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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.62 São Paulo ago./dez. 2016

 

EM PAUTA | CORPO REFLEXIVO: O EU E O OUTRO

 

O sudário e o rosário: Arthur Bispo entre mistérios dolorosos e gloriosos1,2

 

The shroud and the rosary: Arthur Bispo between mysteries painful and glorious

 

 

Solange de Oliveira

Doutoranda do Programa de Psicologia Social, desde 2013, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Consideradas sob certas situações tensas, às vezes fatais, existem imagens que, não obstante ofereçam uma volumetria visivelmente discernível, nos impõem um vazio. Essa cisão evocada de antemão é experiência paradoxal. O "Manto da Apresentação" percorre essa direção, nos constrange por insinuar-se como obra de perda. Suas tramas conexas conformam um talhe humano, antropométrico - evidência corpórea, portanto -, no entanto, latências antropomórficas clamam vazão. Este artigo pretende discutir a questão da origem e da finitude sob uma dialética do olhar, a partir da obra de maior expressão na produção do sergipano Arthur Bispo do Rosario.

Palavras-chave: Arthur Bispo do Rosario. Outsider artist. Experiência estética. Fenomenologia. Merleau-Ponty.


SUMMARY

Considered under certain tense situations, sometimes even fatal, there are images which, despite offering a visibly discernible volumetry, impose us a void. This division, evoked beforehand, is a paradoxical experience. The "Mantle of Presentation" walks in this direction: it constrains us for insinuating itself as a work of loss. Its connected webs conform a human fit, anthropometric - therefore a corporeal evidence - however, anthropomorphic latencies long for a way out. This article intends to discuss the question of the origin and the finitude through the dialetics of seeing, starting with the work of greatest expression in the production of brazilian artist Arthur Bispo do Rosario.

Keywords: Arthur Bispo do Rosario. Outsider artist. Aesthetic experience. Phenomenology. Merleau-Ponty.


 

 

Considerado o ponto alto da produção de Arthur Bispo do Rosario3, o "Manto da Apresentação" desperta certo constrangimento e destoa do acervo de 806 peças, a maioria delas tem um apelo mais lúdico, como "Vitrines", "ORFAs" (Objetos Recobertos por Fio Azul) e as "Miniaturas". Os têxteis bordados - assemblages, uniformes e o "Manto da Apresentação" - têm outra densidade, e este é ainda mais dramático, possui uma latência que nos penetra.

Arthur Bispo do Rosario trajava-o em quase todas as ocasiões de sua notoriedade tardia, quando concedia entrevistas ou em fotos, e o mantinha sempre sob suas vistas. Declarava ao mundo que era impelido por sua Missão na Terra: chegada a hora, Ele, o enviado, vestiria o "Manto da Apresentação" e auxiliaria os escolhidos durante a passagem quando então se apresentaria para Nossa Senhora como seu filho. E, assim, ele teceu sua epopeia e dedicou o seu talento bordando com linha azul memórias de dor e de fé.

Confeccionado a partir de um cobertor de 118,5 x 141,2 cm e generosamente guarnecido, na face exterior, figuram a arquitetura da Colônia Juliano Moreira de grandes pavilhões, os instrumentos de ginástica, recordações de quando foi pugilista, as bandeiras dos vários países por onde viajou quando grumete da Marinha de Guerra, entre outros elementos de um passado glorioso. Essa Bayeux4 tropical é narrada em fios com os matizes da sua Japaratuba (Sergipe) dos folguedos, das missões e da tradição artesanal e quilombola. É na face interior, entretanto, que a latência é loquaz: uma quantidade considerável de nomes dos dignos de alcançar o Reino de Deus conformam um desenho espiral azulado de textura regular. É um trabalho essencialmente votivo, sacro, talvez, ritualístico. Com a ajuda de Sevcenko (1998), podemos localizá-lo no contexto do catolicismo rústico brasileiro: sujeitos à margem, flexibilizando normas e dogmas e improvisando práticas do catolicismo oficial, encontravam na fé o único modo de lidar com a crueza do capitalismo no início do século XX.

