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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.62 São Paulo ago./dez. 2016

 

EM PAUTA | CORPO REFLEXIVO: O EU E O OUTRO

 

O corpo em ato - espaço da intimidade, corpo do artista, nosso corpo1

 

Body in action - space of intimacy, the artist's body, our body

 

 

Cesar Barros

Mestre em artes visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Paulo e doutorando pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O propósito deste estudo é mostrar a singularidade das Aktions, de Joseph Beuys, trabalhos que envolveram a presença do artista agindo diretamente nas suas execuções. Beuys faz uma passagem do corpo da obra para a exposição do seu próprio corpo, fazendo com que este seja parte constitutiva da obra. Assim, dos trabalhos expostos na vitrine, passa para a própria exposição/interação com os materiais antes produzidos e expostos nas galerias e museus. Para tanto, percorri um caminho que passou por dois trabalhos de escultura na tradição da exposição na vitrine e três Aktions realizadas por Beuys, as quais ele desenvolveu com a participação de animais: um coelho, um cavalo e um coiote e vários elementos que foram explorados ao longo da sua obra, como a gordura, o feltro e diversos objetos e desenhos. Seu corpo se coloca em evidência.

Palavras-chave: Corpo. Performance. Aktion. Beuys.


SUMMARY

The purpose of this study is to show the singularity of the Joseph Beuys' Aktions, works wich involved the presence of the artist acting directly in their executions. Beuys performs a passage from the body of the work for the exhibition of your own body, causing this to be a constituent part of the work. Thus, from the works to be exhibited in the showcase, passes to the exhibition itself and interaction with the materials before produced and exhibited in galleries and museums. Therefore, I did a path that passed by two sculptural works in the traditional exhibition in the showcase and three Aktions made by Beuys, which he developed with the participation of animals: a rabbit, a horse and a coyote and several elements that were explored throughout his work as fat, felt and various objects and drawings. His body highlight.

Keywords: Body. Performance. Aktion. Beuys.


 

 

O que resta de uma "obra?"
A matéria transformando-se infinitamente.

A única força revolucionária é
a força da criatividade humana

(Joseph Beuys)

 

Introdução

Este trabalho trata de um aspecto da obra de Joseph Beuys, suas Aktions. Ao longo de sua vida, realizou diversas Aktionen, no original em alemão. Trabalhos cujo ponto central seria a ação, característica que as distinguiria de outras formas como os happenings e as performances, que também foram desenvolvidas por outros artistas na segunda metade do século XX e cujos pontos centrais seriam o acontecimento e a atuação, respectivamente. Essas Aktions se caracterizavam pela valorização do gesto ou dos gestos que ele, como sujeito do trabalho, desenvolvia no momento em que se dava a sua execução. Para esse artista alemão, vários de seus trabalhos artísticos contribuíam para essas ações, fornecendo elementos que se integravam na sua realização.

Aqui serão destacadas três dessas Aktions: Wie man dem to-ten Hasen die Bilder erklärt (Como se explica quadros a uma lebre morta), Iphigenia/Titus Andronicus e I like America and America likes me (Eu gosto da América e a América gosta de mim). Nelas, a presença de animais (uma lebre morta, um cavalo branco e um coiote, respectivamente) é um elemento comum e importante na sua realização. Beuys estabeleceu uma interação específica com esses animais. Cada um deles trazia uma contribuição própria, tomando deles uma característica que lhes era inerente e que contribuía para o trabalho desenvolvido. A lebre com sua rapidez de movimento e de multiplicação. O cavalo branco pela sua força potencial e indeterminação de suas reações. O coiote por ser um selvagem, primitivo habitante da América e venerado pelos Índios Americanos, os homens de pele vermelha, como fala Beuys comentando essa Aktion (Tisdall, 1976, p. 10).

Minha escolha parte de uma motivação pessoal. Meu primeiro contato com o trabalho de Beuys foi por uma foto de Iphigenia/Titus Andronicus na qual ele está no primeiro plano em pé com címbalos nas mãos, flagrado no instante exatamente anterior ou posterior à produção do som. Ao fundo, um cavalo branco mantido por uma corda em uma determinada área se alimenta de um monte de feno no chão, próximo à corda. O espaço é amplo, um palco italiano com toda a sua área aberta, não existe nada cobrindo o urdimento e o fundo do palco.

