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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.62 São Paulo ago./dez. 2016

 

EM PAUTA | CORPO REFLEXIVO: O EU E O OUTRO

 

Robert Mapplethorpe: corpo em exposição1

 

Robert Mapplethorpe: body in exhibition

 

 

Luciana Bertini Godoy

Psicanalista, doutora em psicologia social da arte pelo Instituto de Psicologia - USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo de uma cena presenciada na exposição Mapplethorpe, que ocorreu em São Paulo em 1997, o artigo pretende lançar uma reflexão sobre a obra do artista, especialmente sobre a recepção de suas imagens pelo público médio. Para isso, recorre a diversos autores (Celant, Fabris, Danto) que discutem essa obra sob diferentes perspectivas, como ferramentas que permitem adentrar a questão de interesse principal: como é possível que imagens de homens e mulheres, nus ou seminus, em situações explícitas de sadomasoquismo e homossexualismo, tornem-se invisíveis na exposição que as reúne justamente para mostrá-las?

Palavras-chave: Fotografia. Mapplethorpe. Recepção estética. Psicanálise.


SUMMARY

Starting with a scene witnessed in the exhibition Mapplethorpe, which took place in São Paulo in 1997, the article intends to reflect on the artist's work, especially on the aesthetic reception of his images by the average public. Several authors (Celant, Fabris, Danto) discuss this work under different perspectives and allow us to penetrate to the question of main interest: how is it possible that images of naked or half-naked men and women, in explicit sadomasochistic and homosexual activities, become invisible in the exhibition that unites them exactly to show them?

Keywords: Photography. Mapplethorpe. Aesthetic reception. Psychoanalysis.


 

 

Na exposição...

Em 1997, o Museu de Arte Moderna de São Paulo sediou Mapplethorpe, uma retrospectiva do fotógrafo affmericano que teve grande destaque na mídia e recorde de público naquele ano, com cerca de 25 mil espectadores. A exposição contou com 157 obras do artista (MAM, 1997), reunindo as principais imagens de seus temas mais trabalhados: retratos de celebridades, flores, homens e mulheres nus ou seminus em cenas que explicitam fetiches e práticas homo/bissexuais, imagens que, em algumas ocasiões, nos Estados Unidos e na Europa, foram impedidas judicialmente de serem expostas.

Minha própria visita à exposição foi marcada por uma cena que inspirou esta reflexão2: uma moça caminhava sem pausas, observando as fotografias, quando se aproximou de Bill, NYC (1976)3, um tríptico composto por um espelho e, em suas laterais, duas fotografias; cada uma era a imagem de um homem, com o recorte da mão no pênis ereto. A moça passou pela primeira imagem, parou em frente ao espelho, arrumou um pouco o cabelo e continuou caminhando sem mais pausas, até onde pude observar.

Em um primeiro momento, achei engraçado; mas logo se seguiu um constrangimento, como se houvesse presenciado indevidamente um instante de privacidade. Não demorou para eu compreender que aquela situação expressava o que toda a exposição me provocava: algo em torno do constrangimento, da admiração e da curiosidade. A beleza das formas retratadas quase se destacava de seu conteúdo e, por um instante, suspendi a perplexidade e fruí aquelas imagens como se estivesse sozinha com elas, só para admirá-las. Porém, logo o "salão se povoou" novamente, já não estava sozinha e sentia dificuldade de fazer contato com aquelas obras. O olhar que buscava a imagem também se perdia dela. Teria eu percebido algo parecido naquela moça, uma oscilação do olhar, ainda que displicente, em busca de algo que pudesse ser visto?

 

Na psicanálise...

Certamente, meu interesse não reside nas conjecturas que poderiam ser levantadas acerca das motivações conscientes ou inconscientes daquela moça. Tampouco interessa ilustrar aplicações da psicanálise ao cotidiano, com vistas a comprovar, mais uma vez, a validade e atualidade de certos conceitos, nesse caso, a repressão, as perversões, arte como sublimação etc. Tal atitude revelaria uma prática grosseira da chamada psicanálise aplicada, ou seja, quando é utilizada como um saber que se debruça sobre qualquer objeto (desde um paciente no consultório até outros campos do conhecimento) sem levar em conta suas especificidades, isto é, quando aplica sobre o objeto seus conceitos e interpretações, mantendo com ele uma relação de externalidade.