Devido ao caráter religioso do trabalho e à postura beata de Arthur Bispo do Rosario, admitimos que o artístico não é uma questão para ele. Há algo mais: suas atitudes cotidianas burlam as normas do asilo e insinuam resistência tácita, em que pulsa encoberto, mas enfático, um sentido político. Uma grande contribuição decorreu quando seu acervo veio a público, em meados da década de 1980, na matéria de Samuel Wainer Filho para o programa "Fantástico", da TV Globo. Se de um modo direto a beleza da expressão está inexoravelmente articulada à sua história e ao seu sofrimento, e sendo ela obra de uma vida que lhe foi inteiramente dedicada, o exemplo foi decisivo: deu fôlego para o movimento de abertura e reforma manicomial que vinha se avolumando. Com o impacto que a obra obteve, ganhou ainda mais corpo. Todavia, Arthur Bispo do Rosario é conhecido por deixar-nos como herança mais ilustre o legado no campo artístico. As contribuições transitam entre o terreno artístico e o político, mas, na raiz, no contexto da feitura, não há dúvida alguma sobre a vocação religiosa da obra para quem a concebeu, e, talvez por brincadeira do destino ou por fardo, carrega a missão no próprio nome. Arthur Bispo viveu os Mistérios do seu Rosário: Gloriosos ao fim, mas nem tanto no percurso. Dos seus 80 anos de vida, os 50 anos de internação foram de Dolorosos percalços de um Rosario intramuros, sob eletrochoques, jejuns e abandono.

Há 27 anos, Arthur Bispo do Rosario (1911-1989) completou sua passagem e cumpriu sua missão. Mas o potencial expressivo da obra continua inesgotável. Não pretendemos encerrar a questão, não nos sentimos capazes de dar conta de tamanha profundidade, porém, depois de alguns anos de pesquisa - pode-se dizer, de convivência com o missionário e com suas prendas -, nos sentimos responsáveis por legitimar suas declarações, se não por manifestação de fé, então por reconhecer-lhe um direito político: dar voz a quem nunca teve.

A homogeneidade dos relatos da recepção crítica na contemporaneidade é constrangedora. Negligenciando o homem, traçam comparações da obra com ícones da grande arte que em nada a corroboram. Munidos de categorias tomadas das teorias de arte, proliferam análises monocórdicas em mostras e exposições. Poucos são os que realmente atendem o que a obra exige e concedem-lhe um olhar mais generoso. A categorização não supre a produção de Arthur Bispo do Rosario. Em geral, o desavisado leitor leigo de olhar ingênuo, por seu descompromisso institucional, deixa-se conduzir pela "Passagem".

Nosso objetivo é propor um olhar que evite a ortodoxia interpretativa da crítica contemporânea. Por tratar-se de uma obra mitopoética e também por nossa perspectiva fenomenológica existencialista, acreditamos que a leitura deve sustentar-se e manter-se imbricada à vida de seu autor. Não há como conhecer uma obra de latência sem esbarrar em questões metafísicas, e essa é a base sobre a qual pretendemos circunscrever nossa interpretação.

 

Uma certa leitura

O surgimento da filosofia se deu na Grécia pré-platônica, na passagem do mithós ao logos, quando os primeiros pensadores demonstraram interesse sobre temas como o impensado, a causa primeira e o saber em si. A investigação percorreu toda a história da filosofia. Os modernos, particularmente, constituíram uma tradição de grande importância, localizada entre a filosofia de Descartes e a de Kant, que domina o pensamento e a cultura até hoje. A metafísica, ciência primeira (Abbagnano, 2007, p. 660), foi tema central da tradição moderna. Embora não seja um assunto relevante para pensadores atuais, os modernos têm sido interrogados sobre qual contribuição efetiva deram à consolidação de um saber. Merleau-Ponty, também interessado na questão epistemológica, baseou-se na filosofia husserliana, adotou a fenomenologia em sua investigação e iniciou uma disputa com a filosofia intelectualista de proposições metafísicas que enraizavam o saber em um sujeito pensante.

A fenomenologia pontyana repõe as essências na existência, não há como compreender o homem e o mundo senão por sua facticidade (Merleau-Ponty, 2006). Trabalha com a descrição direta do mundo, recusando a causalidade justificada por meio de análises, de reflexões e de postulados científicos prévios. Ressalta o contato ingênuo do sujeito com o mundo, pois todo conhecimento que se tem do mundo é alimentado pela frequentação, pela sua experiência no mundo percebido. O conhecimento científico - e certo conhecimento de arte - é um meio de fixar ou objetivar, construído sobre o mundo vivido. Mas o mundo já estava aí antes mesmo de lançarmos a primeira conjectura a seu respeito; o conhecimento que dele advém é sua expressão. Para que possamos compreender o objeto, devemos considerar uma operação criadora que participe da facticidade do irrefletido integralmente, e não apenas sob a relação com um objeto de pensamento, porque não há reflexão que dê conta de todo pensamento e de todo conhecimento do mundo. No cartesianismo, o sujeito que pensa constitui um mundo pensado e tudo que lhe é externo é objeto de pensamento. No kantismo, o outro é representado ou dado aos sentidos como uma afecção. Ao separar sujeito e objeto, a tradição filosófica moderna acata o outro como potencial objeto.

