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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.61 São Paulo ago. 2016

 

RESENHAS

 

Os paradoxos da repetição ou uma festa de ressonâncias

 

 

Luciana K. P. Salum

Psicanalista, professora substituta do Programa de Psicologia Clínica - UnB. Doutora (bolsista pelo CNPq) pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB). Especialista em Teorias Psicanalíticas pela Universidade de Brasília (UnB). Autora da revista virtual de poesia e arte contemporânea Mallarmargens. Atualmente, também estudante de Letras francesas pela Universidade de Brasília (UnB)

 

 

Fingermann, Dominique (Org.). Os paradoxos da repetição. São Paulo: Annablume, 2014. 272 p.

Os paradoxos da repetição é um livro bastante peculiar. Trata-se de uma coletânea de textos independentes, previamente encomendados em formato de conferências, organizada pela psicanalista Dominique Fingermann. O "paradoxo" do título serve de ilustração do porvir do texto. Tal encomenda não se destinou a um público uniforme e gerou, portanto, um cruzamento de olhares artísticos, literários, filosóficos e psicanalíticos a desencadear uma multiplicação conceitual. Ao não ter a pretensão do encontro com um denominador comum que apaziguaria angústias vinculadas a uma ideia demasiadamente presente na clínica (e nem por isso menos nebulosa), o livro abre a noção de repetição, pelo contágio com o entusiasmo dos autores, ao convocar o leitor a participar deste ciclo de palestras que origina os textos.

Resenhar esta rica coletânea escrita por autores de diferentes áreas do conhecimento, bastante admirados por mim, fez-me recordar, de imediato, do conto de Henry James - O desenho do tapete. Permito-me um pequeno desvio que marcará meu lugar como leitora de um livro singularmente convidativo. Parece-me uma empreitada à altura dessa obra não resumir o que cada autor trouxe de novo ao conceito repetido.

É solicitado ao narrador-personagem de James escrever uma crítica sobre um escritor muito reconhecido, Vereker. Já inicialmente lhe é alertado que tente chegar ao âmago do au-tor e não fique preso às tolices repetidas constantemente nas críticas literárias. Cuidadoso em garantir bons resultados, ele recebe como resposta à sua resenha, do próprio escritor, a seguinte sentença: "Ah, nada mau... a mesma bobagem de sempre!" (James, 1993, p. 148).

O erro cometido pelo personagem é acreditar que há a verdade das verdades por trás do escrito enigmático de Vereker, devidamente encoberta e visível somente para aqueles que souberem lê-lo. O conto convoca à questão, precisamente, do que é ler.

Ao errar deliciosamente a resenha-resumo, o crítico poderia inventar, por conta e risco de sua própria leitura, e construir algo novo que supostamente estava lá, oculto nos escritos do autor.

É justamente nessa confusão temporal que somos imersos ao transcorrer os capítulos do livro. A repetição não acompanha seu sentido coloquial de mesmice, tédio ou monotonia. Ao contrário, convoca-nos a este novo presente na expressão "de novo", que se refere ao passado. O brilhantismo do que entrelaça os textos não é a tentativa de continuidade. Embora haja um tema, este não funciona como um fio condutor, visto que cada expositor busca, dentro dos seus conhecimentos, lançar novas perguntas. Encontrar semelhanças e diferenças está a cargo do leitor, caso haja interesse.

O fio condutor, no que me concerne, é uma espécie de vácuo a nos acertar na mosca e permitir a construção de efeitos simbolizantes significativos. Veja, não reforço a proposta de um sentido a posteriori desencadeado pela assertividade dos textos, destaco o porvir de simbolização após o tiro no alvo; sua continuação.

O dispositivo dessa coletânea remete-nos à conduta de Lacan quando se nomeia freudiano. Trata-se de um movimento no qual se quebram os conceitos cristalizados que determinam o pensamento e cria-se uma leitura original. Segundo Bloom (2003), toda obra original nasce de uma prática de desleitura; de uma pequena, poderíamos chamar, não compreensão.

Desler os capítulos me obrigou a compartilhar um texto que precisou ser escrito imediatamente após a leitura continuada para que meu próprio entusiasmo não fosse censurado pelo decantar do livro. Que precisou, para aludir a Juliano Pessanha, ferir-me similarmente e autorizar-me a um "texto-amizade". Não com a intenção de escrever como ou sobre os autores mas sob influência deles.

Reconhecer, então, pelos textos dos filósofos, Vinícius Castro Soares e o próprio Juliano Pessanha, que o eterno retorno de Nietzsche reforça a "novidade do antigo" ao propor novas saídas para as transmutações de histórias mofadas. Reconhecer que o começo de um ato é inseri-lo no tempo e, concomitantemente, atestar o seu fim, proclamando o porvir de uma nova experiência. O gesto tanto repetido irá propor o diferente, não tendo a repetição como a grande maldição grega àqueles que eram condenados ao mesmo ato por toda a eternidade. Christian Dunker, também em diálogo com Darwin, endossa o escrito e reforça a repetição que não se suponha sinônimo da identidade do primeiro repetido. Ideia que lança outra subversão ao não termos a pulsão de morte associada diretamente a um fim e sim a um constante começo que instrumentaliza a produção de variabilidades.

