatamento do espectador pela comunicação fácil, porém intensa, feita por contrastes e multiplicidade de elementos. O uso do jogo de claro e escuro visa a dramatização cênica da obra.

Em Ronda noturna, de 2007, Greenaway reproduz cenicamente a obra homônima de Rembrandt, recriando o seu universo poético para defender a tese de que era objetivo do pintor retratar a denúncia de um assassinato, imortalizando os culpados em uma tela.

Entre outros elementos barrocos, o cineasta utiliza a ideia de profundidade de campo. Obras como As meninas, de Velásquez, e Daniel na cova dos leões, de Rubens, mostram que na arte barroca a superfície plana se transforma em profundidade desordenada, que atrai o olhar para o fundo da tela - o epidérmico e o mais profundo, como a pele de Valéry.

Também a partir do Barroco, que, ao visar a comunicação por impacto, funde as linhas divisórias das artes, o cinema de Greenaway privilegia a materialidade visual, sonora e tátil, transitando pelas linguagens do cinema, teatro, música, pintura, arquitetura e design. Não é por acaso que a ópera é uma invenção barroca1 e que o próprio Greenaway dirigiu algumas, como Cem objetos para representar o mundo: uma prop-opera, espetáculo multimídia que se estrutura a partir de uma lista, como o nome já diz, de objetos.

É tema barroco a releitura sensual e sensorial do conhecimento do mundo por meio do corpo. Nesse sentido, o estilo revoluciona a figuração dos santos, tornando-os homens comuns, físicos, terrenos. Pessoas reais e tangíveis inseridas em narrativas cinemáticas, o que leva a pensar de qual corpo trata a filmografia de Greenaway.

Sabemos que Caravaggio buscava nas ruas pessoas do povo como modelos para seus quadros. De fato, podemos observar em sua imagem de São Pedro sendo crucificado, o aspecto humano carnal na evidência da dor física e no conflito figurado em torções corporais.

Também Greenaway se interessa pela materialidade do corpo humano e pelo sensorial. Em A barriga do arquiteto (1987) seu foco é o aparelho digestivo do arquiteto americano, em O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante, temos a cena de canibalismo, e na ficção darwinista de Zoo - um z e dois zeros (1985), ele discorre sobre o processo de decomposição. Como um pintor barroco, o cineasta busca a presença do corpo em todos os seus aspectos de humanidade: dentro, fora, sadio, doente, mutilado, deformado. Aquilo que ele chama de enciclopédia fisiológica da humanidade (Greenaway, 1999); uma enciclopédia do corpo, assim como suas referências em arte e literatura o tornam um enciclopedista no cinema2. Em seus filmes, ele sistematiza coisas, pessoas, corpos, como os vinte e quatro livros da biblioteca ducal de O livro de Próspero, de 1991.

 

 

Fiel à origem de seu olhar na história da arte, Greenaway parte da tradição de representação imagética do corpo nu. Como diz: "Quero que no cinema tenhamos a liberdade, o interesse e a curiosidade iconográfica da pintura ocidental cristã, que tem como as duas imagens mais significativas o Cristo crucificado e o menino Jesus, ambos representados nus para provar a corporalidade humana do filho de Deus na terra". E conclui: "O eu físico é aquilo que nos acompanha e é a base de nossos sentidos" (Greenaway, 1999, p. 21).

Isso está em jogo em O livro de cabeceira.

Greenaway parte da ideia de que o crescente uso de computadores e mensagens em celulares leva a um rompimento da noção de corpo do texto, da sensualidade e sensorialidade corporal envolvidas no ato da escrita. Questiona, então: se todos os textos do mundo foram criados pela materialidade de um corpo humano, por que não voltar a escrita para o corpo? (Greenaway, 2008).

Portanto, o corpo, sua imagem, a escrita, o sexo e o texto, os diferentes tipos de caligrafia, os diferentes idiomas e seus sentidos, são temas do filme.

