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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.61 São Paulo ago. 2016

 

ARTIGO

 

Freud e a cultura

 

Freud and the culture

 

 

Eric Smadja

Dr. Eric Smadja psicanalista, psiquiatra, Membro da Sociedade Psicanalista de Paris e da Associação Internacional Psicanalítica, psicanalista de casais e criador na França da formação de terapia psicanalítica para casais;Conferencista Internacional e supervisor de terapias de casais em Sociedades de diversos países; Antropologo e Membro da Associação Americana de Antropologia e da Associação de Antropologia para Psicologia; outor de vários livros

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, exploramos as representações da sociedade e da cultura que Freud desenvolveu ao longo da sua obra. Diferente das concepções sociológicas e antropológicas contemporâneas, elas levaram Freud à construção de uma socioantropologia pessoal que foi violentamente criticada pelas ciências sociais. Mas o que exatamente se entende aqui por "cultura" e "sociedade"? Referimo-nos à própria sociedade vienense de Freud ou a sociedade ocidental "civilizada" em geral? Freud estava interessado nas sociedades históricas e "primitivas" a partir da perspectiva evolucionista dos antropólogos britânicos de sua época. Nosso trabalho considera a inter-relação entre essas diferentes sociedades e culturas, e levanta muitas questões. O que constitui uma cultura? Quais são os seus traços essenciais, as suas funções, as suas relações com a sociedade, por exemplo. Além disso, apresentamos a noção central freudiana de Kulturarbeit.

Palavras-chave: Cultura, Sociedade, Kulturarbeit, Sublimação, Ciências sociais.


SUMMARY

In this paper, we explore the representations of society and culture that Freud developed in the course of his work. Distinct from contemporary sociological and anthropological conceptions, they led to his construction of a personal socio-anthropology that was virulently criticised by the social sciences. But what exactly is meant here by "culture" and "society"? Do we mean Freud's own Viennese society or Western "civilised" society in general? Freud was interested in historical and "primitive" societies from the evolutionist perspective of the British anthropologists of his time. Our work considers the interrelationship between these different societies and cultures, and raises many questions. What constitutes a culture? What are its essential traits, its functions, its relationships with society, for example. Moreover, we present the Freudian central notion of Kulturarbeit.

Keywords: Culture, Society, Kulturarbeit, Sublimation, Social sciences.


 

 

Considerações epistemológicas e metodológicas

Freud afirmou em diversas ocasiões, no decorrer de sua obra, que a psicanálise era uma "ponte", um "elo" ou, ao menos, prometia ser, e, assim sendo, adquire função mediadora entre as ciências médicas, a psicopatologia e as ciências da mente, ciências da cultura. Sua verdadeira "essência" consistiria em seu desenvolvimento bidirecional. De fato, a partir de A interpretação dos sonhos (1900), Freud sustentou que os processos psíquicos em funcionamento no trabalho onírico são tão ativos na produção de sintomas quanto na produção de fenômenos culturais e sociais. Consequentemente, a psicanálise não é redutível à psicopatologia, pois também tem algo a dizer acerca do funcionamento psíquico normal e, além disso, sobre as criações socioculturais.

Daí a "filiação epistemológica dupla" a que se refere Paul-Laurent Assoun (1993), que conferiria legitimidade à sua prática no campo sociocultural.

Com certeza, mas em que ele fundamenta essa afirmação?

Freud considera que é possível supor que os fatos mais gerais da vida psíquica inconsciente, descobertos pela psicanálise - tais como a sexualidade infantil, conflitos pulsionais, fantasias, o complexo de Édipo, repressões e satisfações substitutivas, particularmente -, estão presentes em toda parte, portanto, podem ser encontrados também nos "mais variados domínios da atividade mental humana", entre as quais ele mencionou a existência de "muitas analogias surpreendentes" (Freud, 1924).

A própria noção de "atividade mental humana", a das comunidades e povos - em que os processos e formações inconscientes apresentam analogias com a vida psíquica individual -, que autoriza e legitima essa passagem, efetuada por Freud, da psicologia individual à psicologia das massas, em uma perspectiva semelhante à desenvolvida por Wilhelm Wundt em sua Völkerpsychologie (1913). Porém, o tratamento das analogias seria bem diferente um do outro.