De que modo, então, é possível estabelecer um diálogo entre a psicanálise e o campo da cultura, em especial o da arte, de forma que as contribuições de cada campo possam expandir e transformar, mas não violar, a experiência e o conhecimento próprios a cada um? É João Frayze-Pereira (2010) quem me ajuda a tecer esta conversa. Em seu livro Arte, dor: inquietudes entre estética e psicanálise, considera a proximidade entre a experiência estética e a experiência psicanalítica, assinalando que ambas exigem "uma silenciosa abertura ao que não é nós e que em nós se faz dizer" (2006, p. 38). Trata-se de uma disposição à abertura ao desconhecido, ao outro, ao qual não tenho qualquer acesso a não ser que me deixe tocar e dizer pelo outro para que dele eu possa ter uma experiência. Essa é minha busca quando estou com um paciente; desse mesmo lugar, me abri àquela exposição, procurando ouvir em mim as reverberações daquelas imagens e acontecimentos para que deles eu pudesse/tentasse me aproximar. Nos termos da minha própria experiência, acabo por delinear o lugar de onde me posiciono para pensar a exposição Mapplethorpe: encontro-me implicada com meu "objeto", inseparável dele - mas não fundida com ele -, deparando-me com a necessidade de considerar os efeitos desse objeto sobre mim e é desse processo que poderá resultar qualquer conhecimento. Nos termos de Frayze-Pereira, procuro realizar a "psicanálise implicada", buscando no objeto e criando a partir dele os meios (conceitos, teorias) pelos quais a interlocução deverá se fazer. Nessa perspectiva, sujeito e objeto estão internamente implicados, resultando desse encontro um discurso singular, posto que originado de uma relação específica e também singular.

No prefácio de Arte, dor..., Jacques Lenhardt contextualiza a perspectiva adotada por Frayze-Pereira, esclarecendo que ele "escolheu posicionar seu olhar na direção das relações que se estabelecem entre os humanos e as formas de arte" (2010, p. 15). Que lugar é esse? É o que acontece entre o artista e a obra, o primeiro buscando dar forma, constituir e reconhecer seu mundo na obra; esta, por sua vez, devolvendo-lhe, de forma ampliada, os questionamentos que lhe deram origem. O autor estende essa relação inserindo a figura do espectador, abarcando também o campo da recepção estética. Se a obra tem algo a dizer, também o espectador lhe devolve os questionamentos advindos de seu próprio mundo, continuando o diálogo iniciado no ato da criação e perpetuando a existência da obra de arte como um poderoso símbolo humano. E como se dá esse diálogo, tanto no campo da criação como no da recepção? Lenhardt continua: "É Winnicott quem lhe mostra o caminho: a obra abre um espaço de experiência em que se articulam paradoxalmente, constitutivamente, o sujeito psicológico e o mundo" (2010, p. 16). Na transicionalidade, vivi aquela experiência no museu. Tento agora expandi-la em conhecimento.

 

A questão

Para uma primeira aproximação da obra de Robert Mapplethorpe (1946-1989), recolho alguns relatos da crítica jornalística da época acerca da recepção pelo público da exposição no MAM. Expressões como a de Fioravante, "A exposição mais polêmica do ano" (1997); ou de Chiodetto, ao mencionar o "controverso fotógrafo norte-americano" (1997), deram o tom das críticas e apresentações. Em entrevista a Celso Fioravante, Germano Celant, crítico e curador da exposição, comentou suas expectativas com relação à reação brasileira à mostra de Mapplethorpe. Comparando com o conservadorismo moral vigente, por exemplo, na Inglaterra, onde a exposição havia gerado fortes polêmicas, ele disse: "Me parece que a cultura brasileira é uma cultura aberta, que pelo que conheço, é muito aberta e livre. É muito interessada no corpo, por um prazer estético e sensual. Acho que encontrará felicidade na mostra" (1997). Será que encontrou?

Erika Palomino observou os visitantes na noite de abertura e alguns comportamentos chamaram-lhe a atenção. Poucos se aproximavam das obras que explicitavam genitálias masculinas e situações homossexuais, concentradas em uma área da exposição. "Na confusão do vernissage de abertura, alguns nem chegavam a olhar essa parte de perto" (1997).

Já no último dia da mostra, Eder Chiodetto escreveu sobre a "passividade do público brasileiro diante das imagens de Mapplethorpe" (1997), comparando com americanos e europeus que protestaram e exigiram proibição das fotos mais impactantes. Levantou duas hipóteses: a primeira, de raiz cultural, faria eco às expectativas de Celant e consideraria o fato de "sermos me-nos moralistas quando o tema é sexualidade", o que permitiria que absorvêssemos "mais facilmente as manifestações do corpo físico, como acontece no Carnaval, por exemplo". A segunda seria a perda do valor de denúncia e contestação que essa obra teve nos anos 1980, quando se tornou um dos ícones americanos da luta contra a AIDS.