Em 1979, na XV Bienal Internacional de São Paulo, uma sala de Beuys apresenta um trabalho com mantas de feltro industrial empilhadas até a altura de quase dois metros, cada uma coberta por uma placa de cobre. Quatro pilhas iguais dispostas de maneira que seja possível circular entre elas. Quatro quadrantes. Mais uma peça dessa enigmática obra, Brazilian fond (1979, Fond V).

Esses dois momentos descritos dão algumas linhas da pesquisa desenvolvida por Beuys ao longo de sua obra. As Aktions em que ele se lança no primeiro plano, diretamente à frente do trabalho, e as esculturas, desenhos e peças compondo uma rica pesquisa plástica, são testemunho do desenvolvimento de sua obra e, algumas delas, são partes que ficam dessas ações.

Essas duas linhas de raciocínio possuem uma articulação: por um lado são o pensamento se desenvolvendo e por outro são elementos constitutivos das Aktions. Material de reflexão, material de uso, como os desenhos que registram um corte da laringe em Iphigenia/Titus Andronicus ou a manta de feltro com que Beuys é envolto em Coiote, que remete ao Terno de feltro, de 1970.

Para Beuys, o limite entre arte e vida é tênue. Intencionalmente construído assim, como na biografia que em 1964 ele apresenta e ao longo dos anos 1960 e 70 faz acréscimos: Lebenslauf/ Werklauf (Currículo de vida/Currículo da obra). Nesta o ano de seu nascimento, em 1921, em Krefeld, está assim assinalado: Kleve Ausstellung einer mit Heftpflaster zusammengezogenen Wunde (Kleve - exposição de uma ferida mantida fechada com um adesivo). Fatos da vida pessoal são transformados em peças de seu trabalho, como a banheira de bebê, por ele considerada sua primeira escultura. Ele morreu em 1986, em Düsseldorf. Essa criatividade sempre em transformação se interrompeu, esse processo de transformação constante se interrompeu.

Interessa-nos abordar este aspecto do trabalho de Beuys, as forças primitivas, as energias contidas potencialmente em todos os seres vivos ou inanimados, fazem do fato artístico um mobilizador das capacidades de desenvolvimento dos seres humanos. No dizer do próprio Beuys, esses trabalhos visam suscitar discussões. Sua intenção é mover as pessoas, tocá-las da forma mais íntima, para assim mudar o mundo e as relações que estão estabelecidas e, muitas vezes, cristalizadas. Assim se realiza o que para Winnicott (1975) é o espaço potencial, uma área intermediária da experiência entre a realidade interna e a externa, ponto de contato entre os seres, lugar onde se dá a cultura.

As Aktions estão assim integradas neste esforço de criar uma situação em que somos mobilizados a responder à forma inusitada de conhecimento da vida, instigados a produzir elaborações, pensamentos e a sermos criativos.

 

Espaço da intimidade

Um canto ocupado com gordura, Fettecke (Canto de gordura) é o título dado por Beuys ao seu trabalho de 1960. A gordura está presente em alguns de seus trabalhos como matéria orgânica exposta em toda sua plasticidade. Essa matéria inerte, que é constitutiva a homens e a animais e é fonte geradora de energia e calor, é utilizada de forma inusitada pelo artista, sendo matéria-prima para algumas reflexões plásticas desenvolvidas por ele.

Bachelard, em seu texto A poética do espaço, escreve: "Recolher-se ao seu canto é sem dúvida uma expressão pobre. Mas é pobre porque tem muitas imagens, imagens de grande antiguidade, talvez mesmo imagens psicologicamente primitivas" (1996, p. 146). Pode parecer pobre relacionarmos essa frase com os trabalhos de Beuys, mas se pensarmos na matéria orgânica que ele utiliza em seus trabalhos, tão conhecida e ao mesmo tempo tão repugnante, surgem muitas interrogações. Ato banal e corriqueiro de abandonar em um canto aquilo que não se quer pensar, poeira esquecida no canto. Sua utilização nos remete a um lugar muito primitivo do ser, do nosso ser, tira-nos dessa existência cotidiana, banalizada, pobre, em que nos colocamos sem perceber, sem nos dar conta dessa riqueza contida na interioridade do ser. Riqueza de imagens, lembranças, experiências que nos individualizam.