Assim, o campo do simbolismo, por exemplo, comum a todo indivíduo, normal, sonhador e neurótico, e a toda cultura, permite a Freud posicionar a psicanálise, suas técnicas de investigação e seus conceitos principais, numa posição central e intermediária entre a psicopatologia e as ciências da cultura. Por meio do simbólico, estabelecem-se ligações entre as realidades humanas, individual e coletiva. Seria o mesmo para a religião, objeto de analogias com formações individuais neuróticas e psicóticas.

Ao fazer isso, Freud não reconhece as especificidades e singularidades dessa realidade social e cultural, tanto em suas modalidades de funcionamento quanto em suas produções, que as distinguem radicalmente da realidade psíquica individual. Ele criaria confusão entre a natureza do objeto da sua psicologia de massas ou de povos e a das duas disciplinas contemporâneas à psicanálise: a sociologia e a antropologia.

Consequentemente, sua metodologia consistiria principalmente em transferência brutal, direta e maciça de noções e conceitos originados da psicologia individual - dos sonhos e das neuroses - para o campo da psicologia de massas, portanto, para o vasto território que abrange sociedade, cultura, civilização, comunidade e as massas, no que seria criticado por todos os especialistas de ciências sociais.

No entanto, Freud estava consciente dos riscos e dificuldades dessa metodologia, que ele expressou, particularmente, em Moisés e o monoteísmo (1939), bem como a considerou inútil para conceber a existência de um inconsciente coletivo para essas massas ou povos, em vista do fato de ter considerado que "o conteúdo do inconsciente é geralmente coletivo, propriedade universal dos seres humanos".

Parece-me que aí associada está a afirmação de que a psicologia individual é "também, desde o início e simultaneamente", uma forma de psicologia social devido à importância concedida ao papel desempenhado pelo Outro ao longo da vida do sujeito. Freud designou as relações com o Outro como "fenômeno social". Daí a confusão adicional, na linguagem freudiana, com a terminologia dos sociólogos e antropólogos.

Salientemos igualmente a necessidade de Freud de articular com muita regularidade ontogênese e filogênese, a infância do indivíduo e a da pré-história dos povos ou do gênero humano, para investigar e tornar inteligível tanto a psique individual quanto a psique das massas.

Além disso, parece-me importante relembrar uma das razões do interesse de Freud por esse campo de ciências da cultura: eliminar a qualidade de "estranheza" das formações individuais, sintomas neuróticos ou sonhos e, assim, confirmar a validade das aquisições da psicanálise. Ele não conseguia contemplar, diferentemente de Jung, os aportes mútuos tanto nos planos epistemológico e metodológico quanto no plano conceitual, algo que nos faz levantar questões relativas ao interesse genuíno de Freud pela sociedade e pela cultura. E ele dedicou inúmeros textos a isso. O que quer dizer que ele teria igualmente muitas outras razões para se interessar, particularmente, pelo importante papel desempenhado pela sociedade e cultura ou, formulado de outro modo, em sua metapsicologia, pela realidade e o mundo externo na construção do aparelho psíquico de todo ser humano. Determinando sua humanização e condicionando sua socialização, algo parcialmente considerado, de acordo com minha pesquisa pessoal, pela noção de Kulturarbeit que ele introduziu em A interpretação dos sonhos. Na verdade, penso que ele logo percebeu e compreendeu as relações de interdependência e de interpenetração dos dois domínios - individual e coletivo, psíquico e sociocultural - sem ser capaz de formulá-las ou conceituá-las assim, pois estava inspirado pelo antagonismo individual/social, predominante na ideologia social e intelectual do seu tempo, algo que também pode nos ajudar a compreender a transição e a transferência abrupta de conceitos da psicologia individual à psicologia de massas.

 

De que sociedade e de que cultura se trata?

Era a sua sociedade, a sociedade vienense em que ele cresceu, viveu e criou a psicanálise? Quanto à sua cultura, podemos distinguir, como Didier Anzieu (1987), entre a cultura de pertinência e a de referência. Ele pertencia à cultura judaica, a do meio burguês liberal vienense, mais especificamente a do meio científico e médico, e à cultura germânica. Ainda que se refira prontamente à cultura greco-romana.