Não é por acaso que o nome do amante de Nagiko é Jerome. São Jerônimo, padroeiro dos tradutores, elaborou a primeira versão da Bíblia do hebraico e grego para o latim, base para todas as outras, inclusive a de língua portuguesa.

Mas retornemos à questão da superfície e da profundidade da pele, da tela de cinema, da tela da pintura. E, agora, acrescento: da escrita pintada na caligrafia chinesa e japonesa.

O interesse de Greenaway pela escrita oriental surge de sua inquietação em relação ao fato de o cinema estar se restringindo a um teatro filmado ou a um texto ilustrado com imagens. "Por que o cinema precisa de palavras - pergunta ele -, se cinema é uma arte visual e não literária?" (Greenaway, 1999, p. 26).

É por esse sentido que ele se aproxima da caligrafia japonesa: porque se lê enquanto se vê, pois é ao mesmo tempo imagem e texto. E é pintada. Como aponta o escritor Junishiro Tanizaki (2008), se os japoneses fossem os inventores da caneta, ela seria munida de um aparato metálico, mas com um pincel na ponta, certamente.

Portanto, trata-se de uma escrita visual e imagética, pela construção do ideograma. Diferentemente da escrita ocidental, que é fonética e indica os sons das pronúncias, os ideogramas são uma escrita icônica, ou seja, são pictóricos.

Por outro lado, a gramática cinematográfica se faz pela construção da imagem e por sua edição.

Então, Greenaway aproxima esses dois léxicos pelas mãos do cineasta russo Sergei Eisenstein (1977), que, por sua vez, relaciona montagem em cinema com o ideograma oriental, ou como ele mesmo denomina, "método ideográfico".

A base da escrita oriental é o pictograma. Vários pictogramas combinados em uma montagem formam um ideograma (kanji), ou seja, um ideograma sempre indica uma ideia pela combinação ou conflito de pictogramas - uma relação. Isso já havia sido apontado pelo filósofo Fenellosa em 1897, na afirmação de que o ideograma é um processo relacional no qual as relações são mais importantes do que aquilo que elas relacionam (Fenellosa, 1977).

Podemos tomar a palavra coração, representada por 心, que, combinada à palavra verdade,誠, multiplica seu sentido e forma o conceito lealdade,誠心. Trata-se de um princípio análogo ao conceito de montagem em cinema de Eisenstein: relacionar tomadas para formar contextos e séries, propiciando a passagem do pensamento por imagens ao pensamento conceitual.

A combinação de ideogramas permite a construção de haicais - forma poética clássica japonesa que tenta captar um momento de experiência e transmiti-lo da forma mais concisa possível, levando a uma leitura de modo visual.

Vejamos a visualidade de um haicai de Matsuo Basho, citado pelo próprio Eisenstein (1977, p. 169):

Um corvo solitário
Sobre um galho sem folhas
Uma noite de outono

Eisenstein utiliza este método de concisão e de combinação de imagens. Em seu primeiro filme, A greve, de 1924, o massacre dos operários grevistas pela polícia é indicado pela relação da tomada que mostra uma série de tiros contra o grupo, seguida à imagem de um boi sendo abatido em um matadouro. A esse tipo de associação o cineasta denomina copulativa, por envolver duas imagens cinematográficas, como dois pictogramas em ideogramas.

É evidente que Greenaway considera os princípios de Eisenstein. Inclusive o homenageia em Eisenstein en Guanajuato, de 2015.

A edição de O livro de cabeceira se dá por meio da superposição de imagens, da decomposição de planos à maneira cubista, uma diversidade de alfabetos e línguas escritas na tela como uma Babel, textos que misturam as autorias de Sei Shonagon, do próprio Greenaway e de outros. Tudo guiado pela lógica da montagem eisensteiniana e das correlações do ideograma e dos haicais orientais.

Greenaway encontra em Livro de cabeceira3, da dama Sei Shonagon, que teria como nome de nascença Nagiko, o tema oriental que dá sustentação à sua pesquisa. Escrito entre 994 e 1001, trata-se de um diário em que ela discorre, por meio de listas e ensaios curtos, sobre a natureza e sobre a vida no Palácio Imperial da Dinastia Heian - que tinha como linhagem o conceito de aware, tristeza e beleza, valorizando a elegância e o culto à poesia e à literatura (Wakisaka & Cordaro, 2013).