Matéria viscosa, pegajosa, que nos causa repulsa, contraditória. Esta é uma contradição da gordura, ela é a matéria-prima do enfarte, que nos mata, e fonte de energia, que nos move. Matéria espessa, opaca, que nos causa repugnância, mas que nos dá proteção e calor. Fonte de energia que queima em nosso interior, disforme, incontrolável, mas que é o princípio de nossos movimentos, a fonte da energia que nos move.

A gordura ocupa um canto, ela ganha a forma de um tetraedro. Beuys geometriza essa matéria disforme, transformando os cantos de um espaço em cantos de gordura. Esses espaços "mortos" ganham uma potencialidade conferida pelo material. Os cantos, como que passam a devanear (palavra cara a Bachelard2), mostrando-nos uma potência que não está na aparência sensível do ser canto. Eles passam a ter outra dimensão, e não a de meros cantos, meros encontros e terminações de espaços significativos. O canto deixa de ser o lugar onde as paredes se encontram, lugar de acumulação de inutilidades (poeira, esquecimento), mas fica explicitada sua energia acumulada, sua potencialidade. Como se a fria geometria se impregnasse do calor da gordura.

É interessante lembrar que Beuys tem uma vivência íntima com essa matéria-prima. Durante a 2ª Guerra, na Crimeia, em 1943, como bombardeiro de caça, ele teve seu avião abatido em uma área totalmente selvagem, sendo encontrado por nômades Tártaros que o mantiveram vivo em estado de inconsciência durante dias envolto em gordura até ser encontrado por uma patrulha alemã3. Inscrição no corpo, Beuys assim se lembra do que lhe ocorreu: "[...] eu estava completamente enterrado na neve. Foi assim que os Tártaros me acharam dias mais tarde. [...] Eles cobriram meu corpo com gordura para ajudar a recuperar o calor e me envolveram em feltro como um isolante para manter o calor" (Tisdall, 1979, p. 16 - tradução livre).

Matérias-primas de seus trabalhos, tanto o feltro como a gordura, que foram úteis para salvar a sua vida, terão, por Beuys, suas propriedades exploradas e significadas de diferentes maneiras.

Minha intenção inicial em usar gordura era estimular discussões. A flexibilidade do material interessava-me particularmente nas suas reações a mudanças de temperatura. Esta flexibilidade é psicologicamente efetiva - instintivamente as pessoas percebem sua relação com processos e sentimentos primitivos [...]. Então eu tomei uma posição extrema na escultura, e um material que era muito básico para a vida e não associado com arte. (Tisdall, 1979, p. 72 - tradução livre)

Beuys constrói uma teoria da escultura baseada na passagem do material caótico para a forma ordenada através do movimento escultórico:

caos   ordem
indeterminado   determinado
orgânico   movimento
cristalino   calor frio
expansão   contração

"[...] Realmente trata-se do mesmo elemento repetido em dois diferentes estados de contração e expansão, princípios essenciais da escultura" (Tisdall, 1979, p. 44 - tradução livre).

A escultura Canto de gordura expõe numa mesma peça a Teoria da Escultura, como exposta acima. De um lado o canto com sua geometria cartesiana, forma ordenada e determinada pela fria racionalidade humana que a idealizou e a construiu, de outro a gordura, forma da natureza caótica e indeterminada, com propriedades que possuem um movimento próprio, como seu calor e expansão que escapam a qualquer controle. Esse é um difícil equilíbrio da existência entre a construção de uma ordem e a incontrolável desordem do mundo.

Beuys vai procedendo, assim, a uma qualificação do mundo. A gordura deixa de ser simplesmente matéria orgânica para possuir uma série de atributos que vão diferenciando-a daquela matéria inerte do início. O canto passa a ir muito além da geometria que o constrói. O humano se plasma no inumano. Vale lembrar o que diz Bachelard a propósito dos poetas: "Quando o filósofo vai procurar nos poetas [...] lições de individualização do mundo, logo se convence de que o mundo não é da ordem do substantivo, mas da ordem do adjetivo!" (1996, p. 152).