Contudo, como todo pensador do seu tempo, ele interrogava sobre a sociedade e a civilização ocidental, vivendo períodos críticos que geravam "insatisfação" e mudança. Assim como se interessava por sociedades históricas e "primitivas" na perspectiva evolucionista dos antropólogos britânicos de sua época, que lhe permitiram fabricar uma narrativa mítica das condições de criação da cultura humana, cultura em si, com suas instituições primordiais e organização social, ao estabelecer o complexo de Édipo em seus fundamentos.

Assim, quando Freud trata da sociedade, da cultura, da civilização, das massas, ou da comunidade, consideramos necessário levar em consideração a inter-relação desses diferentes níveis: vienense contemporâneo e ocidental, histórico e primitivo, finalmente as categorias gerais de sociedade, cultura e civilização.

 

Sociedade freudiana e cultura

Em primeiro lugar, a sociedade e a cultura se revelam a nós, onipresentes e onipotentes, na psicanálise e em sua obra, em especial por meio da "realidade" e do "mundo externo" - termos pertencentes à linguagem metapsicológica -, a partir das quais o ego se diferencia do id em cada indivíduo e, correlativamente, efetua-se a substituição do princípio do prazer pelo princípio da realidade, considerada por Freud como "revolução psíquica" levando à transformação do ego do prazer em ego real. Esses vocábulos designam principalmente a realidade social e cultural e, com menos frequência, natureza ou realidade concreta. Sociedade e cultura são então fontes e lugares da "necessidade real externa", do "poder do presente", das restrições, das demandas e da "recusa à satisfação", mas também da satisfação pulsional e das ações, com objetivo de adaptações, modificações e até a dominar e a buscar satisfação. Desse ponto em diante, eles impulsionarão cada pessoa a realizar o trabalho psíquico permanente, durante toda a vida.

Freud nos apresenta, em seus escritos, concepções pessoais e evolutivas, independentes da teorização dos seus contemporâneos sociólogos e antropólogos. É uma questão de socioantropologia psicanalítica em essência, tanto em seus alicerces epistemológicos como em seu método, que, por sua linguagem conceitual, não leva em consideração a diferença de funcionamento e os produtos singulares dessa outra realidade, que é tão complexa quanto a realidade psíquica, sistêmica e simbólica em natureza, e atravessada por antagonismos múltiplos. No entanto, a outros respeitos, o pensamento freudiano revela-se como produto de pensamento determinado de forma histórica e sociocultural que mostra evidências de certas representações sociais e ideológicas predominantes em sua época, mas também na sociedade vienense que sofria uma séria crise. Indiquemos, especialmente, o antagonismo radical entre indivíduo e sociedade, bem como a ideologia evolucionista em suas versões desenvolvimentista (a sociedade se desenvolve como um indivíduo) e progressista (a evolução é animada pelo progresso sustentado pelo triunfo da razão, dogma dominante no século 19 e do qual os burgueses liberais da sua sociedade se apropriaram).

Assim, detectei uma progressão evolutiva do seu discurso inerente à própria evolução da doutrina psicanalítica, seja a teoria das pulsões, seja a do aparelho psíquico, por exemplo.

Por isso, distinguiremos dois períodos:

- O da primeira tópica, com seus textos principais: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Moralidade sexual "civilizada" e doença nervosa moderna (1908) e Totem e tabu (1912-1913).

- O da segunda tópica: Uma breve descrição da psicanálise (1924), O futuro de uma ilusão (1927), Mal-estar na civilização (1930) e Moisés e o monoteísmo (1939).