Em parte, Greenaway se encanta com a delicadeza das listas elaboradas pela autora, tão em conformidade com seu espírito enciclopédico; em parte, por sua noção de texto fragmentado em narrativas curtas. Mas ele se interessa vivamente pelo entusiasmo da cortesã ao escrever, em uma excitação que se torna física, levando-a a aproximar texto e sexo (Greenaway, 2008).

Em seu livro, Shonagon diz que as únicas coisas dignas de confiança são o prazer da carne e o prazer da literatura. Na união dos dois prazeres, o êxtase - como na construção de um ideograma. Ali, ela apresenta suas listas de preferências e antipatias apoiadas nos cinco sentidos: o aroma do papel como a pele de um amante, o branco do jardim coberto de neve, o toque da seda, o paladar de uma criança comendo morangos pela primeira vez, o tom da cor azul, os sons de hashi ou colher que se intercalam (Shonagon, 2013).

No filme, Nagiko ganha O livro de cabeceira da tia no mesmo aniversário em que percebe que o editor abusa sexualmente de seu pai, em troca da publicação de seus livros. Mais tarde, aos 18 anos, o ritual da benção paterna é interrompido quando ela se casa, prometida para o sobrinho desse mesmo editor. União que se desfaz, levando-a a se mudar para Hong Kong, onde desenvolve carreira de modelo. Na China inicia sua busca por um amante calígrafo ideal, oferecendo sua pele à escrita alheia, em memória de seu pai e de Sei Shonagon. É quando conhece Jerome.

A partir da pele de Nagiko, voltamos à noção de corpo no filme de Greenaway.

A tela mostra imagens que se combinam, quadros que se superpõem, dois pictogramas que formam um ideograma, dois corpos que se perfazem um ao outro. Corpos humanos em cópula, mas também corpos da arte, como os das xilogravuras dos mestres japoneses Hokusai, Hiroshigue, Utamaro, nas paredes do café-bordel que Nagiko frequenta. Particularmente, Kitagawa Utamaro, que elabora em 1788 um álbum de arte erótica com doze gravuras denominado Poema de travesseiro, publicação emblemática do período Edo, no qual o erotismo ganha tônica.

 

 

Uma xilogravura se constrói pela impressão da madeira no papel, pela pressão de um corpo no outro, pelo contato de um corpo com outro. Como a escrita, que teve origem pela inscrição e pressão em tábuas de argila, antes do uso do pergaminho de pele animal e, posteriormente, pelo papel, invenção dos chineses.

Diz Tanizaki sobre o papel japonês osho, espesso e absolutamente branco, em relato que evoca a sensualidade nos cinco sentidos:

Nos basta ver um papel da China, ou do Japão, para sentir uma espécie de tepidez que nos satisfaz o coração. De igual brancura, a de um papel do Ocidente difere por natureza da de um osho ou de um papel branco da China. Os raios luminosos parecem ressaltar na superfície do papel do Ocidente, enquanto que a do osho ou do papel da China, semelhante à superfície coberta de penugem da primeira neve, os absorve suavemente. Além disso, agradável ao tato, os nossos papéis dobram-se e amachucam-se sem barulho. O contato é suave e ligeiramente úmido, como o de uma folha de árvore. (Tanizaki, 2008, p. 24)

Do corpo, o filme evoca a pele. A pele como papel, como suporte literal de sentido pela escrita. A pele como espaço transitório entre o corpo físico e o corpo simbólico, da cultura: do corpo nu ao corpo da moda - como Greenaway nos apresenta Nagiko em Hong Kong, modelo famosa.

Mas antes de encontrar Nagiko adulta, vamos ao início.

No início, é o corpo sensorial.

No início, é o trauma do nascimento, quando o corpo inaugura sua entrada na cultura.

