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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.61 São Paulo ago. 2016

 

RESENHAS

 

Os "nós" da crítica literária psicanalítica

 

 

Alexandre Socha

Membro filiado do Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP

 

 

Ogden, Benjamin H. & Ogden, Thomas H. O ouvido do analista e o olho do crítico: repensando psicanálise e literatura. São Paulo: Escuta, 2014. 164 p.

É inegável a presença da Literatura desde os primeiros textos psicanalíticos, sendo escritores e poetas grandes interlocutores de Freud na construção de seu pensamento. Não levou muito tempo para que ele mesmo buscasse percorrer o caminho contrário, estendendo as descobertas da Psicanálise para o âmbito da Literatura. Publicado recentemente pelo psicanalista Thomas Ogden e pelo crítico literário Benjamin Ogden, O ouvido do analista e o olho do crítico: repensando psicanálise e literatura se destaca como uma contribuição original e oportuna dentro desse campo de estudos. Sendo um raro esforço conjunto entre profissionais das duas áreas, o livro tem o mérito de não homogeneizar os discursos, mantendo a tensão permanente entre Psicanálise e Crítica Literária como um dos elementos propulsores do debate. A presença constante de uma dupla perspectiva no tratamento do texto literário traz evidente esforço dos autores para uma linguagem livre dos excessos de terminologia técnica específica de cada área, tornando o livro acessível a um público amplo, não necessariamente familiarizado com o tema.

O livro se divide em três capítulos, seguidos de três apêndices referentes a cada um deles, além de introdução e conclusão. Mais do que uma reflexão sobre o uso de referenciais psicanalíticos na crítica literária, os autores trazem um exemplo vivo do pensamento que procuram desenvolver. No primeiro capítulo encontramos a análise de um poema de Robert Frost, "Nunca mais o canto dos pássaros seria igual"; no seguinte, a de um conto de Franz Kafka, "Um artista da fome"; e o capítulo final dedicado à novela de Philip Roth, "O escritor fantasma". Na realidade, cada um dos capítulos retoma a análise de um artigo já publicado anteriormente, os dois primeiros de Thomas Ogden e o terceiro de Benjamin Ogden. Essas análises são revistas e comentadas pelos autores em uma nova perspectiva, promovida sobretudo pelo trabalho dialógico da coautoria. A edição do livro é cuidadosa ao incluir integralmente a versão original desses artigos como apêndices, tornando acessível ao leitor acompanhar os dois tempos da discussão.

Desse modo, ao revisitarem seus próprios artigos, os autores enfatizam e ressaltam aquilo que neles consideram fundamental para uma crítica comprometida tanto com a Psicanálise quanto com a Literatura. Ao mesmo tempo, realizam nessa releitura a mesma análise minuciosa que os originais haviam por sua vez dispensado ao texto literário: a discussão sobre o lugar do narrador (agora, no caso, analista ou crítico literário), o uso peculiar de sua linguagem, e outros recursos linguísticos capazes de inscrever uma configuração intrapsíquica e intersubjetiva. Ao tomarem os próprios trabalhos como ponto de partida e objeto de reflexão, em uma espécie de second thoughs, reconhecemos nas vozes atuais a ressonância de outras pregressas, e, mais ainda, o convite para que o leitor perpetue tal movimento durante sua própria leitura.

O expediente de tomar a si mesmo ou o próprio texto como objeto (aliás, nada distante da literatura contemporânea) revela os dois planos que atravessam simultaneamente o livro: o da contribuição da Psicanálise para a reflexão de uma obra literária, e o deslizamento da investigação para a crítica literária psicanalítica em si mesma, enquanto gênero a ser repensado, do qual provém o subtítulo do livro.

Na interseção entre esses dois planos, os autores trazem uma breve mas incontornável problematização da "psicanálise aplicada" aos textos literários. Em sua longa tradição, as premissas estabelecidas por Freud (sobretudo em seu "Os escritores criativos e devaneio", de 1907/1908) serviram por muito tempo como alicerce para grande parte da produção nesse campo. Em síntese, Freud partirá da noção de que o texto é o espelho da mente inconsciente do escritor e de suas fantasias reprimidas, o que lhe servirá de argumento metodológico para a análise de obras literárias. Sendo vista assim como emanação do funcionamento inconsciente, ao qual o escritor seria então entre nós aquele mais sensível a captar e traduzir em palavras, a literatura poderia também servir ao analista como suporte e material ilustrativo de conceitos e teorias oriundas da prática clínica. Parte-se assim da "suposição de que os personagens literários se comportam e pensam como seres humanos reais; que os personagens fictícios têm problemas psicológicos inconscientes que o leitor pode identificar e diagnosticar; e que o autor e seus personagens partilham os mesmos dilemas inconscientes" (Ogden & Ogden, 2014, p. 31).