 

Primeiro período

Desde o início, Freud defendeu a tese de fundamentos pulsionais libidinais da cultura que depois definiria como "capital psíquico", o que não é muito surpreendente para um psicanalista ignorante das teorizações socioantropológicas! De fato, desde os Três ensaios... (1905), as produções culturais são uma questão de componentes sexuais adquiridos, de forças de pulsões sexuais desviadas do seu objeto sexual e dirigidas para objetivos novos, não sexuais, por meio do processo de sublimação, tanto individual quanto coletivo. Ao fazê-lo, ele afirmava, por um lado, que esse processo participa da constituição da cultura, e, por outro, que é uma questão de produção coletiva pela participação de cada um de seus membros. Consequentemente, esses componentes pulsionais, sublimados ou inibidos, até reprimidos, com respeito a seu objetivo, objetos em forma de renúncia e remodelamento, representam o "capital psíquico da cultura", que precisam necessariamente retirar grande quantidade de energia psíquica da sexualidade de seus participantes para suas necessidades próprias de consumo. Essa abordagem econômica, pulsional da cultura, está também especialmente manifesta em "Moral sexual", de 1908. Enquanto a cultura geralmente se constrói sob a repressão das pulsões, é também uma questão da doação pessoal de cada pessoa de uma parte do seu capital pulsional, libidinal e moções hostis, que assim representarão a contribuição de cada indivíduo para a constituição desta "propriedade cultural comum em bens materiais e ideais", como participante genuíno na constituição da cultura em questão, que é um empreendimento coletivo e propriedade comum. Essa mesma noção de "propriedade cultural comum" seria desconsiderada durante o segundo período. Além do mais, ele ressaltou que, por meio da repressão e do deslocamento das pulsões, a sexualidade normal faria a cultura progredir, em contraposição aos desvios perversos em conflito com ela por meio da impossibilidade de mobilizar esses componentes sexuais. Freud afirma simplesmente que o "valor cultural" da pulsão está em sua capacidade de se deslocar do objeto e do objetivo.

Em Totem e tabu, por meio da analogia com as formações neuróticas sintomáticas, as instituições primordiais têm origem pulsional e animal. Elas pertencem aos conflitos pulsionais da espécie, de natureza edipiana, e constituem soluções sociais de compromisso ao problema da compensação de desejo. Realizados coletivamente, eles representam "bens de humanidade".

Seu método levou-o a estabelecer o lado paterno ambivalente do complexo de Édipo no alicerce da cultura, como agente de ligação entre os dois campos - individual-intrapsíquico e coletivo, sociocultural a partir de algumas necessidades, capacidades e processos da atividade mental humana, mas também levando em consideração a analogia essencial entre o indivíduo e a sociedade, a da psique-individual, no primeiro caso, e de massa no segundo - dentro do qual encontramos inevitavelmente processos similares. Psique individual e cultura são correlativas, portanto interdependentes.

Finalmente, a introdução da noção de "psique de massa", assegurando a continuidade da vida psíquica entre as gerações, é extensão da noção de Wundt de psique coletiva como prolongamento da psique individual. E mostra similaridades com a de "consciência coletiva" introduzida por Durkheim (1993). Como já formulei, pertence à cultura e representa um exemplo dela ao fazer referência à "atividade mental humana". Em oposição ao que Freud imaginou, ela não se coloca em relação de identidade com a psique individual, como demonstraram os psicanalistas grupais. De fato, seus processos e suas formações são específicos, ainda que existam analogias entre essas duas realidades psíquicas: individual e coletiva.

 

Segundo período

Um breve relato (1924) apresenta a cultura como domínio da expressão da "atividade mental humana", pressupondo uma atividade projetiva de "modelagem" externa de um mundo interno e que comporta três partes correspondentes às três áreas da sua representação da cultura: o combate com a realidade, a natureza, determinando uma comunidade de trabalho e interesse dos seres humanos vinculados de modo libidinal, e uma vida social correlativa; as satisfações substitutivas de desejos reprimidos, entre os quais figuram os mitos, a criação literária e artística; as grandes instituições que permitem dominar o complexo de Édipo e a passagem da libido do indivíduo das suas ligações infantis para as ligações sociais desejadas.

Em seguida, com O futuro de uma ilusão (1927) e Mal-estar na civilização (1930), Freud nos mergulha numa descrição elaborada e nos expõe a antagonismos estruturais - entre a cultura ou sociedade e seus membros - e a paradoxos intrínsecos à cultura ou à sociedade em si.