No início, o bebê é um corpo único com a mãe, eles compartilham a mesma pele. Corpo que vai sendo investido e erotizado, e que aos poucos vai se separando e pode se identificar com a mãe e com os outros.

O contato do corpo da mãe no corpo do bebê oferece à criança a percepção de sua pele como superfície de contato. Os gestos maternos, seu toque, vão dando integridade ao envelope corporal e são estímulos eróticos e de comunicação - são base para a linguagem e o aprendizado da palavra. É o corpo da mãe e suas palavras que dão sentido e iniciam a construção de uma narrativa, uma história (Anzieu, 1989).

Um corpo físico que se torna corpo erógeno, corpo simbólico e corpo da cultura, percurso que inaugura o processo de subjetivação.

No início, o encontro da boca do bebê com o seio materno. Simultaneamente alimento concreto e alimento psíquico, esse é o primeiro encontro que o imaginário representa. E, como obra primeira do psiquismo, temos o pictograma, que utiliza o sensorial como modelo de representação (Aulagnier, 1979).

No início são as impressões, que se organizam e se inscrevem como traços; a formação do inconsciente como um sistema de inscrição. Já em 1896, em carta a Fliess, Freud (1896/1969) apresenta a ideia de traços mnêmicos inconscientes que iniciam a formação do psiquismo.Traços que são inscritos e re-transcritos continuamente - e nesse processo começam a se tornar escritura.A escritura de cada um.

No início do filme, um mito de origem atribuído pelo pai a Nagiko, em comemoração a seus aniversários. Diz ele, e às vezes diz sua mãe:

No início Deus criou um primeiro modelo de barro do ser humano: pintou os olhos, a boca e o sexo. Depois o nome, para que o dono jamais o esquecesse. Se Deus aprovou a sua criação, trouxe-o a vida o modelo de barro, assinando o próprio nome.

O sopro divino é a atribuição e a inscrição de um nome. Uma narrativa do criador e da criatura em que o sexo e o texto fazem do corpo humano uma superfície de significação.

No início, a tia4, que apresenta e lê à sobrinha o livro de Sei Shonagon, pioneira da escrita feminina, pioneira no estilo "ao sabor do pincel" que influencia o gênero zuihitsu5, pioneira no questionamento do lugar da mulher na corte imperial (Wakisaka & Cordaro, 2013).

Na origem de Nagiko, a mãe chinesa, lugar de origem da escrita japonesa e do papel. Com ela, aprende mandarim e música. O pai, poeta e escritor, criador de textos, criador de lingua-gens, de literatura.

Mas Nagiko observa seu pai em relação com o editor e ela sofre uma quebra: do corpo erotizado pelo pai ao corpo penetrado do pai. Uma percepção de início incompreensível, que pode nos indicar um caminho traumático, como um excesso que não pode ser significado e que precisa ser reencenado. O corpo de Nagiko - e o dos outros - passa a ser o mediador de suas relações no mundo. E marca o seu processo de subjetivação.

Procurando por amantes calígrafos que lembrassem o prazer da caligrafia, Nagiko encena e reencena a sua dor. À maneira do pai, que trocava caligrafia por sexo, ela troca sexo pela caligrafia em seu corpo.

Mas, por meio das letras de Shonagon, Nagiko encontra uma maneira de dar sentido e estruturar aquilo que vive. E busca por escrever o seu livro. O primeiro, queimado pelo marido na separação. O segundo, rejeitado pelo mesmo editor, que afirma que seu texto não vale o papel no qual foi escrito. E quando vai até ele em busca de explicações, encontra-o com o amante, reencontrando com ele, Jerome.

Com Jerome, o tradutor poliglota, ela usa pela primeira vez a pele alheia como papel. Com ele, o êxtase na união do prazer da carne e o prazer da literatura, como já indicara Sei Shonagon em seu livro. Dois pictogramas em cópula, eles formam diferentes ideogramas.