Se num dado momento sua obra foi fundamental para explicitar as obsessões e os desejos do corpo, utilizando o microcosmo dos guetos nova-iorquinos como metáfora do nosso inconsciente, hoje, ao se tornar objeto de arte, exposto em museus ou utilizado em peças publicitárias, perde sua pulsão mais virulenta para se transformar em mostra de exotismos.

Enquanto Palomino aponta o constrangimento e a recusa de alguns visitantes de se aproximar de certas obras, Chiodetto chama a atenção para a passividade e a externalidade ("mostra de exotismos") com que os espectadores pareciam se relacionar com as imagens de Mapplethorpe. Eles também identificaram entraves, negações, incômodos e hesitações na relação do público com a obra.

À hipótese cultural e àquela que supõe o desgaste da obra em sua potência questionadora de uma época, como fatores que dificultam o trabalho de recepção das imagens de Mapplethorpe pelo público, soma-se outra interpretação, desta vez numa abordagem mais psicológica e social.

Fernando Azevedo (s/d) parte do reconhecimento de um certo "estranhamento" causado pela exposição no MAM, e busca compreender a origem dessa sensação tanto na obra quanto no espectador. Para ele, a obra de Mapplethorpe requer "uma espécie de reeducação do olhar, em busca de uma articulação mais profunda entre o olhar, o sentir e o pensar". E o olhar que necessita ser reeducado foi construído juntamente com as bases ideológicas da sociedade ocidental, que se serve da cisão entre o olhar, o sentir e o pensar como forma de evitar que venham à luz "as contradições da psicologia e da moral burguesa". Por esse motivo, "Mapplethorpe parece querer provocar no leitor uma insatisfação, uma angústia, um medo à medida que sua obra não favorece um olhar-se no espelho", e sim um olhar sobre si como alguém que olha, sente e pensa sobre e a partir do seu entorno.

Uma vez compartilhado este "estranhamento" provocado pela obra de Mapplethorpe ou este quase impedimento de se relacionar com ela, ou parte dela, parece agora ser possível transformar a pura inquietação na formulação de uma questão de interesse, cuja exploração busca ampliar os canais de contato com essa obra, senão uma melhor compreensão dessa dificuldade.

Seja pela exuberância, seja pela beleza ou pela aversão que despertam, as imagens de Mapplethorpe não poderiam passar despercebidas. O corpo perfeito, exótico, remete ao estranho, ao não familiar, ao incomum para olhos acostumados ao cotidiano; provoca uma curiosidade hesitante, que ao mesmo tempo atrai e repele o olhar. No entanto, sim, suas imagens podem passar despercebidas. Por quê? Com que força elas invadem o universo de valores morais, sexuais, os mais íntimos do espectador? Essa "colisão" seria capaz de impedi-lo de fazer contato com essa obra, permanecendo, de um lado, o que é proposto visualmente pelo artista, e, de outro, aquilo com o que o público médio é capaz de se relacionar?

 

A obra de Mapplethorpe

E o que é proposto pela fotografia de Mapplethorpe? Em que medida essa proposta tem êxito em se realizar? Podemos iniciar pelo espelho, onde tudo começou.

Germano Celant (1997), cujo artigo compõe o catálogo dessa exposição, comenta a inclusão do espelho ou de uma superfície metálica em algumas obras: "O reflexo da moldura não só espelha a possibilidade de um diálogo entre o artista e o observador, como também questiona a diferença entre realidade e desejo, verdadeiro e falso, interno e externo" (p. 5). E ainda: "Assim, o espelho funciona como um reflexo solto das fantasias eróticas ou não eróticas da plateia" (p. 21).

O objetivo do fotógrafo era fazer com que o espectador, ao encontrar sua imagem refletida na obra, fosse conduzido ao reconhecimento e à apropriação de suas fantasias, levando-o a uma distinção quase imediata entre o que é desejável e o que é realizável, o que é pura imaginação e o que é efetivamente permitido. Para isso, o artista opta por uma representação realista das imagens que, no entanto, são remetidas a um universo em que a realidade importa muito pouco, já que o propósito é atingir as fantasias do espectador. Dessa forma, seu recurso instaura uma contradição: por meio de imagens excessivamente realistas, o artista visa alcançar as fantasias eróticas mais profundas e, por isso mesmo, mais incompatíveis com os padrões lógicos conscientes que definem a realidade para cada um.

