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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.61 São Paulo ago. 2016

 

LITERÁRIAS

 

Anestesia

 

 

Noemia Davidovich Fryszman

Professora titular (aposentada) de literatura inglesa e norte-americana da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora de história da arte das Faculdades Integradas Rio Branco. Mestre em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Participante do Grupo de Estudos "Estética-Arte-Psicanálise" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

 

A velha tinha 72 anos. Nem era tão velha assim. Estava confusa, só conseguia perceber que havia sido levada ao hospital e agora estava na sala de cirurgia. Havia um grande relógio na pare-de que marcava a hora com precisão, eram 2h43 da madrugada... Estava mesmo confusa... Tentava se lembrar de como viera parar ali, mas não conseguia. Estava imobilizada, via luzes e o relógio na parede tomava proporções assustadoras, seu único pensamento era que talvez nunca mais abrisse os olhos para ver o relógio. Sentiu uma picada no pulso, e conseguiu enxergar pessoas de máscara que diziam coisas como "mais cinco cc de...". Um rosto mascarado, cuja boca se distinguia, movimentava-se de forma estranha enquanto repetia, "conte de trinta a zero". E de repente uma vida há muito esquecida retornou com a força de um ciclone. Era como se ela flutuasse em um espaço mágico onde nada fazia sentido, mas que ela tinha certeza de que eram o espaço e o tempo de sua vida. Sentiu um medo terrível, e se nunca mais ouvisse o tic-tac do relógio? Nunca pensara que aquele som contava o tempo da sua existência, mas seria o nosso tempo medido pelo relógio?

A sala foi tomada por uma luz dourada com raios multicolores e borboletas de asas salpicadas de luz invadiram o espaço. Tentou caçar uma borboleta, mas foi em vão. Naquele instante ela se desesperou, por que estava sozinha? Por que o seu filho não estava lá? Fez um esforço terrível para perguntar ao mascarado de boca inquieta, porém, só conseguiu ouvir, "mais 10 cc de pro...".

Agora estava tudo muito quieto. O silêncio era tão concreto que podia ser agarrado com as mãos. O tempo endoideceu e pedaços arrancados de momentos vividos começaram a saltar, animados por uma vida interior. A pulseirinha, meu Deus, a pulseirinha. Já fazia tantos anos, era só uma adolescente, quando o seu pai chegou em casa mais cedo e ela encontrou em cima da sua penteadeira um pacotinho minúsculo de presente. Eram pobres, e nem era o seu aniversário, o que seria? Abriu sofregamente o pacotinho e lá estava uma pulseirinha com um pingente que era um coração com uma minúscula pedra vermelha encravada, e em baixo relevo via-se um cometa indicando para a inscrição, "Deus te guie". A pulseirinha passou a fazer parte do seu braço, como se sempre estivera lá. Naquele dia, voltando da escola, tomou o bonde para voltar para casa ostentando a pulseirinha como se fosse um troféu. Desceu do bonde ao chegar ao ponto, caminhou alguns passos, ajeitou os livros e a bolsa e olhou mais uma vez para o seu braço, mas a pulseirinha não estava lá. Sentiu uma tontura, tudo começou a girar, escureceu, e quando voltou a si, havia um casal tentando reanimá-la. Levantou-se abruptamente, sentiu tudo girar outra vez e ouvia dentro de si a própria voz gritando, "corram atrás do bonde, a pulseirinha, a pulseirinha...". Custou conformar-se e, quando tudo já parecia há tanto tempo esquecido, a lembrança se tornava presente e ela sentia como se aquela perda tivesse deixado um vazio impreenchível. Na verdade ela nunca se recuperou, por muito tempo ao tomar um bonde ela procurava desesperadamente pela pulseirinha perdida, olhando disfarçadamente embaixo dos bancos... Depois os bondes desapareceram...

De novo, bem de longe as vozes, "mais 10 cc".

E o seu filho, já havia chegado?