Fundar as percepções em representações não supre a complexidade da realidade perceptiva. A representação é construção intelectualista, por outro lado, a percepção é tomada de posição, funda os atos que nela estão pressupostos. O mundo pontyano não é meramente físico mas, sim, uma unidade de valor da qual participamos integrando o uno, o indivisível (Merleau-Ponty, 2006). Seria muito producente se, nas leituras da obra de Arthur Bispo do Rosario, na questão da alteridade - tema transversal mas obrigatório - observasse a abertura que Merleau-Ponty nos propõe. No entanto, em muitas das ocorrências, é na categorização e na normalização que essa obra tem encontrado acolhimento, em análises reflexivas que desprezam o problema do outro e o problema do mundo. O cartesianismo admite um sujeito e o mundo que ele pensa, o objeto de pensamento é verdade universal, não há espaço para o outro que vive em mim, para o eu que vive no outro ou para ambos no mundo. Eis a divergência radical entre o cogito cartesiano e o pontyano: Des-cartes admite um para-si e cada um de nós para Deus, mas em Merleau-Ponty (2006) a dialética do Ego e do Alter é definida em situação, revelando o sujeito como ser no mundo. Alcançar um estado de consciência integral nunca será uma experiência total, no sentido de uma completude, estamos no mundo e não somos seres absolutos, nosso pensamento é consonante com o fluxo temporal. Jamais haverá um pensamento que dê conta de todo pensamento existente, a menos que lancemos mão do conforto das categorias e condicionamentos, como certas interpretações de obras de arte. Merleau-Ponty sugere recuo: nos afastarmos das evidências lógicas, e nos admirarmos do mundo. A perspectiva fenomenológica valoriza a unicidade de cada experiência em um comportamento ímpar - eu e minha leitura de certa obra de certo autor; em relação às coisas - a obra de certo autor e sua experiência vivida; em relação ao tempo - a obra de certo autor, sua experiência vivida e suas (re)apresentações mnemônicas. Enfim, dar forma pessoal e intransferível ao mundo. A compreensão deve ser global, explorada sob todas perspectivas, dados e pontos de vista. Tudo é parte de uma mesma estrutura e resguarda um sentido no todo, levado a termo pela percepção. Ela é o fundo da experiência obtida naquele espaço e tempo pontual, plasmada por todos os espaços e tempos, precedentes e sucedentes. Ela atinge o objeto e ambos se constituem reciprocamente: o objeto e a percepção dele no mundo.

Dizer que o sujeito existe, que ele tem um mundo ou que é para um mundo, não significa que ele tenha percepção ou consciência objetiva desse mundo, não há um sentido total a ser possuído. A sua situação imediata é convite a um reconhecimento corporal voltado para uma abertura:

Na realidade, os próprios reflexos nunca são processos cegos: eles se ajustam a um "sentido" da situação. [...] O reflexo não resulta de estímulos objetivos, ele se volta para eles, investe-os de um senti-do que eles não receberam um a um e como agentes físicos, que eles têm apenas enquanto situação. [...] O reflexo, enquanto se abre ao sentido de uma situação, e a percepção, enquanto não põe primeiramente um objeto de conhecimento e enquanto é uma intenção de nosso ser total, são modalidades de uma visão pré-objetiva que é aquilo que chamamos de ser no mundo. (Merleau-Ponty, 2006, pp. 118-119)

Merleau-Ponty entende que o corpo não é um objeto, uma coisa. A vivência do corpo próprio nada tem a ver com o pensamento que lhe dedicamos ou sistematicamente construímos por meio de conjecturas. O corpo do outro ou, até mesmo, o meu próprio corpo, só há um modo de conhecê-lo: vivendo-o de forma a assumir o drama que me atravessa e confunde meu corpo. Essa experiência nos revela um modo de existência ambíguo, exigido pela condição temporal do ser; é experiência intermitente, pois a cada presente apreende a totalidade do tempo possível, em um horizonte de passados imediatos e de futuros próximos conferindo-lhes sentido, reintegrando-os à existência pessoal. A vida é fixada a cada presente que passa pela totalidade do ser e preenche um átimo de consciência. O tempo nunca nos deixa inteiramente livres: "O que nos per-mite centrar nossa experiência é também o que nos impede de centrá-la absolutamente, e o anonimato de nosso corpo é inseparavelmente liberdade e servidão. Assim, para nos resumir, a ambiguidade do ser no mundo se traduz pela ambiguidade do corpo, e esta se compreende por aquela do tempo" (Merleau-Ponty, 2006, p. 126). Para ilustrar o argumento, o filósofo exemplifica com o caso de um indivíduo que tem a sensação em seu membro amputado, o braço não é mera rememoração, é quase-presença.