É preciso tecido para haver um corte, assim como supõese um ato para haver repetição. Maria Rita Kehl continua a conversa servindo-se de Benjamim para destacar a importância da narrativa, daquilo que se transmite e se repete também oralmente. Diferenciando-se da crítica comum a atribuir melancolia à Benjamim, a autora denuncia que o que pode soar nostálgico vem repleto de esperança por mudança. Ao passar a história de boca a boca, cada eventual autor coloca um pouco de si e imprime uma constante criação à mesma-outra história. Tal capítulo parece ter sido encomendado por Manuel da Costa Pinto, que se serve justamente de repetição oral de uma lembrança paterna de Camus para nos mostrar o quanto a repetição estrutura. Uma espécie de exemplo antecipatório ao capítulo posterior de Kehl. O repetido da obra de Camus permite que suas histórias circulem entre si a marcar uma mesma história contada em outras palavras. O que, claro, não destituiria em absoluto o encantamento do autor.

Seu artigo finaliza com uma citação de Camus: "O homem, afinal, não é inteiramente culpado, não foi ele que começou a história; nem absolutamente inocente, já que a continua" (p. 91), e lança uma nova trança com o texto de Luiz Orlandi. Se não somos inocentes ao continuarmos uma história, marcamos, como leitores, o que muda em nossa contemplação da narrativa. O objeto pode soar intacto, mas a percepção dele não. Ressonâncias do já escutado mudariam, assim, a nova-velha história. Ela se desfaz na medida em que se faz, nos diz o autor, apoiando-se em Deleuze.

A continuar a tecelagem que fará um (texto) pelo retalho dos outros a também marcar a repetição em meu próprio escrito, lembro-me de adverti-los sobre uma escrita que tentaria driblar as possíveis censuras ao não convencional do texto, justificada, exclusivamente, pelo ponto de encantamento com o livro. Poderia traduzir tal ideia com o fechamento do artigo de Vladmir Saflate. Ao poder desperdiçar o entusiasmo desencadeado pela contemplação do livro, a resenha se faz. O autor é cirúrgico quanto à ideia lançada após seu preciso trajeto sobre a repetição em Lacan: "desperdiçar algo é uma forma de usá-lo livremente. Na verdade, só se goza o que se desperdiça" para então mostrar a repetição associada ao sujeito desamparado, aos "amantes desencontrados".

Não só os amantes gozam do desencontro, poderia defender-se Michel Bousseyroux. Em um texto que discute a "repetição final", um trecho rouba a cena. Zoom ao recorte do desencontro de Blanchot com sua própria morte. Desencontro que justifica uma escrita que estará à altura do posterior encontro, o não falho, com a morte. Belamente trabalhado pelo autor, o escrito de Blanchot relata o dia em que escapou de seu próprio fuzilamento. Essa espécie de "beatitude" não associada à felicidade, mas à plenitude, permite um fim para as repetições. O "sentimento de compaixão pela humanidade sofredora, a alegria de não ser imortal nem eterno" é o desfecho produzido pela cena do quase fuzilamento.

Até lá, até o encontro com a morte da morte, podemos experimentar as tais repetições deliciosamente apresentadas por José Miguel Wisnik. Um eco musical que faz, mediante a sua voz (que produz uma excelente diferença), com que a repetição do fim de uma palavra convoque-nos ao novo sentido de outra ao ser inscrita em novo verso. Denuncia, via poesia, o quanto os sentidos somente se fixam ilusoriamente, e ilustra o que de comum vemos entre os autores quanto à noção de repetição. A repetição, portanto, nunca será o repetido.

Embalada pela música, Dominique Fingermann apresenta sua dança encenada com Marguerite Duras ao trabalhar seus textos. Dança, portanto, não exclusiva da escritora, mas do belo encontro da organizadora dessa coletânea com Marguerite Duras. Dança desencadeada pela música do capítulo anterior, já salientado.

Textos, portanto, que só poderiam terminar com um artista. Sergio Fingermann, além de apresentar-nos a repetição em Monet, nos lembra o valor da arte. Ao nos abrir aos equívocos dos sentidos, podemos tentar mais uma vez e uma vez mais. Repetições que nos deixam suscetíveis às surpresas dos acidentes de percurso. Afinal, parece ser esse o trabalho do artista, ensina-nos quem escreve.

Finalizo, assim, a partir do vácuo produzido no discurso dos autores. Não dali de onde ele conversa mas dali em diante. Algo se perde no caminho, se desencontra, e graças a isso não temos a garantia da exatidão da fala do outro, do texto do outro, do ensinamento do outro. Enfim, de sua repetição. Mas, dessarte, temos a única possibilidade de conversar com o outro, com o texto do outro e com o ensinamento do outro. Ou, então, começar uma nova busca que vise à verdade das verdades, à paixão das paixões, e desvende o tempero que faz essencial o escrito dos autores, para depois contar a eles, claro, e resultar nas repetições que buscam o repetido e ignoram o conteúdo da coletânea.

 

REFERÊNCIAS

Bloom, H. (1993). Um mapa da desleitura: com novo prefácio. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1975).         [ Links ]

James, H. (1993). O desenho do tapete. In A morte do leão: histórias de artistas e escritores. São Paulo: Companhia das Letras        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
LUCIANA K. P. SALUM
SHIS QI 09. Centro Clinic do Lago. Bloco E2. Sala 205. Lago sul
71625-176 - Brasília - DF
tel.: 8123-7813
krissak.luciana@gmail.com

Recebido 11.04.2016
Aceito 07.05.2016

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