Em primeiro lugar, ele pinta um quadro do conjunto da cultura envolvendo, mais uma vez, três áreas: os aspectos materiais, procedendo de dois tipos de atividades, as úteis, de ordem vital, permitindo a aquisição e fabricação de bens e referentes à "cultura material", e as inúteis, mas, mesmo assim, necessárias aos seres humanos, entre as quais, beleza, ordem e limpeza; os aspectos "intelectuais" ou "bens psíquicos", integrando sistemas religiosos, especulações filosóficas, criações artísticas, bem como as formações de ideal ou fundos de ideais humanos culturais e o superego humano como "capital cultural psicológico"; finalmente, o que pertence às formas de regulamentação das relações sociais assegurada pela ética ou moralidade, uma das expressões do superego cultural, ressaltaria Freud em Mal-estar na civilização - que produz seus ideais e eleva suas exigências.

Quais são seus principais antagonismos e paradoxos, que são a fonte de conflitos e de ambivalência em seu lugar?

 

Antagonismo natureza/cultura

Se o verdadeiro alicerce da existência da cultura, que se confunde com sua tarefa principal, consiste numa comunidade de trabalho e de interesses dos homens, associados entre eles por meio de identificações, relações com inibição de objetivo e laços homossexuais sublimados, visando essencialmente sua proteção dos perigos da natureza e sua dominação para obtenção de bens vitais, ela é assim fonte de múltiplas formas de sofrimento pela determinação da dupla restrição ao trabalho, tanto psíquico (sublimatório, por exemplo) como social, individual e coletivo, e pela renúncia pulsional exigida de pulsões engendrando, portanto, sacrifícios.

 

Antagonismo indivíduo/sociedade-cultura

Mas é também ameaçada em seu seio por outra fonte de perigo: ela deve se proteger de seus participantes, indivíduos humanos dotados de "pulsionalidade de origem animal", portanto pulsões ditas antissociais, tanto sexuais quanto destrutivas, que fazem delas inimigos virtuais. Sem esquecer seu narcisismo, que precisa ser contido e se transformar em amor objetal, daí o amor como fator de cultura.

Freud identificou duas fontes de hostilidade dos indivíduos das quais a cultura precisa se proteger:

- A inerente à natureza animal dos seres humanos, constituída de pulsões "egoístas", sexuais e destrutivas, antissociais e anticulturais, em busca de satisfação, e confrontada com privações instauradas pelas proibições básicas;

- As determinadas pela restrição ao trabalho individual e coletivo e a renúncia pulsional exigida, que engendra sacrifícios psíquicos em seus participantes, determinando uma posição virtualmente hostil à cultura e às suas exigências.

Suas modalidades de proteção são também múltiplas: ela deve compensar seus participantes pelos sacrifícios pulsionais que impõem a eles oferecendo "bens psíquicos" que têm essa finalidade, de acordo com Freud, assim como as instituições, dispositivos e mandamentos.

No entanto, o método que seria considerado como o mais determinante e significativo de proteção da cultura contra a pulsão destrutiva de seus participantes, e o mais perigoso, seria a instauração do superego ou consciência moral em cada indivíduo, tornando-se assim o portador da cultura e o advento correlativo do sentimento de culpa. A cultura, obra e a serviço de Eros, é solidária a esse sentimento de culpa, que induz inevitavelmente à perda de felicidade. Esse é a finalidade da Kulturarbeit, tanto em seu campo individual quanto coletivo.

Para cada sociedade, portanto, será então uma questão de encontrar modalidades de equilíbrio entre esses dois tipos de reivindicações: individual e coletivo.

Entre os outros antagonismos "socioculturais" que detectei, gostaria de ressaltar:

- O que há entre as mulheres, como representantes dos interesses da família e da vida sexual, e a cultura;

- Entre a família, da qual os adolescentes precisam se separar, auxiliados nessa tarefa pelos ritos da puberdade instituídos pela sociedade, e a cultura;

- Entre homens e mulheres em sua relação com a cultura e com a Kulturarbeit;

- Entre Kulturarbeit e sexualidade, por meio do trabalho necessário de sublimação pulsional, que empobrece o capital erótico pulsional, os perigos da defusão pulsional;

- Entre os laços homossexuais sublimados e inibidos, quanto ao objetivo reinante na comunidade de trabalho e de interesses humanos, e a heterossexualidade dos laços conjugais.