Ao assumir o corpo como objeto de pensamento, o intelectualismo o torna simples conjunto de processos em terceira pessoa - explicando-o pela fisiologia do movimento, da visão, da sexualidade etc. Mas logo descobrimos que inexiste conexão causal entre eles e deles com o mundo, pois todas as funções estão imiscuídas em um único drama. A convicção pontyana não tem sentido idealista, porque não nega a realidade objetiva do corpo, ao contrário, adensa a objetividade desse conjunto de fenômenos em que o corpo consiste, procurando definir tais fenômenos em termos de possibilidades, de experiências. O ser no mundo não pode ser entendido como um conjunto de reflexos, mas como energia de pulsão, de existência, e essa é a razão pela qual ele se distingue de qualquer processo em terceira pessoa - rex extensa -, bem como de todo conhecimento em primeira pessoa - cogitatio.

Equilibrando-se nos vãos, nas estrias, Merleau-Ponty recusa a imanência - ênfase no objeto -, denegando também a transcendência - ênfase no sujeito. Nem imanência, nem transcendência: o sentido está no porvir, a partir de uma abertura que nos oferece coisas em situação: sujeito em situação com objeto, em situação com o sujeito, ambos no mundo e, ainda, sujeito em situação com sujeito na confluência das experiências, intransigente intersubjetividade. A garantia do surgimento de uma expressão do calibre da obra de Arthur Bispo do Rosario está na medida de nossa implicação, de nosso modo peculiar de existir. Sem esse ônus não se alcança o privilégio da expressão.

Em linhas gerais, essa é nossa posição em relação à obra de arte como realização de uma verdade (Merleau-Ponty, 2006). A expressão do "Manto da Apresentação" está na corporeidade, evidente na modelagem de talhe antropométrico e em certa vocação religiosa, que se insinua em sua constituição antropomórfica. Nosso esforço e nossa contribuição são a convicção de uma atitude respeitosa em face da exigência silenciosamente interposta para a obra que nos conceda seu segredo, para que possamos penetrá-lo e dar-lhe vida. Obviamente uma vida que não lhe seja alheia, nem sobreposta, mas que a percorra e observe um "(per)fazer" (Pareyson, 1984) que, ao fim, vai abandoná-la (per)feita.

 

Antropometria e antropomorfismo5 - entre a imanência e a transcendência

Investigar a etimologia da palavra religião não é tarefa simples, é assunto prolífico, mas não vamos nos demorar no tema, pois não é nosso objetivo primeiro. Basta-nos uma breve incursão. Segundo Cícero (106-43 a.C.), religião deriva de relegere, referência àqueles que cuidadosamente reliam escrituras sagradas e cumpriam com todos os atos do culto divino - os religiosos. A ênfase recai sobre o caráter repetitivo e intelectual da prática. Porém, tanto Lactâncio (240-320 d.C.) quanto Santo Agostinho (354430 d.C.) defenderam que a procedência de religião é religare, religar, a religião cumpriria o papel de consolidar o laço de piedade que conecta os seres humanos a Deus (Abbagnano, 2007, p. 8-r).

O "Manto da Apresentação" parece suprir a exigência de um instrumento apto para pactuar um laço com o divino e corroborar a missão para a qual o beato viveu: no Dia do Juízo Final, Arthur Bispo do Rosario iria trajá-lo e cumprir seu desígnio. O "Manto da Apresentação", portanto, atualiza o sentido de relegere. O autor dedicou cuidado e atenção aos desígnios de Deus e à escritura sagrada, que figura de modo tácito e explícito, primeiramente, em observação ao Dia do Juízo, que se insinua na espiral de nomes no interior da veste, mas também no respeito aos dogmas, bordados em outras obras, como nas assemblages e nos estandartes. O sentido de religare é igualmente invocado. Os nomes daqueles que mereceriam ser salvos, bordados na face interior da peça, além de atestar sua ciência sobre a vontade do criador, explicita, ainda, um gesto de clemência: implora piedade divina à dimensão terrena. No momento em que fosse trajado, Arthur Bispo do Rosario efetivaria a conexão com a dimensão celeste. O "Manto da Apresentação" é um instrumento para firmar - ou resgatar - o laço entre os homens e Deus. A questão corpórea está, então, direta e implicitamente envolvida. Um vínculo é "religado" no ato de trajar uma antropometria e "relido", em razão do antropomorfismo que Arthur Bispo do Rosario imprime ao bordar a escritura na confecção das peças. O aspecto dessa obra que mais nos constrange, nos assalta, é a relação que se impõe entre a antropometria e o antropomorfismo. Não obstante o traje seja habitado por legiões de mortais que clamam por salvação, e que recubra o corpo ainda encarnado do enviado, somos levados a admitir que, paradoxalmente, o "Manto da Apresentação" é um "volume portador de vazio" (Didi-Huberman, 2010).