Jerome, como o pai, tem relações com o editor. Como o pai, inscreve nela a sua benção, o Pai Nosso. Mas, aqui, surge a ideia de escrever o livro de Nagiko no corpo de Jerome. E para escrevê-lo ela se transforma em Sherazade, inscrevendo sua história nos corpos alheios, como a princesa narra as suas ao sultão. Seus treze livros, em diferentes peles e partes dos corpos, são utilizados para seduzir o editor, não para salvar a própria vida, mas para acabar com a dele.

Nagiko constrói sua vingança pela sedução da literatura feminina. Mas perde Jerome que, em citação de Romeu e Julieta, ao forjar seu suicídio por ciúme, acaba consumando o próprio fim. Sexo, vida e morte. Ao encontrar o amante morto, com o Livro de cabeceira nos genitais, ela escreve um poema erótico em sua pele e o enterra.

Voltamos ao pergaminho, antecessor do papel: o editor profana o corpo de Jerome e retira a sua pele para com ela confeccionar um livro de cabeceira.

No décimo terceiro livro, O livro do morto, ela se vinga, vingando o pai e o amante. Revela a sua identidade, Nagiko Kiyoahara no Motosuke Sei Shonagon, anunciando a sentença de morte do editor. Ela recupera o livro-pele de Jerome e o deposita em um vaso de bonsai.

Enterrados os seus mortos, Nagiko escreve o próprio livro de cabeceira. Ela agora cuida de outro corpo: o de sua filha. Escreveu e escreve a sua história, ela é dona de sua história na história de seu corpo, posto que o corpo é lugar de existência, dá lugar à existência, é o ser da existência (Nancy, 2000).

E, do corpo, a pele, que, como a capa que contém o livro, envelopa o corpo ao mesmo tempo que exerce suas diferentes funções: ela expira, transpira, secreta, elimina, estimula a respiração, a circulação, a digestão (Anzieu, 1988). Uma capa que ao envelopar torna-se o próprio livro, a pele é o eu, é o corpo.

A escrita no corpo remete a uma operação originária de inscrição. Como um grau zero da escrita, como uma palavra poética que se torna enciclopédica por conter simultaneamente todas as acepções, por ser prenhe, ao mesmo tempo, de todas as significações, passadas e futuras; como uma caixa de Pandora, a palavra poética é fonte da qual saem todas as virtualidades de sentido (Barthes, 2004).

E, da mesma maneira que não há corpo sem sombra, diz Aulagnier (1994, p. 169), "não há corpo psíquico sem sua história que é sua sombra falada. [...] sombra indispensável, pois sua perda implicaria a perda da vida, em todas as suas formas".

Ou, poderíamos dizer, sua sombra escrita.

 

REFERÊNCIAS

Abbate, C. & Parker, R. (2012). Uma história da ópera: os últimos quatrocentos anos. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
SILVANA REA
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tel.: 11 2872-6214
silvanamrea@gmail.com

Recebido 23.05.2016
Aceito 04.06.2016

 

 

1. Tradição inaugurada por Monteverdi com Orfeo, em 1607 (Abbate & Parker, 2013).
2. Emblema do espírito Iluminista, a Enciclopédia ou dicionário racional das ciências, das artes e dos ofícios, mais conhecida como Enciclopédia, foi editada por Denis Diderot em Paris, entre 1751 e 1772, inaugurando uma maneira de catalogar e de pensar o mundo.
3. A tradução feita por Wakisaka e Cordaro (2013) indica o nome O livro de travesseiro. Entre várias hipóteses consideradas, a de que seriam guardados no travesseiro de madeira. De qualquer forma, não se pode considerar no título o sentido contemporâneo de livro de cabeceira, pois a leitura para as damas da corte era uma atividade diurna e grupal.
4. Na estrutura tradicional de família japonesa é marcante a importância das tias como auxiliares das irmãs na educação das crianças e nos trabalhos domésticos.
5. O gênero zuihitsu, nos anos 11001300, mantém a estrutura de diário, com anotações de observações sobre plantas, pássaros e insetos, poemas, descrições de pessoas, registros de encontros amorosos.

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