Tomando-se, de um lado, os objetivos mencionados por Celant e, de outro, emblematicamente, a atitude da moça na exposição, há que se perguntar: que efeitos sua estratégia exerceu nesse caso? Em vez do reconhecimento das fantasias, a cena indica sua absoluta negação; ao invés da distinção entre fantasia e realidade, entre interno e externo, percebo a fusão desses dois universos, levando à indiferenciação entre a obra e a espectadora, a qual parece ter sido inadvertidamente absorvida pela imagem, destituindo-a, desse modo, da potência com a qual nos convida a estabelecer com ela uma relação. O diálogo entre artista e espectador por meio da obra buscado por Mapplethorpe pressupõe, portanto, a presença de dois. Todavia, o contato com suas imagens parece ter atraído a espectadora para dentro de si mesma, promovendo um mergulho em suas fantasias, mas fazendo com que perdesse, em contrapartida, a dimensão da obra como um objeto externo e diferente de si. Mais do que apenas olhar-se no espelho, arrumar o cabelo indicava uma relação direta com aquele objeto, sem nenhuma mediação, como se o espelho não tivesse sido colocado ali por algum motivo, com al-gum objetivo que ultrapassasse sua função imediata e cotidiana de refletir a imagem daquele que o olha para se certificar de sua aparência. A atitude da moça mostra-a constituindo a própria obra, sendo parte integrante dela, não por aceitar o convite do artista, mas porque foi capturada por ela. Seu olhar se dirigiu exclusivamente a si mesma, negando a imagem que compunha a obra e substituindo-a pela sua própria.

De onde viriam essas negações? Ampliando agora a situação emblemática para uma condição que pertence a todos, que questões essa obra nos coloca que nos levam a tornar invisível o explícito, a recortar a realidade a tal ponto que se torna impossível expandi-la para além dos muros de nossa consciência imediata?

Os estudiosos de Mapplethorpe abordam sua obra a partir de diferentes perspectivas: os aspectos formais, o conteúdo temático, o diálogo com outros artistas, ora privilegiando uma abordagem em detrimento de outra, ora buscando compreender a inter-relação dos diversos aspectos; dividem sua produção entre a "década de 1970" e a "década de 1980", assim como identificam os gêneros: flores, retratos, nus, pornografia.

Interessada no tratamento que Mapplethorpe concede ao nu fotográfico, Annateresa Fabris recupera historicamente as concepções predominantes desse gênero na fotografia:

Celebração do indivíduo, instrumento de controle social, objeto de prazer visual/erótico, composição autônoma, expressão de um desconforto crescente e/ou de uma contestação de estereótipos sexuais arraigados, o corpo é uma das imagens mais exploradas pela fotografia ao longo de sua curta história. (2004, p. 25)

Com Bernard Noël, ela define o nu fotográfico como o "ápice da ambiguidade do sujeito", em que a nudez jamais é revelada, sempre revestida, cabendo à fotografia ser "uma espécie de última vestimenta, a sobrepor à pele sua pele aérea" (2004, p. 25). Esta "pele aérea", na câmara de Mapplethorpe, revela-se no controle devidamente calculado dos elementos que compõem a imagem, buscando a perfeição da forma: o enquadramento, os cortes na imagem, a incidência e a intensidade da luz, a projeção das sombras, a posição dos objetos, incluindo os modelos; em seu processo artístico não há espaço para o acaso ou a ação involuntária. Mapplethorpe troca o pincel dos artistas renascentistas e neoclássicos pela câmera fotográfica dos artistas modernos. No entanto, os objetivos e resultados formais alcançados estão muito mais próximos dos primeiros do que dos últimos; pretensão que o fotógrafo sintetiza nos seguintes termos: "Procuro a perfeição da forma. Faço isso com retratos. Faço isso com pintos. Faço isso com flores" (Mapplethorpe, citado por Celant, 1997, p. 7).

Paralelamente, Fabris propõe uma significação dos temas trazidos pelo artista a partir do tratamento formal que a imagem recebe. Segundo Fabris, Mapplethorpe participa do debate acerca das práticas e representações do corpo na sociedade contemporânea, que têm no body-building sua máxima representação. O fotógrafo utiliza justamente este elemento central em nossa sociedade, o culto ao corpo, para transgredir os estereótipos a ele relacionados. Por exemplo, ao lado de uma representação "absolutamente formalista" do corpo feminino na figura de Lisa Lyon, a autora assinala que

Mapplethorpe oferece uma imagem do corpo feminino que se opõe de maneira espetacular ao clichê da mulher-objeto. [...] Os pelos são parte integrante da imagem feminina, o seio é pesado e caído em contraste com o achatamento da barriga, as pernas e os braços são construções absolutas, fruto de uma autodisciplina que confere uma nova visibilidade à massa corpórea. (Fabris, 2004, p. 24)

As conexões simbólicas estabelecidas na articulação do tema com seu tratamento formal também são traçadas na representação do masculino:

Há uma cumplicidade manifesta entre o olho de Mapplethorpe e os corpos masculinos por ele fotografados. [...] Sujeito de uma ação na qual o corpo do outro é um objeto, Mapplethorpe [...] acaba por lembrar à sociedade que o que ela vê na imagem nada mais é do que uma projeção de seu próprio olhar. (Fabris, 2004, p. 30)

Seria este o objetivo do artista, ao expor seu desejo e fantasias pelo exercício do olhar fotográfico, especularmente, convidar o espectador a identificar sua própria cumplicidade com aquelas imagens, suas fantasias e desejos implícitos no olhar que lança sobre elas? Nesse ponto, Fabris chama a atenção para a necessidade de análises sociológicas e psicológicas que façam frente a uma sociedade à procura de "álibis estéticos" para a exibição erotizada do corpo masculino. (Essa expressão é preciosa!)

E é justamente essa a perspectiva adotada por Arthur Danto (1990) na análise da retrospectiva de Mapplethorpe realizada no Whitney Museum de Nova York em 1988.

A questão de gênero percorrerá toda a exposição, assinala o au-tor, especialmente na produção dos anos 1980. Mas, segundo Dan-to, é a produção dos anos 1970 que levanta as mais duras questões e concentra o alcance mais singular da obra de Mapplethorpe.

O fotógrafo retrata cenas sadomasoquistas nas suas mais inesperadas e explícitas performances, imagens que guardam semelhanças com as fotos publicitárias encontradas nas revistas dedicadas à dor, humilhação e submissão sexual, mas que não se confundem com elas. Tampouco são fotos documentais, desinteressadas, registrando uma forma de vida, ainda que, secundariamente, elas proporcionem esse conhecimento.

Danto assinala: "Elas são, antes, celebração de seus sujeitos, atos de vontade artística motivados por crenças e atitudes morais" (1990). O fotógrafo acredita e participa da cena - com seu desejo, escreveu Fabris - da mesma forma que o modelo não é apenas um sujeito, mas um colaborador dessa mensagem, que concordou em estar ali, pela confiança depositada no fotógrafo que se propôs a mostrar sua forma de vida a partir dela mesma. Desse ponto de vista, não basta compreender a estetização dos genitais por meio das flores retratadas, estes "álibis estéticos" que correspondem, nos vegetais, aos órgãos sexuais humanos em sua forma e função. Ela deverá ser vista da perspectiva da apreciação homossexual do pênis, que o valoriza como belo. Não há mediação nisso, assim como não deverá haver no realismo da representação das cenas expostas. Assim, a onipresença do pênis como referência das flores, das mãos e dos objetos nas imagens de Mapplethorpe, representa mais do que a estetização dos genitais, revela a "falocização da estética". E o interessante dessa inversão, acentua Danto, é a politização da estética que essa operação instaura. A década de 1970, ele explica,

[...] foi um período em que os gays estavam se revelando em grande escala, desafiantes e orgulhosos, e estavam em campanha ativa não apenas para mudar as atitudes sociais em relação a eles, mas para construir sua própria cultura. Me parece claro que estas fotos são atos políticos e que elas não se teriam feito arte se não fosse a intenção de inscrever a arte numa transformação mais crítica.

Danto exemplifica essa reivindicação, mencionando o autorretrato em que Mapplethorpe se posiciona curvado de costas para a câmera, olhando-a por sobre o ombro direito, segurando o cabo de um chicote colocado no ânus (Fist Fucking). Uma imagem forte, sem dúvida. Poderia até ser apreciada formalisticamente, dirigindo-se a atenção para a sombra de intensidade graduada ou para a sutileza dos tons e assim por diante. "Qualquer coisa que seja arte pode ser vista deste jeito." Mas não é possível parar aí. Uma imagem como essa, segue o autor, não pode ter sido criada apenas para o "nosso deleite estético, mas, antes, para nos engajar moral e esteticamente [...] com a esperança de que, de alguma maneira, a consciência pudesse ser transformada".

As colocações de Danto nos remetem, no âmbito político de transformação social, aos mesmos objetivos assinalados por Celant, com o uso das superfícies reflexivas, no âmbito psicológico. Resta saber se o artista logra alcançar os efeitos desejados. Pelas reações observadas por Danto nos visitantes da exposição, não é possível dizer que sim.

Eles estavam deprimidos e quase assombrados. Não havia risadinhas e raramente algum suspiro. Era como se todos sentissem o peso moral das questões. E sentia-se uma resistência quase palpável em encarar os pensamentos gerados pela mostra, os quais a cada visitante cabia superar.

A questão se recoloca: o que faria com que a obra de Mapplethorpe, ao visar à ampliação da consciência e liberdade, gerasse, ao contrário, estreitamento pela negação e limitação pela resistência?