Didi-Huberman (2010) diz que a visão se choca com os volumes, como o de um corpo, objeto primevo de conhecimento e de visibilidade. Mas um corpo é também uma coisa potencialmente a ser tocada, um obstáculo contra o qual se pode chocar. Vimos com Merleau-Ponty (2006) que a compartimentação dos sentidos é um equívoco, que o ser no mundo não é só o resultado de reflexos, mas pulsão; tal qual o ver não é só o resultado das constatações científicas sobre o fisiologismo. De todas as coisas vistas, todas "vivem" em mim. Assim, o ato de ver se abre em dois, uma cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que é visto e, invariavelmente, o que é visto também nos olha. A partir dessa inelutável e paradoxal modalidade do visível, surge uma travessia física que "passa" através dos olhos e atinge o pensamento. O olhar "envolve, apalpa, esposa as coisas visíveis" (Merleau-Ponty, 2009, p. 130). Há entre as coisas uma espécie de pacto, uma harmonia anterior, preestabelecida:

É preciso que, entre a exploração e o que ela me ensinará, entre meus movimentos e o que toco, exista alguma relação de princípio, algum parentesco [...], iniciação e abertura a um mundo tátil. Isso só poderá acontecer se, ao mesmo tempo que sentida no interior, minha mão também for acessível por fora, ela própria tangível, por exemplo, pela outra mão, se tomar lugar entre as coisas que toca, sendo, em certo sentido, uma dentre elas, abrindo-se, enfim, para um ser tangível de que também ela faz parte. Por meio desse cruzamento reiterado de quem toca e do tangível, seus próprios movimentos se incorporam ao universo que interrogam, são reportados ao mesmo mapa que ele; os dois sistemas se aplicam um sobre o outro como as duas metades de uma laranja. O mesmo acontece, dizem, aproximadamente, com a visão, embora aqui a exploração e as informações que recolhe não pertençam "ao mesmo sentido". Mas é grosseira essa delimitação dos sentidos. Já no "tocar" acabamos de encontrar três experiências distintas que se subentendem, três dimensões que se recortam, e que todavia são distintas: um tocar o liso e o rugoso, um tocar as coisas - um sentimento passivo do corpo e de seu espaço - e enfim um verdadeiro tocar o tocar, quando minha mão direita toca minha mão esquerda apalpando as coisas, pelo qual o "sujeito que toca" passa ao nível do tocado, descendo às coisas, de sorte que o tocar se faz no meio do mundo e como nelas. (Merleau-Ponty, 2009, p. 130)

O ver é uma ampla implicação, pensado ou provado em uma experiência que subentende o tocar, o visível é moldado no sensível e o ser tátil está implicado com a visibilidade. Em outras palavras, há imbricação e cruzamento (Merleau-Ponty, 2009, p. 131).

Entre as coisas que diante de nós se constituem como um obstáculo e contra as quais nos chocamos, apenas algumas se deixam atravessar. É o que ocorre, por contraste, com uma parede ou com uma grade através da qual passamos nosso braço ou nosso corpo, uma coisa dotada de vazios, de cavidades: "[...] quando vemos o que está diante de nós, por que uma outra coisa sempre nos olha impondo um em, um dentro?" (Didi-Huberman, 2010, p. 30). Para responder, o filósofo inspira-se na experiência de uma passagem do romance Ulysses, de James Joyce, que nos propõe fecharmos os olhos para ver. No romance, o personagem está com a mãe no seu leito de morte e a ouve sussurrar algo indecifrável "entre seu olho e sua orelha" (p. 34). O personagem joyciano ficará para sempre fisgado pela dor de quem o proveu e que, diante dele, desapareceu após o último sussurro de agonia. Uma morta olhará para ele, e passará a turvar sua visão para sempre. Eis, portanto, uma modalidade do visível contra a qual não se pode escapar, inelutável: "um trabalho de sintoma no qual o que vemos é suportado por (e remetido a) uma obra de perda. Um trabalho do sintoma que atinge o visível em geral e nosso próprio corpo vidente em particular. Inelutável como uma doença. Inelutável como um fechamento definitivo de nossas pálpebras" (Didi-Huberman, 2010, p. 34). Ao fechar os olhos para ver, surge uma abertura para experimentar o que não vemos e/ou não mais veremos apesar de uma evidência visível, a coisa nos olha como uma perda. O que está em questão é a dialética da origem (nascimento) e do destino (morte).