Ver sentido no caos, perceber o absurdo na ordem. Tentar, na verdade, achar o equilíbrio entre esses dois polos, ter a consciência de que ambos são partes constitutivas de um mesmo todo. Utilizar-se de uma aproximação desorientadora ou que aparentemente nos desoriente para driblar as formas preconcebidas de ver o mundo. Bachelard dá um conselho: "[...] para encontrar a essência de uma filosofia do mundo, procure o seu adjetivo" (1996, p. 152). Se na ciência exata o que se procura é o substantivo, a garantia e a segurança de uma construção sólida baseada em conceitos claros e definidos, parece que Bachelard nos convida a ficar no desvão, a ouvir a imagem fugidia proposta pelo poeta, e, poderíamos dizer, pelo artista. Ele nos convida a se permitir ficar envolto, como que imerso, nesta maneira de ver o mundo que caminha no limite entre exterior e interior. Convite nada fácil de ser aceito. Como abandonar as certezas e deixar de lado o já conhecido, e em nome do que arriscar o impensado e a individualização através da exposição dessas experiências íntimas e quase que secretas?

 

O corpo do artista, o nosso corpo

Em 1963, Beuys produz um trabalho utilizando-se também de gordura, seu título é Fettstuhl. Uma cadeira com gordura. Esse objeto do nosso cotidiano sofre uma transformação. O espaço entre o assento e o encosto é ocupado. Ocupada desta forma, com gordura, deixa de ser a cadeira do nosso descanso cotidiano. Coloca-nos uma inquietação, uma interrogação. De alguma maneira, estamos e não estamos podendo nos colocar sentados. A gordura ocupa o nosso lugar, a gordura somos nós ocupando aquele lugar.

Desse trabalho ele diz o seguinte:

A gordura em Fettstuhl não é geométrica, como em Fettecke, mas mantém algo do seu caráter caótico. A textura das superfícies laterais assemelha a um corte através da natureza da gordura. Eu a coloquei em uma cadeira para enfatizar isto, visto assim a cadeira representa uma certa anatomia humana, a da região da digestão e da excreção que é acompanhada por um processo de calor, dos órgãos sexuais e uma interessante transformação química, relacionando psicologicamente vontade e poder. Em alemão o jogo é composto como uma brincadeira entre Stuhl (cadeira), que é também a forma educada de se referir a excremento (Stühle), e também é usado em materiais minerais com caráter caótico, refletido na textura da secção de corte da gordura. (Tisdall, 1979, p. 72 - tradução livre)

Identificação com aquele objeto inerte, mas prenhe de significações. Nossos calores incontroláveis, nossas vontades sem fim. Nosso inegável ponto de contato com a natureza, nosso ponto comum com o mundo dos animais. A gordura deixa de ser somente matéria inerte e se plasma de significações humanas.

Beuys arrisca traçando o risco com o próprio corpo em cena. A gordura, antes geometrizada em um canto, está no nosso lugar. Na primeira cena, era poeira esquecida em um canto. Agora, não nos permite deixar passar sem perceber, sem que nos percebamos ali colocados, sentados em devaneios da nossa vontade.

Energia potencial, matéria em transformação.

Caos/ordem, calor/frio, expansão/contração, pares que vão orientando a feitura dos trabalhos, que dão conta de movimentos e polaridades inerentes aos seres vivos. No nosso afã de ordenar o mundo, ficamos somente em um dos polos, deixamo-nos cristalizar e fazemos com que se cristalize o movimento. Tentamos colocar ordem, conter estas forças vivas com as quais não sabemos lidar. Forças vitais que, por mais que tentemos, encontram formas de se manifestar ao arrepio da nossa vontade. Esta cadeira emplastrada de gordura nos incomoda, sabemos que a gordura ali colocada se movimenta. Estranho objeto, estranha escultura que desafia cânones de uma arte tradicional com esculturas equestres estáticas em que cavaleiro e cavalo formam um todo sólido e único. Esculturas de pedra, metal ou mármore que nos transmitem uma atemporalidade, uma fixidez para além da vida. Um homen sentado em seu cavalo, cena paralela a essa da cadeira, mas que nos transmite a solidez daquele vulto, fixado em seu tempo de monumento histórico.