Sigamos com Celant:

Consciente ou inconscientemente, Mapplethorpe procura sempre, desde o início, unir a dicotomia existente entre os opostos, entre a ordem e a desordem, consentimento e discordância, idealismo e anarquia. [...] provocar e unificar os contrários que audaciosamente desordenam o sistema tradicional de articulação do amor. (1997, p. 1)

Com sua fotografia, Mapplethorpe pretende trazer à luz um lado obscuro, porém real e cotidiano do homem. Busca isso por meio da representação de modelos e objetos fisicamente perfeitos, cujas formas são "leonardianamente" proporcionais, a propósito, em nada parecidas com o real e o cotidiano do homem. Ou seja, para alcançar o real, ele recorre ao ideal. Mapplethorpe apresenta em suas imagens um ideal de beleza que transcende seu sentido estético e contagia o conteúdo temático, como se também esse fosse um ideal a ser buscado - refiro-me à concepção de sexualidade presente em sua obra. Traduzida e regida por Eros, Celant a define da seguinte maneira:

Mapplethorpe reivindica um Eros que não exclui qualquer tipo de troca ou paixão, um desejo que atua em território livre e aberto e ocorre quando a experiência humana se depara com ele. Acredita em um Eros satisfeito e cumpridor, que sempre inclui as novas etapas da vida e os novos poderes do amor. Não representa, portanto, um empobrecimento, mas um surgimento contínuo de pluralidades sexuais, encontros e emoções. Representa a ausência de qualquer remorso pelo indomável e insaciável desejo de ser, e de aceitar o amor sem limites ou proibições. A composição do amor, uma combinação de sexo e ternura, não pode depender de um processo de renúncia, repressão ou inibição, mas deve se permitir o entrelaçamento e liberdade do perambular da libido e do desejo. (1997, p. 1)

Ora, essas afirmações se colocam em clara oposição à descrição freudiana clássica do desenvolvimento e destino da libido4 até o exercício da sexualidade madura, que se caracteriza pela busca do sexo oposto e pela relação sexual genital como fonte de obtenção do prazer - ou seja, a sexualidade com fins procriadores (Freud, 1905/1996). Ainda que o próprio Freud tenha se empenhado em demonstrar a complexidade dos processos que envolvem a sexualidade no psiquismo humano, seus escritos buscaram definir a sexualidade madura, satisfatória e saudável, em detrimento de outras. Acabaram por contribuir na formação dos padrões desejáveis a partir dos quais a sexualidade humana se orientaria, deixando à margem, como perversões, tudo o que deles escapasse.

Num diálogo direto com Freud, Herbert Marcuse propõe uma reflexão filosófica sobre a teoria psicanalítica, considerando, principalmente, os escritos que discorrem sobre a organização dos instintos e suas decorrências sobre a organização dos indivíduos na cultura. Recorda que, originalmente, a pulsão sexual não tem limites extrínsecos, temporais ou espaciais. No início, a sexualidade é "polimorficamente perversa". Com o desenvolvimento psicossexual, a organização social do instinto sexual passa a interditar como patologia (perversão) qualquer manifestação que não sirva à procriação. "Sem as mais severas restrições, [tais manifestações] neutralizariam a sublimação de que depende o desenvolvimento da cultura" (Marcuse, 1999, p. 51).

Assim, as perversões expressam a rebelião contra a subjugação da sexualidade à ordem de procriação e contra as instituições que garantem essa ordem. [...] São um símbolo do que teve de ser suprimido para que a supressão pudesse prevalecer e organizar o cada vez mais eficiente domínio sobre o homem e a natureza. (Marcuse, 1999, p. 51)

Marcuse descreve a civilização neurótica, organizada segundo os princípios da repressão e sublimação dos instintos. Entre outras considerações, propõe que a repressão dos impulsos na sua finalidade sexual (sublimação) não seria a única alternativa que possibilitaria ao homem a formação de cultura. Essa "opção" também não teria sido fortuita, mas determinada pelo que o autor denominou "princípio do desempenho". Segundo ele, o princípio do desempenho constitui a "forma histórica predominante do princípio de realidade", este definido como um princípio mental regulador das exigências instintivas e dos obstáculos impostos à satisfação pela realidade externa. O princípio do desempenho pode ser, assim, considerado uma derivação do princípio de realidade, visando a apropriação do homem como um ser portador de funções específicas, cujo primeiro compromisso é exercê-las da melhor maneira possível, ou seja, com o melhor desempenho.

"A razão é a racionalidade do princípio do desempenho" (Marcuse, 1999, p. 146) e a filosofia já se encarregou de demonstrar como a dominação dos instintos se fez necessária, uma vez que "tudo o que pertencer à esfera da sensualidade, do prazer, dos impulsos, tem por conotação ser antagônico da razão - algo que tem de ser subjugado, reprimido" (Marcuse, 1999, p. 146)5.