Outro aspecto que Didi-Huberman aponta é que a experiência corriqueira do que vemos nos impele ao ensejo de ter - ver insinua a impressão de ganhar algo. Em italiano o verbo ver é guardare, tomar algo para si sob o jugo de um olhar. Mas há ocasiões em que o ver sustenta algo que nos escapa. Ao ver experimentamos a perda (não ter), e essa inelutável modalidade do visível é, de fato, uma questão de ser. O vazio está submetido, portanto, a uma "coerção ontológica medusante" (Didi-Huberman, 2010, p. 32), tudo que se apresenta a ver está traspassado pelo vão. Em Joyce, a perda da mãe, cujo olhar no leito de morte persegue o personagem, "a partir daí, é todo o espetáculo do mundo em geral que vai mudar de cor e ritmo" (Didi-Huberman, 2010, p. 32).

A tensão entre volume e vazio surge de situações intensas, dramáticas, como diante de um túmulo sobre o qual depositamos nosso olhar. O que vejo no túmulo é a evidência de um volume que rouba de sua face o mundo dos objetos modelados, da arte, do artefato. O que me olha em tal situação não se apresenta mais como flagrante, é o oposto: uma espécie de esvaziamento e que não tange mais o mundo do artefato ou do simulacro, mas um esvaziamento que diante de mim se impõe, um volume portador de vazio, uma forma que nos olha (Didi-Huberman, 2010). O destino de um corpo, semelhante ao meu, esvaziado de vida e do poder de dedicar seu olhar a mim, interroga-me e, paradoxalmente, num certo sentido me olha - no sentido da perda. O que diante de nós se exibe, porta o traço de uma semelhança que nos escapa: a semelhança a Deus que no pecado se perdeu.

Diante de um túmulo, a experiência com essas imagens é diretamente coagida, submetida ao que o túmulo quer dizer. Diante de um túmulo, nenhum olhar se sustenta: nem o olhar idealista do esteta, puro amador que frui a obra no museu, nem o olhar pragmático, douto ou especialista, para quem a obra é objeto de investigação. O túmulo nos olha até as entranhas e, desse modo, perturba nossa capacidade de vê-lo, simplesmente, pois grita para mim que perdi esse corpo que ele guarda no interior de seu volume.

Há duas atitudes temerárias que o volume e o vazio do túmulo despertam: "permanecer aquém da cisão" (Didi-Hubermnan, 2010, p. 38) ou manter-se "para além da cisão aberta pelo que nos olha no que vemos" (Didi-Hubermnan, 2010, p. 40). A primeira é imanente - no léxico pontyano sobre a tradição intelectualista, a ênfase recai sobre o objeto -, está restrita ao que é visto, nada mais há que nos olha; é a firme decisão de permanecer dentro dos limites de um volume visível, rejeitando o resto, relegando-o à invisibilidade sem nome. Essa atitude denega o cheio; o volume que diante de nós se apresenta está pleno de algo semelhante a nós, mas sem vida, impregnado de angústia por um destino semelhante que nos espreita. Mas é uma postura que denega também o vazio, nos aloja no conforto das arestas discerníveis do volume, em sua formalidade lógica, previsível e controlável. É a vitória da linguagem sobre o olhar, na afirmação completa, pronta, de que temos um volume, e só. Ao recusar as latências de um objeto, recusa-se sua temporalidade, o trabalho que o tempo, a memória e a obsessão do olhar levaram para talhá-lo. Sustentando a indiferença calculada ao que está abaixo, a presença velada recusa-se à aura do objeto.

