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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.61 São Paulo ago. 2016

 

LITERÁRIAS

 

A respiração de Menard

 

 

Juarez Guedes Cruz

Membro efetivo e analista didata da SPPA

 

 

Excedido em carnes frouxas, enleado em tubos, fungando o que pode da atmosfera do quarto, confundindo frascos de soro com taças de Murano, cheirando um perfume que se alardeia francês, Menard sobrevive ao derrame e consegue, dois dias depois, respirar normalmente. É quando ouve, sussurrada por Helena, a frase: "excedido em carnes frouxas, enleado em tubos, fungando o que pode da atmosfera do quarto, confundindo frascos de soro com taças de Murano, cheirando minha presença, você sobreviveu e consegue, há dois dias, respirar quase normalmente". Pensando bem, Menard, foi até pedagógico esse derrame: durante anos, você inspirou e expirou com muito desleixo e só agora valoriza esses singelos movimentos que colocam oxigênio e eliminam o gás carbônico de seu organismo. Inspirar, expirar, inspirar, expirar. Você fez isso a vida toda, várias vezes por minuto, sem pensar nos milhões de séculos de evolução necessários para que tivesse, fornecido de graça pela natureza, um aparelho respiratório tão aperfeiçoado que dispensasse manuais de instrução. Educativo o derrame, Menard. Antes dele, você jamais lembrara de agradecer pelo ar do qual desfrutava, assim, inconsequente. Além disso, jamais compreendeu que respiramos por uma questão de pura chance matemática. Bastaria que as moléculas que existem neste quarto se acumulassem em um só ponto para que morrêssemos asfixiados. Claro que a chance dis-so acontecer é uma entre centenas de milhares de quatrilhões. Mas, em uma chance entre centenas de milhares de quatrilhões, poderia ter acontecido. Inspirar, expirar. Não esqueça. Não é fácil para todo mundo. Lembre, por exemplo, do fino colchão de ar entre a água e a camada de gelo que cobre a superfície dos lagos e rios congelados. Nessa nesga, que não chega a um centímetro, existe oxigênio. Saiba que foi nela que Houdini precisou buscar alento antes de encontrar o buraco no gelo, o caminho de retorno à vida, ao ar pleno. Esse mesmo ar que você, tão prodigamente, tem gastado. Se necessita de mais um lembrete de seu descaso, nem precisamos ir tão longe. Quantas vezes, em seu laboratório de fisiologia, enquanto explicava aos alunos a obviedade de que, no vácuo, morre-se asfixiado, uma cobaia, encerrada em um cubo de vidro do qual era extraído o ar, procurava, em algum dos vértices superiores, um cantinho onde existisse uma esmola de oxigênio que ainda pudesse lhe avermelhar as células. Por isso, respire, Menard. Respire de modo irresponsável pela última vez. Sem lembrar dos asmáticos, dos bebês enredados em circulares de cordão, dos milhões de seres humanos exterminados em câmaras de gás. Sem considerar as cobaias fungando dádivas de oxigênio em vértices de cubos ou de Harry Houdini respirando milímetros. Respire e aproveite antes que eu desligue, por apenas dez minutos, o aparelho. E não adiantam agora pupilas escuras, exageradas e medrosas. O atendente que contratei para cuidar de você finge dormir. Eu avisei, Menard, que não serviriam de nada as taças de Murano que estalariam assim que uma gota de veneno fosse colocada dentro delas. De pouca valia os espelhos que partiriam quando refletissem a face do inimigo. De nada adiantariam frente à determinação de uma mulher que você sufocou a vida toda.

Enquanto cata migalhas de oxigênio, Menard pensa na inutilidade de ter sido feito de barro escolhido e premiado com uma gota de esperma num repositório seguro, achando que Deus sabia o que fazia. É quando Helena pergunta do que adiantou acreditar ser feito de barro escolhido e premiado com uma gota de esperma num repositório seguro? Achou que Deus sabia o que estava fazendo? Qual a importância, Menard, de ver transformado o esperma em coágulo, e o coágulo em óvulo, e o óvulo em osso, e de ter revestido o osso com carne? Achou mesmo que herdaria o paraíso? Então, que azar o seu, dois dias antes do derrame, falar em separação. Tem medo agora? Não recue. Se é um precipício que está vendo na alucinação causada porque o ar se esgota, caminhe até a borda e olhe para baixo. Se esse exercício o apavorar, pense que é isso mesmo, que bastaria um empurrão, um sopro, um simples balançar vacilante e você estaria lá embaixo, agonizando entre as rochas. Sempre teve medo de que alguma amante o comprometesse? Jamais pensou na esposa que conhecia suas taças e espelhos? Não, não vire a cabeça. Está achando que chegou ao fundo do poço e quer pedir perdão? Que otimismo é esse? Esse poço, meu querido, não tem fundo. Quando acaba a queda? Quando, daqui a algumas horas, o atendente disser que o encontrou inerte nesse leito de hospital. Quando encostarem a mão no seu pescoço e não sentirem batimentos. Será o sinal de que você saiu do poço sem fundo. Para alívio seu e de todos à sua volta, principalmente meu, terá trocado o otimismo do fundo do poço pelo Nada. Você será nada. Você não é. Nem você. Nem. A essa hora, estarei em casa. Aparentemente surpresa com a notícia de sua morte, não contarei aos amigos que pensavam nos conselhos reunidos, nos homens mascarados decidindo destinos, nos mestres de Murano, assassinados por se-rem portadores de segredos. Mas, por favor, não pare de fungar assim, tão rápido. Abra a boca, Menard. Lute pela vida, homem. Não seja desmancha-prazeres.

 

 

Endereço para correspondência:
JUAREZ GUEDES CRUZ

Rua Tobias da Silva 85/306
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tel.: 51 3331 1341
jgcruz@pro.via-rs.com.br

Recebido 10.04.2016
Aceito 07.05.2016

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