Sentiu-se confusa. Entrou em um estado alucinatório entre vigília e adormecimento. Era criança novamente. Chovia. Na rua onde morava não havia calçamento, somente barro, barro, barro... O portão de casa estava destrancado, hesitou, saiu... uma das primeiras lembranças tomou vida na sua imaginação e ela estava sentada no barro molhado diante da casa, sentindo as gotas de chuva molhar seu corpo todo, a cabeça, os braços, tão pequeninos... as mãos... olhava fascinada para a água escorrendo por entre os seus dedinhos... foi então que resolveu tomar o barro em suas mãos e amassá-lo com vigor. Sentiu que podia dar forma a ele, começou a modelá-lo, mas ele se negava a transformar-se, até que finalmente ela conseguiu... uma cabeça tosca, dois alongamentos irregulares que faziam as vezes de braços, uma bola - a barriga, e dois palitos de barro -, os pés. O júbilo que sentiu, até hoje é inesquecível. O portão se abriu e sua mãe preocupada veio levá-la para dentro de casa. Ela começou a chorar e espernear, apertando o seu boneco contra o corpo. Ao entrar em casa ele havia se esfacelado, quase nada mais restava da sua criação. Na sua vida, muitas vezes, sem motivo, o seu boneco de barro aparecia, e - coisa fantástica - seu rosto adquiria uma expressão humana indecifrável.

Sentiu-se estranha. Ouvia vozes distantes. Queria falar, mas as palavras estavam aprisionadas em sua mente.

E o seu filho, já havia chegado?

Meu Deus, o que estava fazendo ali? Fez um esforço para levantar-se, mas continuava imóvel. Sentiu medo, muito medo, e olhou para o relógio com os olhos quase cerrados, suas pálpebras estavam tão pesadas... não conseguia enxergar as horas... uma névoa cinza preenchia a sala, ora repleta de pontos multicoloridos que executavam uma dança fantástica, ora borboletas luminosas cismavam em aparecer bailando em frenesi enquanto se acasalavam. Era tudo tão estranhamente fantástico!

O livro! O livro! Onde estaria o livro? Novamente, vozes estranhas, rostos mascarados, barulho de respiração nos aparelhos, luzes, sombras, tudo tão esquisito! E novamente a mesma voz - "aumente a dose, o pulso está fra...". O livro...

O presente mais valioso depois da pulseirinha. Pele de Asno, a princesa em farrapos vestida com a pele de asno. À espera do seu príncipe encantado. A figura da princesa fazendo um bolo e colocando o seu anel na massa. Na sua retina essa imagem nunca se apagou. Até hoje, toda vez que prepara um bolo a imagem volta com uma força avassaladora. A transformação... a incrível capacidade de se transformar... na imaginação. O príncipe qua-se engasgando com o anel... a felicidade. Como pôde perder o livro? Onde estaria? Quem o teria achado? Novamente a confusão... era como se ela fosse uma sombra à procura de um ponto de luz, por menor que fosse. Não conseguia enxergar o relógio. Sentia-se tão só.

E o seu filho, já havia chegado?

Sentia que a qualquer momento seria tragada pelo infinito. E se fosse uma pecadora?

A noiva de rosa, a noiva de rosa... estigma indelével...

Era tão jovem e tão cheia de sonhos. E o amor chegou de repente. Não sabia nada da vida e era tudo magia.

Foi tão terrível, ela no confessionário... "padre, eu pequei. Vamos nos casar, um bebê está chegando". Foi obrigada. A noiva de rosa. Até hoje odiava essa cor. Um espetáculo para o bairro que nunca esqueceu nem perdoou. Quando o pai do seu filho morreu, ouvia-se por toda parte,"foi a ira divina, os pecadores". Nunca esquecerá aquele dia, seu filho adorado chegou da escola e ela soube, como só as mães costumam saber, que alguém fizera o favor de lhe contar. Ele era o filho da noiva de rosa. Dali em diante, ela o surpreendia olhando-a com um misto de desprezo e asco. Desviava o olhar rapidamente, mas aquilo cortava seu coração. Nunca mais reconquistou o amor do seu filho. Mas tinha certeza de que ele viria. Ela o esperava.

Será que ela era uma pecadora?

Agora ela era o ponto de luz, tão pequeno, mas tão brilhante, e cada vez mais era tragada por uma luz feita de sombras.

Uma soberba noiva de branco, cercada de rosas brancas e com um enorme véu alvíssimo, parecia conduzi-la para caminhos insondáveis.

O relógio da sala escurecia cada vez mais e agora não marcava mais as horas.

 

 

Endereço para correspondência:
NOEMIA DAVIDOVICH FRYSZMAN
Rua Ceará, 101/51
01243-010 – São Paulo – SP
noemia.david@terra.com.br

Recebido 10.04.2016
Aceito 07.05.2016

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