A segunda atitude, transcendente - ênfase no sujeito pontyano -, simula a aniquilação da angústia diante do túmulo, decisão de manter-se "para além da cisão aberta pelo que nos olha no que vemos, consiste em querer superar imaginariamente tanto o que vemos quanto o que nos olha" (Didi-Huberman, 2010, p. 40). Se, por um lado, o volume perde sua evidência material (peça de granito, geométrica, pesada etc.), por outro, o vazio (da morte) perde seu poder de constrangimento diante do esvaziamento de alguém ou iminência do próprio esvaziamento. É um modelo fictício em que volume e vazio, corpo e morte, são reordenados e subsistem na ilusão, na construção de um sonho acordado. Ao contrário da atitude precedente, o que está em questão aqui é a denegação do cheio:

Nada, nessa hipótese, será definitivo: a vida não estará mais aí, mas noutra parte, onde o corpo será sonhado como permanecendo belo e bem-feito, cheio de substância e cheio de vida - e compreende-se aqui o horror do vazio que gera uma tal ficção -, simplesmente será sonhado, agora ou bem mais tarde, alhures. É o ser-aí e a tumba como lugar que são aqui recusados pelo que são verdadeiramente, materialmente. (Didi-Huberman, 2010, pp. 40-41)

Desse modo, o ver se torna um exercício da crença, verdade invocante, etérea e autoritária. A linguagem triunfa sobre o olhar, transmutada em dogma, o volume está eclipsado e o esvaziamento carrega "algo de Outro" (p. 41), confere um sentido metafísico. A substância com a qual se preenche o vazio é a de um invisível a prever, ultrapassando a angústia com a promessa de um paraíso messiânico. A recusa é simétrica à precedente, a outra face da moeda. Didi-Huberman (2010) afirma que a tradição cristã fez de sua arte túmulos esvaziados de seus corpos e esvaziados de sua capacidade esvaziante, angustiante. O modelo é o Cristo que abandona o túmulo e desencadeia o infindável processo de crença (Didi-Huberman, 2010, pp. 41-42). A respeito do episódio da ressurreição, São João diz que acreditou porque viu, no entanto, o que ele viu não foi mais que alguns panos brancos e uma cavidade de pedra. Esse vazio de corpo desencadeou para sempre uma dialética da crença a partir de uma aparição de nada, pontuada somente por indícios de um esvaziamento. Basta crer, nada há para ver.

Em suma, o domínio infinitivo do olhar metafísico subjuga as efígies fúnebres a duplicarem-se de outras imagens que evocam o Juízo Final em um tempo eterno no qual todos os corpos novamente se erguerão sob o olhar de um juiz supremo. A crença então se impõe a ver e impõe o ver duplamente: o túmulo vazio e a inexorável angústia decorrente e o túmulo vazio de um Deus morto e ressuscitado, ambos rivalizando um estratégico jogo de contrários.

 

Imbricamento, implicações e decorrências

À parte o caráter alienante dessa rede da qual dificilmente se escapa, o que se pode abstrair da atitude da crença é um movimento obsessivo, insistente de reelaboração da ficção temporal. É um tempo que se reinventa diante da tumba porque é rechaçado com pavor: a materialidade do estojo mortuário e sua vocação de caixa que retém a perda de um ser, guarda um corpo perdido que para sempre se ocupará de seu próprio desfazimento, como o personagem de Joyce, fisgado pela dor de alguém que o proveu e que, diante dele, desapareceu após o último sussurro de agonia entre seu olho e sua orelha. Em outras palavras, uma obra de perda põe em tensão origem e destino, vida e morte.

O "Manto da Apresentação", traje do Dia do Juízo, é o túmulo de pano, o guardião da morte, mas é também o guardião da vida, do (re)surgimento pela ressurreição da carne. Porém, quem o traja ainda vive e pretende que seja uma vida eterna. Ao vestir o sudário, ele põe em obra a cisão entre a estatura - volume antropométrico - e o túmulo - antropomórfico, receptáculo paradoxal "cheio x vazio", "presença x ausência". Outro constrangimento é a presença-ausente daqueles que tiveram seus nomes bordados no interior da veste, cúmplices do expectador, compartilham a inexorabilidade da finitude humana, com o agravante de que este sequer goza do privilégio da guarda do beato.

Duas vezes latências recusadas. Primeiro, o homem da tautologia inverte ao limite o processo fantasmático do homem da crença, elimina qualquer indício de temporalidade fictícia, permanece no tempo presente do visível. Se mantém dentro dos limites físicos do que é visto, como boa parcela da recepção crítica de arte que perverte a máxima de Joyce: "fechamos os olhos para ver" aquilo que não vemos - por inépcia ou por conveniência -, e também o que não mais veremos: a morte sempre nos espreita!