Na visão desse autor, as perversões representam, justamente, o questionamento dessa ordem de coisas. Entretanto, os aspectos "perversos" apontados por Marcuse não assumem a conotação patológica ou deficitária presente na obra freudiana. Ao contrário, são propostos como uma alternativa que recorreria à inclusão dos instintos - e não ao desvio pela repressão - com vistas à constituição de uma sociedade mais completa do ponto de vista da realização do ser humano em todos os aspectos. Nesse sentido, Marcuse propõe outra organização da sexualidade humana, a qual não é regida pelo princípio repressor do desempenho, mas pela conciliação entre prazer e realidade, entre sensibilidade e razão.

A oposição entre homem e natureza, sujeito e objeto, é superada. O ser é representado como gratificação, o que une o homem e a natureza para que a realização plena do homem seja, ao mesmo tempo, sem violência, a plena realização da natureza. (Marcuse, 1999, p. 151)

A sublimação como condição de cultura atuaria sobre a libido muito mais num sentido de ampliação do que de desvio e restrição; englobaria, em vez de excluir, novos objetos capazes de satisfazer os impulsos de ligação com a vida, sem o sacrifício de uma parte do potencial humano que tem permanecido submerso e submetido às exigências da razão. Marcuse imagina, então, um princípio de realidade que fosse governado pela sensualidade e que tivesse como pano de fundo a dimensão estética.

Não é difícil aproximar a utopia de Marcuse acerca de uma civilização calcada em princípios diversos dos da repressão e a reivindicação de Mapplethorpe de um Eros livre, da vivência do amor sem limites ou proibições. O que o fotógrafo reivindica no campo da sexualidade, o filósofo propõe como princípio regulador das relações humanas em geral, regido pela sensualidade na dimensão estética.

Nessa dimensão, qualquer objeto é representado e julgado não em termos de sua utilidade e finalidade, mas como algo inteiramente livre dessas categorias, como algo que se é livremente. A destituição do objeto de tais funções e propriedades só pode acontecer na imaginação estética.

O esforço filosófico de mediação, na dimensão estética, entre sensualidade e razão manifesta-se, pois, como uma tentativa de reconciliar as duas esferas da existência humana que foram separadas à força e despedaçadas por um princípio de realidade repressivo. [...] Por consequência, a reconciliação estética implica um fortalecimento da sensualidade contra a tirania da razão, e em última instância, exige até a libertação da sensualidade, frente à dominação repressiva da razão. (Marcuse, 1999, p. 161).

Ciência da sensualidade, a Estética pretende a perfeição do conhecimento sensível, ou seja, da beleza, articulando intelecto e prazer, sem a submissão de um pelo outro. E onde mais, senão na arte, território privilegiado, senão exclusivo do conhecimento do belo, poder-se-ia alcançar a forma definitiva da dimensão estética do mundo? A ciência da sensualidade que imporia uma nova ordem de coisas em todas as relações cotidianas, que validaria novos critérios de conhecimento e apropriação da natureza e das relações humanas, se vê confinada a uma esfera muito específica da produção e do conhecimento humanos, a arte, na qual, aí sim, pode se movimentar livremente.

A arte desafia o princípio da razão predominante; ao representar a ordem da sensualidade, invoca uma lógica tabu - a lógica da gratificação, contra a da repressão. Subentendido na forma estética sublimada, o conteúdo não sublimado transparece: a vinculação da arte ao princípio do prazer. (Marcuse, 1999, p. 165)

Ou seja, a utopia de um princípio de realidade que não fosse regido pela exigência de desempenho, articulado com o princípio do prazer e que regesse todas as relações humanas, cai por terra e confere ao âmbito exclusivo da arte sua única possibilidade de existência:

Como valor estético, a verdade não conceptual dos sentidos está sancionada e a liberdade, em face do princípio de realidade, é consentida ao "livre jogo" da imaginação criadora. Aqui, é reconhecida uma realidade com padrões muito diferentes. Contudo, uma vez que estoutra [sic] realidade "livre" é atribuída à arte e sua experiência à atitude estética, não é vinculativa e não compromete a existência humana no modo de vida corrente; é "irreal". (Marcuse, 1999, p. 165)

A meu ver, é essa distância entre as leis, que regem as relações em geral e aquelas permitidas somente no universo e linguagem artísticos, que faz com que a moça da exposição não possa se relacionar com a proposta de Mapplethorpe, mas veja a sua obra com o mesmo crivo que atua em seu cotidiano: a função do espelho é fazer com que as pessoas vejam sua imagem refletida; portanto, a moça se olhou e se arrumou, desempenhando, impecavelmente, a finalidade do objeto que se apresentava diante dela.