O que se perde nessa aplicação de conceitos psicanalíticos na literatura é justamente o estatuto literário e artístico de um texto, ou seja, aquilo que o define por excelência. Os aspectos formais e os elementos estéticos e discursivos de uma obra são reduzidos a uma mera elaboração secundária da vida pulsional do escritor. Nesse caso, caberia ao psicanalista o lugar privilegiado de "desvendar" a verdade por trás do disfarce das palavras, o seu verdadeiro e real significado. Recorre-se ao arcabouço teórico e ao uso de conceitos desprovidos de seu contexto clínico originário para decodificar o texto, psicanalisando seus personagens, ou em alguns casos o próprio escritor. Em tais condições, a literatura pouco ganha com o esforço interpretativo do psicanalista, que no fim das contas a perde de vista para enxergar apenas a si próprio, validando teorias previamente formuladas.

O afastamento epistemológico de uma "psicanálise do au-tor" parece estar subjacente ao modo como os autores apresentam a si mesmos. Não encontramos referências a Thomas ou a Benjamim Ogden, mas sim ao "coautor psicanalista" e ao "coautor crítico literário", levando inclusive ao uso dos acrônimos LPL (Leitor Psicanalítico de Literatura) e CL (Crítico Literário). Do mesmo modo, a relação pessoal entre os autores, pai e filho, não é mencionada em nenhum momento (exceto no prefácio da edição brasileira), indicando talvez um posicionamento de que, no contexto específico do livro, os dados biográficos seriam secundários à discussão por ele proposta.

A reflexão sobre o uso estereotipado da teoria psicanalítica e o posicionamento crítico dos autores tornam a discussão relevante não apenas aos interessados em sua relação com a Literatura, mas aos interessados nas relações entre Psicanálise e as formações da cultura de um modo geral. A questão que aqui se coloca é se a mera aplicação de um referencial metapsicológico garantiria o caráter psicanalítico de uma interpretação. Em outras palavras, qual seria a natureza do método psicanalítico e o que o definiria? Para além do manejo conceitual e sua retórica, em que se constituem escuta e interpretação psicanalíticas, se-jam elas de uma obra de arte ou de um paciente?

Circundando tais questões, os autores reconhecem que as teorias psicanalíticas fazem parte do modo como o analista estrutura seu pensamento e apreende o fenômeno clínico. Não apenas depuram sua escuta, como também se fazem necessários para a comunicação de um pensamento compartilhável. Entretanto, o plano da abstração conceitual não corresponde à totalidade do trabalho analítico e à sensibilidade aos fenômenos intra e intersubjetivos que emergem do encontro. Do mesmo modo, também o crítico literário psicanalítico deveria incluir atributos da prática clínica na sua forma de ler e ser tocado pelo texto. Para os autores isso ocorreria principalmente por meio da escuta singular que o analista em seu trabalho dedica à voz, falada ou escrita. Temos como uma das ideias centrais do livro a de que aquilo "que o psicanalista, ou crítico literário, que quer ser psicanalítico de forma responsável, pode trazer para a literatura é um tipo específico de percepção da relação entre voz, efeitos de linguagem e estados emocionais complexos" (Ogden & Ogden, p. 51).

Encontramos na noção de voz, vinculada à manifestação de estados emocionais, um tema caro a Thomas Ogden e recorrente em sua obra. Uma observação pertinente feita no primeiro capítulo é a de que a crítica literária, com raras exceções, tem o costume de ignorar importantes contribuições da psicanálise contemporânea, predominando as mesmas e reiteradas referências a Freud e Lacan. Nesse livro encontramos aportes da obra de Bion e outros, mas sobretudo as proposições originais de Thomas Ogden. Retomando a ideia da prática clínica como fundamento para uma apreensão psicanalítica da literatura, surgem - sob nova ótica e costura narrativa - referências às ideias de terceiro analítico, intersubjetividade, sua visão pessoal do sonhar e do trabalho de reverie, de experiências de vitalidade e desvitalização no encontro analítico, além da já mencionada compreensão da voz. Essa é concebida na obra do autor não tanto como "expressão de si mesmo", mas como "experiência de si mesmo". Embora veicule subjetividade, a voz não seria matéria fixa disponível à expressão do sujeito, ela é antes um evento em contínuo movimento, sendo recriada a cada instante, permeável a outras vozes e ao fluxo de estados emocionais conscientes e inconscientes: não raro nos surpreendemos ao escutarmos nossa própria voz.