O vazio se impõe particularmente em situações dramáticas que exigem vazão, como o dilema da finitude. Nesses casos, a imagem "rouba" sua face do mundo dos objetos formalmente conexos e o "vazio" não é mais evidência, ao contrário, é ausência. Diante do vazio, o olhar leigo - também o douto - se dobra à coação.

Para o segundo polo, que figura encontrar para a atitude da crença? O que concluir dessas duas atitudes diante do túmulo? Arthur Bispo do Rosario toma objetos repletos de latências e os emprega em um rito de transcendência. Por sua condição asilar, a realidade das coisas materiais - aspecto formal da obra - é horizonte de concretude e pertencimento a um estatuto nobre e ético que burla a miséria cotidiana. A visualidade se faz ainda mais contundente quando ele preserva um elemento descritivo, textual incorporado à obra como elemento formal-plástico.

A cada ponto bordado, surgem estrias que estabelecem um "ver segundo" ou "ver com", como uma fronteira simbólica entre duas realidades vividas (Escoubas, 2005). Não se trata da reprodução do real, mas das condições de visibilidade nos dados contextos. De modo inusual, Arthur Bispo do Rosario perverte a ordem lógica tradicional das coisas, e imprime seu estilo. Transpõe barreiras do tempo e do espaço e nos desafia a sairmos do conforto das conjecturas fáceis. Bispo reinterpreta e expressa, e nós a ele, são incursões infindáveis, visitas à alteridade, que sempre se reinventa. Seria o "Manto da Apresentação" um objeto votivo ou artístico? Não temos a resposta. E quem de nós, finitos que somos, se aventura à infinitude desse Mistério Glorioso?

 

REFERÊNCIAS

Abbagnano, N. (2007). Dicionário de filosofia. (I. C. Benedetti, trad.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Didi-Huberman, G. (2010). O que vemos, o que nos olha. (P. Neves, trad., 2ª ed.). São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Escoubas, E. (2005). Investigações fenomenológicas sobre a pintura. Kriterion, v. 46, n. 112, 163-173. Recuperado em 15 set. 2012, da SciELO (Scientific Eletronic Library On Line): <http://www.scielo.br>         [ Links ].

Hidalgo, L. (1996). Arthur Bispo do Rosario, o senhor do labirinto. Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (2009). O visível e o invisível. (J. A. Gianotti & A. M. d'Oliveira, trad.). São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

______. (2006). Fenomenologia da percepção. (C. A. R. de Moura, trad.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Pareyson, L. (1984). Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Sevcenko, N. (Org.) & Novais, F. A. (Coord.). (1998). História da vida privada no Brasil (Vol. 3). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Tapisserie de Bayeux. Recuperado em 8 abr. 2016: <http://www.tapisserie-bayeux.fr/>         [ Links ].

 

 

Endereço para correspondência:
SOLANGE DE OLIVEIRA
Rua Apinagés, 930/88
05017-000 - São Paulo - SP
tels.: 11 98404-7225 / 11 3868-3886
sololiveira@usp.br

Recebido 09.04.2016
Aceito 30.04.2016

 

 

1 Os Mistérios do Rosário dividem-se em Gozosos, Dolorosos, Gloriosos e Luminosos. Os Dolorosos são: Agonia de Jesus no Horto; Flagelação de Jesus; Coroação de Espinhos; Jesus carregando a cruz no caminho do Calvário; e Crucifixão e morte de Jesus. Os Gloriosos: Ressurreição de Jesus; Ascensão de Jesus ao Céu; Vinda do Espírito Santo sobre os Apóstolos; Assunção de Maria; e Coroação de Maria no Céu. Fonte: sítio do Vaticano: http://www.vatican.va.
2 Este artigo é parte integrante da tese de doutoramento Arte por um fio - mitopoética nas obras têxteis de Bispo do Rosario e de Judith Scott: um estudo no campo da recepção crítica, desenvolvida junto ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo com o apoio da Agência Capes.
3 Arthur Bispo do Rosario sem acento, conforme estabelecido pela biógrafa (Hidalgo, 1996).
4 A Tapisserie de Bayeux tem 70 m de comprimento por 50 cm de altura e pesa 350 kg. Foi encomendada por Guilherme, o Conquistador, por ocasião da Batalha de Hastings, em 1066, o tema da tapeçaria. Bayeux está registrada na Unesco.
5 "Indica-se com este nome a tendência a interpretar todo tipo ou espécie de realidade em termos de comportamento humano ou por semelhança ou analogia com esse comportamento. 'Crenças antropomórficas' ou 'antropomorfismos' são chamadas, em geral, as interpretações de Deus em termos de conduta humana". (Abbagnano, 2007, p. 68).

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