É certo que a obra de Mapplethorpe denuncia contradições e preconceitos, lança uma reflexão profunda sobre o corpo, a sexualidade e as relações humanas, e o faz de maneira criativa e corajosa. E, só por isso, se ainda houver alguma dúvida, sua obra já se perfez, nos termos de Pareyson (1989), como arte. No entanto, essa revelação instaura um paradoxo na recepção de sua obra: a sexualidade livre e autônoma em suas infinitas potencialidades e a dimensão política das transformações pretendidas são reduzidas a uma utopia acerca das relações humanas. Na tentativa de tornar natural o que ainda está para se constituir, Mapplethorpe aumenta ainda mais a distância entre o desejo e a realização incondicional, a fantasia e a realidade, o masculino e o feminino, o sexo e a plena realização do amor. A consciência das fantasias, sexuais ou não, com vistas à ampliação das possibilidades de vivê-las na realidade, só faz sentido dentro do código artístico e este permanece livre, porém isolado, ao tentar dar voz ao que tem sido enormemente abafado pelas forças da razão. Fora desse código ou, na expressão de Fabris (2004), sem esse "álibi estético", tal conteúdo é reconhecido como patológico, perverso, tão distante dos ideais com os quais se possa identificar.

 

REFERÊNCIAS

Celant, G. (1997). O sátiro e a ninfa: Robert Mapplethorpe e sua fotografia. (Alumni, trad.). São Paulo: Museu de Arte Moderna.         [ Links ]

Fabris, A. (2004). Na superfície do invólucro corporal: Mapplethorpe e o nu fotográfico. In A. Santos & M. I. Santos (Orgs.). A fotografia nos processos artísticos contemporâneos (pp. 21-31). Porto Alegre: Editora da UFRGS.         [ Links ]

Foucault, M. (1978). A história da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Frayze-Pereira, J. A. (2010). Arte, dor: inquietudes entre estética e psicanálise. São Paulo: Ateliê         [ Links ].

Freud, S. (1996). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud. Obras completas (Vol. 7). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905).         [ Links ]

MAM & Alumni. (1997). Mapplethorpe. São Paulo: MAM/Alumni.         [ Links ]

Marcuse, H. (1999). Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. (8ª ed.). Rio de Janeiro: Guanabara.         [ Links ]

Pareyson, L. (1989). Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
LUCIANA BERTINI GODOY
Rua Eliezer Lima de Oliveira, 64
46753-000 – Mucugê – BA
tel.: 75 3338-7013
lb-godoy@uol.com.br

Recebido 29.07.2016
Aceito 10.09.2016

 

 

1 Artigo primeiramente elaborado em 1997, quando o Museu de Arte Moderna - MAM - de São Paulo sediou a exposição Mapplethorpe. Foi revisado e ampliado em 2009, quando integrou as mesas redondas do Colóquio Belas Abjeções - Arte, Psicanálise e Cultura Contemporâneas, que aconteceu em São Paulo, naquele ano, com a organização de João A. Frayze-Pereira.
2 Em termos metodológicos, foi realizada uma observação da conduta dos visitantes em relação aos trabalhos no espaço expositivo. A cena presenciada foi apenas um dos casos observados. No campo da arte, esse método se assemelha à observação que um pesquisador costuma fazer das obras, como Freud fez do Moisés de Michelangelo na Catedral de São Pedro (Frayze-Pereira, 2010, pp. 55-77).
3 A critério da Fundação Robert Mapplethorpe, as imagens do artista não podem ser reproduzidas em publicações. No entanto, pode-se ter acesso a algumas delas no site da Fundação (http://art-forum.org/z_Mthorpe/gallery.htm) e nos catálogos do artista.
4 Freud (1905/1996) define as atividades autoeróticas como a principal característica da atividade sexual infantil, acentuando que "a pulsão (sexual) não está dirigida para outra pessoa; satisfaz-se no próprio corpo, é autoerótica" (p. 170). As zonas erógenas são definidas nos seguintes termos: "Trata-se de uma parte da pele ou da mucosa em que certos tipos de estimulação provocam uma sensação prazerosa de determinada qualidade. [...] A propriedade erógena pode ligar-se de maneira mais marcante a certas partes do corpo. Existem zonas erógenas predestinadas [...] mas qualquer outro ponto da pele ou da mucosa pode tomar a seu encargo as funções de uma zona erógena, devendo, portanto, ter certa aptidão para isso" (pp. 172-173).
5 Sobre a exigência de dominação das paixões e o império da Razão no pensamento ocidental, conferir Michel Foucault (1978).

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