Para o "ouvido" do analista, ao qual se refere o título do livro, é também da sonoridade do texto, sua melodia e uso particular da linguagem que emana o sentido e a configuração de uma realidade psíquica. Em vez de expressão de um inconsciente, seja ele do autor ou das personagens, a obra literária, por meio de seus artifícios poéticos, melodia, rítmica e estrutura sintática, explicita uma dinâmica específica entre consciente e inconsciente, ou das relações entre eu, mundo e os outros. A resposta analítica ao texto não possui necessariamente uma função explicativa, e é no impacto que a configuração estética promove, mais do que no possível "significado oculto" do texto, que se debruça a leitura do psicanalista. No que se refere à apreensão de estados emocionais e subjetividade, a escuta analítica da voz poética ou literária guarda muitas semelhanças à escuta da fala de um paciente em análise, e do modo como se é por ela afetado.

Já para o crítico literário, como examina o terceiro capítulo do livro, o tratamento do texto é significativamente distinto. Menos preocupado com a subjetividade que as nuances narrativas permitem inferir, sua leitura volta-se mais à sintaxe, gramática, pontuação, gênero e contexto histórico da obra em questão, inserindo-a dentro do debate de uma tradição literária. A análise formal minuciosa da palavra escrita, privilegiando assim o aspecto visual do texto (o "olho do crítico"), complementa e ao mesmo tempo se contrapõe à ênfase anterior na voz e sua sonoridade. Se por um lado as contribuições do crítico literário tem o "intuito de descrever mais longamente como o leitor psicanalítico pode alicerçar melhor o que ele 'ouve' nos dispositivos estéticos do texto por meio da análise de padrões e permutações formais e sintáticas" (Ogden & Ogden, p. 92), por outro sua perspectiva traz um olhar estrangeiro à leitura do psicanalista, revelando-lhe pontos cegos e desnaturalizando ideias pré-concebidas.

Como exemplo de apreensão visual do texto escrito é trazido uma inesperada análise do uso de travessões na primeira frase da referida novela de Philip Roth. Tal como o método investigativo de Leo Spitzer e Erich Auerbach, em que a atenção a um detalhe do texto servirá como ponto de partida (Ansatzpunkt) para uma visão geral de sua totalidade, a análise detida dos travessões explicita uma tensão entre duas vozes narrativas (em primeira e terceira pessoa), a partir da qual se depreende toda uma chave interpretativa da novela: a relação entre vida e arte, ficção e biografia, bem como o debate entre duas tradições literárias, realismo e metaficção (ficção que chama atenção para seu próprio estatuto ficcional).

Ao final do livro nos damos conta de ter presenciado a criação de um "nós" entre os dois coautores, entre duas perspectivas distintas nos estudos literários: o ouvido do analista e o olho do crítico. Não se trata de um pensamento uníssono, pois ambos mantêm suas posições particulares, permitindo-lhes inclusive concordar ou discordar a respeito de determinada questão. O psicanalista não se tornará crítico literário ao tomar literatura ou poesia como objeto de estudo, e tampouco o crítico literário se tornará psicanalista ao se apoiar em suas ideias e método específico de observação. Trata-se antes do estabelecimento de bases firmes para um território compartilhado, o da crítica literária psicanalítica, para que assim cada parte possa fazer uso das contribuições oferecidas pelo outro.

Naturalmente, esse trabalho colaborativo também inclui nós leitores, exigidos que somos a dialogar com o livro que temos em mãos. Incorporamos as vozes dos coautores às nossas como um "suprassom" (oversound) de texturas, inflexões e pensamentos, criando com eles outro "nós", uma voz ao mesmo tempo plural e particular.

 

 

Endereço para correspondência:
ALEXANDRE SOCHA
Rua Joaquim Antunes, 767/112
05415-012 – São Paulo - SP
tel.: 11 2157-8565
alexandre.socha@gmail.com

recebido 04.11.2015
Aceito 21.03.2016

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