Mas não, é uma cadeira banal e cotidiana, um objeto de uso em cuja intimidade não nos deixemos percebê-lo, a não ser quando nos falta. Estamos diante dessa falta quando nos deparamos com esse objeto, com essa Fettstuhl. Caos com que nos deparamos nesta colagem grotesca, inusitada e repugnante na qual fomos jogados em vertiginoso movimento a contragolpe. Com falta de ar tentamos nos recompor, mas são tentativas vãs, pois estamos em uma armadilha por nós mesmos armada, de pular de um polo a outro sem nos darmos conta do movimento, que talvez seja o que importa.

Trata-se de outra ordem, de um corte na natureza e na natureza da existência que evidencia outras dimensões do vivo. Somos matéria e processos materiais, mas também processos que ocupam um lugar impalpável e produzem algumas vezes efeitos materiais. A cadeira ainda é objeto a ser olhado com essas características de plasticidade que nos incomodam, mas estão na vitrine.

 

O corpo em ato

O canto de gordura e a cadeira de gordura são objetos a serem vistos de seus lugares, a interrogar-nos em seu silêncio. Objetos que ainda guardam a relação de exterioridade entre sujeito e objeto. Podemos estabelecer com esses objetos uma relação que, mediada por um espaço físico, permite-nos virar as costas e esquecer o que vimos, mantendo somente no nosso pensamento as sensações e experiências que eles no evocam.

O uso de materiais inusitados não é o suficiente. Romper o limite entre arte e vida requer algo além. Desse modo, Beuys passa a agir, envolvendo-se pessoalmente nos trabalhos, fazendo com que o ato de estar presente nesses eventos não deixe dúvida do que está se tratando. Com isso, rompe-se o limite entre sujeito e objeto, representado e representante, pois se está vivendo uma ação. Assim, as Aktions, pela presença de Beuys conduzindo as ações, nos colocam em uma situação de identificação inequívoca, passamos a presenciar possibilidades do ser que talvez não arriscaríamos fazer de outra forma.

Beuys, em algumas de suas Aktions, estabeleceu uma relação direta com animais. Num corpo a corpo ele realizou ações com uma lebre, com um cavalo branco e com um coiote. Não eram acontecimentos ou atuações, as Aktions eram tempo presente. Mesmo contando com uma estruturação prévia, essas Aktions incluíam o diálogo que o momento de sua execução propiciava. Os animais, com exceção da lebre, também agiam, também interagiam com Beuys.

Merleau-Ponty fala das mãos que de tocante se torna tocada e que de tocada se torna tocante. É dessa alternância entre sujeito e objeto que se tratava, pois para que tal troca, tal alternância se faça possível, requerem-se corpos presentes. É necessário que não haja divisão, cisão, que corpo e espírito não sejam dois, sensação e emoção não se encontrem em lugares diversos.

Beuys fez um deslocamento dos objetos exteriores, como do canto de gordura ou da cadeira de gordura, para a sua própria presença nos trabalhos. Não é mais um objeto a nos incitar à discussão, mas o próprio artista a colocar em ação os conceitos e a nos mover para a discussão com a sua presença.

Em 26 de novembro de 1965, Beuys realizou uma das Aktions que nos interessa: Wie man dem toten Hasen die Bilder erklärt (Como se explica quadros a uma lebre morta), na abertura da exposição Joseph Beuys... irgendein Strang... (Joseph Beuys... uma corda qualquer...), Schemela Gallery, Dusseldorf.

Beuys, cuja cabeça estava coberta com mel e com uma folha de ouro, transformou-se em uma escultura. Portava uma lebre morta em seus braços e a levava pela exposição, de quadro em quadro. Falava-lhe e fazia-a tocá-los com suas patas. Após ter terminado a volta pela exposição, sentou-se numa cadeira e começou a explicar-lhe detalhadamente os quadros. (Meyer, 1970, p. 57 - tradução livre)

Ele cuidadosamente carrega uma lebre morta e lhe explica a arte. A lebre não mais se move, é ele quem se move, carregando-a. Paradoxal atitude. Um pedaço de carne inerte sendo atenciosamente tratado, tendo um respeito que é negado aos visitantes da exposição. Vivos preteridos por um animal morto.