- Entre sexualidade como fonte autônoma de prazer e casamento, como vínculo procriador entre um homem e uma mulher: a sociedade imporia a todos os seus membros o mesmo tipo de vida sexual genital baseada na escolha de um objeto heterossexual - excluindo assim a multiplicidade de escolhas, o objeto homossexual e as perversões -, a ligação entre um homem e uma mulher, principalmente procriadora e indissolúvel, no quadro da instituição do casamento.

Mas Freud propôs também uma visão dinâmica da cultura como "processo", obra de Eros que incita os seres humanos a se ligar de forma libidinal entre si para formar grandes unidades sociais, durante todo o tempo submetido à ananké, necessidade real, portanto, realidade externa. Consequentemente, Eros e ananké são os genitores da cultura humana. Esse processo se desenvolve na escala da humanidade e parece análogo ao desenvolvimento individual e aos processos orgânicos. Ao precisar confrontar um obstáculo maior, a pulsão destrutiva ressaltará um combate animado por movimentos necessários de fusão-defusão-refusão entre Eros e essa pulsão de destruição, correspondendo assim ao conteúdo essencial da vida.

Em Moisés e o monoteísmo, Freud nos recorda que na vida psíquica do indivíduo não há em funcionamento apenas conteúdos vividos por ele, mas também conteúdos inatos, "traços de memória ligados à experiência vivida por gerações anteriores" que continuam persistindo como elementos de origem filogenética e constituindo uma herança arcaica. Para Freud, essa noção de herança arcaica parece representar um agente de ligação entre filogênese e ontogênese e entre as psicologias individuais e coletivas.

Se os alicerces da cultura, por constrição e às restrições pulsionais em particular, condicionam e favorecem a irrupção de uma neurose em seus participantes, e se a analogia entre desenvolvimento cultural e o do indivíduo fundamentado especialmente em certos processos semelhantes apresenta um valor, Freud se autoriza a inferir a existência eventual de culturas e de épocas culturais neuróticas sob a influência "de tendências da cultura". Assim, a cultura produz neurose individual, mas também neurose coletiva...

 

A noção freudiana de Kulturarbeit

Kulturarbeit percorre toda a obra de Freud, a partir de A interpretação dos sonhos, ainda que não seja designada como tal. Como nós a identificamos, essa noção exprime a existência de relações de interdependência e interpenetração entre as realidades socioculturais e individual, psíquica e corporal. E a originalidade do pensamento freudiano é a de ter indicado as diversas modalidades de inscrição e de transmissão individual, tanto corporal quanto intrapsíquica, da cultura e do social, e significar, para nós, que essa introjeção do social e de cultura condiciona a constituição de um aparelho psíquico diferenciado, portanto, a hominização psíquica de todo indivíduo que permitirá sua socialização, ou seja, sua incorporação à sociedade, conferindo-lhe o status de "pessoa" ou de "sujeito". Esses sujeitos participarão do trabalho coletivo, de natureza social, produtivo, preservador e reprodutivo de sua sociedade e cultura, seu "bem comum".

 

À guisa de conclusão

Freud instaurou, com impertinências metodológicas, os alicerces de uma abordagem psicanalítica necessária à sociedade e à cultura, que seriam retomadas e desenvolvidas por outros autores de diversas perspectivas. Podemos citar Geza Roheim, Abram Kardiner e Georges Devereux. Prosseguirei essa investigação nesses autores bem como em autores contemporâneos. No entanto, parece-me urgente, por outro lado, elaborar uma metodologia psicanalítica heurística, que os psicanalistas grupais iniciaram, por outro lado, para combinar, no quadro de uma colaboração pluri e interdisciplinar, a abordagem psicanalítica (individual e grupal) para abordagens tanto históricas como sociológicas, antropológicas e linguísticas, na perspectiva de uma investigação genuinamente pertinente e fecunda da complexidade dessa realidade humana.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
ERIC SMADJA
Paris rue du sergent Bauchat, 30
75012 Paris

Londres
Wimpole Street, 85
London WIG 9RJ
Ericsmadja59@gmail.com

Recebido 04.11.2015
Aceito 11.04.2016

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