A lebre, morta de medo, e Beuys, "falando sem emitir sons para um animal mudo o que não podia ser dito ao seu companheiro humano" (Kuspit, 1980, p. 79 - tradução livre), detalhadamente lhe explica os quadros. Essa cena nos remete a outra cena, desenhada de observação por Dürer em 1502, nela é retratada em uma aquarela uma lebre com as orelhas em pé, em estado de alerta. Retrato do momento que a arte deixa de sobrevoar o mundo e inicia um mergulho nele, propondo habitá-lo. Retrato do momento em que o mundo deixa de ser plano e passa a ser circunavegável.

Em última instância, está nesse gesto a radical necessidade de um diálogo profundo, a tentativa de uma comunicação direta de ser para ser, que abandone intermediações e subterfúgios. Donald Kuspit diz que "ele, Beuys, tem que fazer arte o tempo todo para preencher novamente um corpo e um espírito vazios" (Kuspit, 1991, p. 85 - tradução livre). Necessidade humana de criar mundos, de se apropriar do mundo transformando-o e de se comunicar com o outro para, dessa forma, reconhecer-se vivo.

Sair do caos, da indiferenciação para a formação de uma ordem, sabendo que ela é passageira e fugaz, mas que nesse átimo de ordem algum conhecimento se faz possível, alguma consciência do ser ou talvez entre os seres se estabelece:

Existindo como relíquias da vida, mirando-nos como fatos que foram arqueologicamente escavados de algum estranho lugar da experiência. Os objetos de Beuys parecem familiares e estranhos, todos muito humanos já de um mundo de experiências estrangeiras. Talvez como eles existissem não somente esteticamente, mas com estranha intimidade, eles parecem por sua vez o resíduo do brilho na direção de uma possível experiência do ser.(Kuspit, 1980, p. 81 - tradução livre)

Beuys cuidadosamente carrega essa lebre morta, esse corpo inerte, talvez ainda quente, a escancarar-nos aquilo que foi, aquela vida que se foi. Cessão de todo o movimento, interrupção de toda a pulsação. Não há energia que possa emanar de nosso cérebro, que possa restituir aquilo que se foi. Resta, talvez, em silencioso repeito, dar-lhe uma atenção anteriormente ignorada, contar-lhe, como só se conta às crianças, sobre os significados do mundo, já que são talvez as únicas com predisposição para ouvir e se maravilhar, descobrir outras possibilidades.

Ou, talvez, tenhamos que falar com fúria e paixão de maneira que o que está sendo dito nos invada de forma avassaladora, sem que possamos nos esquivar. Experiência envolvente e estranha como a de sons de vozes, instrumentos e animais. Iphigenia/Titus Andronicus, realizada entre 29 e 30 de maio de 1969 por Joseph Beuys, Johann Wolfgang Goethe, Claus Peymann, William Shakespeare e Wolfgang Wiens, na Experimenta 3, e organizada pela German Academy of Dramatic Arts, em Frankfurt/Main, de 29 de maio a 7 de junho, assim se desenvolve no palco:

No palco, num cercado feito com uma corda esticada, estava um cavalo branco comendo feno. A batida de seu casco era transmitida e amplificada por um microfone. Beuys atuou com poucos materiais (microfone, margarina, açúcar, pedaços de ferro [que ele colocava em sua cabeça de tempos em tempos], pratos de orquestra, casaco de pele etc.) em frente ao microfone e sincronizadamente recitando, interpretando e comentando com gestos e ações o texto de Shakespeare, Titus Andronicus, e de Goethe, Iphigenia in Tauris, reproduzidos simultaneamente ao fundo por um gravador em uma montagem dos textos de ambos os dramas lidos monotonamente por C. Peymann e W. Wiens (Adriani, 1979, p. 190 - tradução livre).

O monólogo de Beuys vai se sobrepondo às diferentes vozes a recitar monotonamente textos conhecidos reproduzidos por um gravador. As súbitas interrupções dos pratos ou dos barulhos aleatoriamente produzidos pelo cavalo (os cascos têm seus sons amplificados) são surpresas que nos tiram do mergulho em que, anestesiados, vivemos pelas metrópoles do mundo. Entorpecidos não nos damos conta da quantidade de estímulos que nos rodeiam para, assim, poder continuar indefinidamente vivendo, silenciando-nos sobre as nossas potencialidades de ser.

Beuys no palco, os pratos na mão, com o cavalo branco ao fundo, circulando, gesticulando, recitando, interpretando e comentando trechos de Goethe e Shakespeare. Desenha, faz esquemas, indica as direções a seguir. Está no palco inteiramente exposto, desenvolvendo uma estranha coreografia e regendo uma orquestra invisível com os poucos elementos retirados de seu universo: o casaco de pele, a gordura vegetal, os cubos de açúcar. Formas de energia e formas de conter energia. Gestos que tentam fazer circular as energias contidas nos seres.

Beuys, em uma entrevista, diz que "a palavra e o gesto são material elementar do artista, as peças no museu informam sobre algo acontecido. Então é importante que se veja bem estes documentos históricos caso contrário não precisaríamos ver mais as esculturas egípcias, por exemplo" (vídeo). Ele resgata aquilo que foi objeto de uso, agora transformado em documento. Testemunho de um acontecimento efêmero, mas vivo para os que dele participaram, ali está plasmada a transformação da matéria. Registro dessa intenção humana exposto, como lembrar o que já fomos e o que já fizemos. Como os desenhos pré-históricos das cavernas de Altamira, na Espanha, nos lembram de nossas conquistas pelo alimento que um dia já foram tão imediatas.

Em 1974, Beuys faz sua segunda viagem para a América, vai realizar mais uma de suas Aktions. Entre 23 e 25 de maio de 1974 realiza I like America and America likes me (Eu gosto da América e a América gosta de mim), na René Block Gallery em Nova York.

Por uma semana Joseph Beuys conviveu com um coiote em uma sala da galeria. A Aktion teve seu início quando Beuys, ao chegar no aeroporto Kennedy, envolto em feltro, foi levado por uma ambulância para a galeria. Em uma sala separada por uma grade um coiote o esperava [...]. Durante a Aktion, Beuys permaneceu por algum tempo envolto totalmente no feltro. Apenas uma bengala se encontrava exposta [...]. Beuys falava com o coiote na tentativa de aproximar-se, de estabelecer uma relação. Eles conviveram na jaula pacificamente um com o outro, homem e coiote. De tempos em tempos Beuys tocava um triângulo que ele carregava pendurado no pescoço. Um gravador emitia sons de uma turbina perturbando o silêncio, trazendo o anúncio de uma alteração na ação. Cinquenta exemplares do The Wall Street Journal, principal jornal de economia da América, postos sobre o chão, completavam o ambiente. O coiote urinava nos jornais. (Harlan, p. 26, citado por Adriani, 1994, p. 274 - tradução livre)

O nome do coyote era Little Joe [...]. Beuys recebia cinquenta cópias do The Wall Street Journal, um símbolo do capitalismo americano [...], que eram dispostas em duas colunas de vinte cinco exemplares [...]. Na maior parte do tempo, o coiote manteve-se no canto mais afastado, interagindo apenas ocasionalmente com Beuys e os jornais, mas os dois acostumaram-se um com o outro. (Schimmel, 1998, p. 83 - tradução livre)

Dessa vez um coiote o aguarda do outro lado do Atlântico e ele se prepara para esse encontro, que ocorrerá na inauguração da Galeria René Block em Nova York; todo um aparato cerca essa curta convivência. Foi criado um espaço separando por uma grade os dois protagonistas e o público. Beuys, ao chegar ao aeroporto, é transferido, já envolto em feltro para uma ambulância que o leva para a galeria, onde o coiote já o aguardava. Ele diz: "Eu vou me concentrar inteiramente no coiote. Vou me isolar, me proteger totalmente, não verei nada da América se não o coiote" (Tisdall, 1988, p. 11 - tradução livre).

Força primitiva, energia incontrolável de uma América selvagem, numa América de índios, os peles-vermelhas, seus habitantes originais. Homem e coiote, isolados do mundo, vão construindo uma história própria, um conhecimento, um reconhecimento de um e outro. Beuys e Little Joe travam uma luta muda, tateando-se para estabelecer limites sem que a destruição do outro seja necessária, herança nefasta carregada por essa relação. O coiote se viu reduzido, restringido, assim como os peles-vermelhas. Como não temer uma resposta mais agressiva? Ou talvez o fato de estar junto no mesmo espaço seja um sinal desta tentativa de criar outras bases de vida, em que a destruição do outro não seja necessária.

Numa vitrine, convivem e nos mostram possibilidades que somente uma atitude de radical exposição pode revelar. Entrar em contato direto se expondo e permitindo que o outro possa também se experimentar diretamente. Convivência penosamente reconhecida, já que muita destruição já foi empreendida, já que, como os coiotes, o risco é da extinção com todas as perdas irreparáveis que isso traz.

Mas esse homem ocidental estava ali para realizar uma transformação. Para tanto, esse isolamento, esse concentrar-se inteiramente na ação que estava empreendendo foi necessário. Do mesmo jeito que chegou para esse encontro, Beuys deixou a América. Foi retirado envolto em feltro por uma ambulância que o levou de volta ao aeroporto e para a sua cidade.

Ele entrou e saiu isolado, sem tocar o solo americano, levando como única experiência a convivência com o coiote. Preservando a energia que possuía ao chegar e levando consigo as trocas que realizou, certamente não era o mesmo Beuys ao deixar esse encontro. Somos incitados a pensar nossas relações com o outro.

 

Conclusão

Beuys tinha como objetivo "[...] colocar abaixo a barreira que separa arte e vida e abolir as linhas de demarcação entre as várias artes" (Adriani, 1989, p. 17 - tradução livre). Chego ao fim do texto concluindo ter tornado explícito o percurso que essa frase, no meu entender, sintetiza o trabalho que Beuys desenvolveu. Tomei este percurso que, partindo de dois trabalhos plásticos, dois objetos escultóricos, nos remete ao corpo, que, nas Aktions, ganha o primeiro plano e faz como que um borramento nestas linhas de demarcação entre os fazeres artísticos. Os objetos deixam de ser esculturas e ganham lugar num todo maior, encadeando-se numa ação desenvolvida em espaços determinados, com tempos determinados e visando dar conta de uma determinada realidade.

Beuys está mergulhado na consecução do trabalho: pinta seu rosto de ouro e mel; está no palco gesticulando numa interação com os movimentos e sons que o cavalo produz num diálogo com o som das falas e do som de seu próprio casco; está naquele outro espaço também fechado junto com o coiote, convivendo num espaço artificial para ambos.

Presenciamos essas ações e não temos como nos esquivar de nos ver inseridos nelas. A ação viva e pulsante de Beuys faz eco em nossos corpos. Ele rompeu limites e nos colocou questões sobre os nossos próprios limites, sobre as nossas próprias possibilidades de transformação. Se no canto ou na cadeira de gordura tínhamos os objetos a nos colocar questões, agora, são as próprias ações desse outro humano que nos provocam. Podemos ou não considerá-las, mas elas estão inscritas de uma forma mais profunda, mais radical em cada um de nós.

 

REFERÊNCIAS

Adriani, G., Konnertz, W. & Thomas, K. (1979). Joseph Beuys Life and Works. Nova York: Barron's.         [ Links ]

Adriani, G. & Messer, T. M. (1989). Joseph Beuys: Drawings, Objects and Prints. Stuttgart: Institute for Foreign Cultural Relations.         [ Links ]

Adriani, G. (1994). Joseph Beuys. Köln: DuMont.         [ Links ]

Bachelard, G. (1976). A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
CESAR BARROS
Alameda Franca, 1332/7
01422-001 - São Paulo - SP
tel.: 3032-1234
cbarrosbj@gmail.com

Recebido 25.10.2016
Aceito 29.10.2016

 

 

1 Texto extraído da dissertação de mestrado apresentada na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
2 Título de alguns de seus trabalhos: A Terra e os devaneios da vontade; A Terra e os devaneios do repouso; A poética do devaneio.
3 Existe uma controvérsia quanto à veracidade deste fato. Mas aqui vamos considerá-lo independentemente dessa controvérsia, tomando-o como parte da obra de Beuys. Para mais detalhes, consultar: Buchloh, Kraus e Michelson (1980), como também Buchloh (1980).

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