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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.62 São Paulo ago./dez. 2016

 

EM PAUTA | CORPO REFLEXIVO: O EU E O OUTRO

 

Ouvir o Rio: a escuta na psicanálise e na poética de Cildo Meireles1

 

 

Graziela Marcheti Gomes

Programadora cultural da área de cinema do CineSesc (Serviço Social do Comércio) e mestre em psicologia social da arte pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Através da recepção estética da obra RIO OIR, do artista plástico Cildo Meireles, o presente artigo enfatiza a escuta presente no processo artístico, desde a realização da obra até a sua recepção. A obra sonora do artista constitui-se de uma materialidade imaterial que reivindica a escuta como modo de abertura para novos campos, de forma análoga à escuta psicanalítica.

Palavras-chave: Artes plásticas. Escuta. Psicanálise. Recepção estética


SUMMARY

Listening to the River: The listening in psychoanalyzis and in Cildo Meireles' poetics By the aesthetic reception of the artist Cildo Meireles's work RIO OIR, this article emphasizes the listening inside the artistic process, from the work achievement until its reception. The artist's sounding art work consists in an immaterial presence that claims listening as an opening tool to new fields analogously the listening in psychoanalysis.

Keywords: Visual arts. Listening. Psychoanalysis. Aesthetic reception.


 

 

O projeto da instalação RIO OIR, escultura sonora do artista contemporâneo brasileiro Cildo Meireles, teve seu primeiro esboço em 1976, mas só ganhou corpo e execução entre 2009 e 2011.

Minha relação com a obra foi ampliada pelo documentário Ouvir o Rio: uma escultura sonora de Cildo Meireles (2011), de Marcela Lordy, que trata do processo de realização de RIO OIR. Sem a experiência propiciada pelo documentário, a recepção da obra certamente teria tido desdobramentos outros, pois o filme acompanha o processo de criação e execução do artista e nos leva a um questionamento acerca de sua poética. Na produção artística contemporânea, a dimensão projetual é bastante significativa (Freire, 2006) e, nesse caso, expande-se durante o processo de realização da obra.

De acordo com Pareyson (2001), entende-se por poética determinado programa, gosto ou ideal de arte definido explícita ou implicitamente por certo artista, grupo ou movimento artístico. No documentário é possível acessar não só o processo de execução da obra, mas a forma como o artista a compreende, através de seus depoimentos. Por meio desse documentário é possível acompanhar o artista e sua equipe pelo processo de realização da obra RIO OIR, que durou dois anos e cujo resultado se condensou num disco de vinil.

O projeto inicial possuía a indicação de construir um disco de vinil a partir do palíndromo "rio" ‹-› "oir". De um lado do disco, sons de risadas referentes à palavra "rio", e de outro, sons de água referentes à palavra "oir" (ouvir, no idioma espanhol). Tais correspondências mudam ao longo dos depoimentos. Em um momento, Cildo utiliza a palavra "rio" como uma alusão à cidade do Rio de Janeiro, cuja imagem de cartão-postal ilustra a capa do disco. As referências deslizam sobre a palavra "rio", que retorna como "oir", sem que seja necessário nenhuma interrupção ou corte.

Nas palavras do curador da exposição, Guilherme Wisnik:

O palíndromo espelha a própria estrutura dual de um disco de vinil, que tem lado A e lado B. Entretanto, como numa fita de Moebius, essa dualidade não é dicotômica. Assim o "oir", que podemos ler como a palavra "ouvir" em castelhano, refere-se à própria escuta, que é a essência do trabalho em todos os seus lados. E o "rio", que pode ser lido tanto como elemento natural - um curso fluvial - quanto como uma risada na primeira pessoa, descreve em uma só palavra as duas metades do disco, como uma serpente que morde o próprio rabo, isto é, um palíndromo. Ou, se quisermos, uma "terceira mar-gem". (Wisnik, 2011, p. 12 - grifo nosso)

Surge, então, mais um elemento advindo do palíndromo, a escuta presente na palavra "oir". Na fita de Moebius, esse deslocamento entre os significantes se dá sempre do mesmo lado, porém, com um avesso ligado diretamente à face anversa. Não há quebra ou interrupções. O deslizamento entre os significantes se dá numa relação de imbricamento, como é aquela entre o visível e o invisível, relação que sustenta nossa percepção.

Para a realização do trabalho, foi necessário mobilizar uma equipe de colaboradores para coletar os diversos sons que iriam compor esse corpo sonoro sintético. Deu-se um intenso trabalho em equipe, percorrendo quatro lugares diferentes do Brasil: a Estação Ecológica de Águas Emendadas (próximo a Brasília/ DF); as cachoeiras de Foz do Iguaçu (na tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai); a foz do rio São Francisco (entre os estados de Alagoas e Sergipe); e a pororoca do rio Araguari (no Amapá). E, além da captação das águas "naturais", foram também coletados os sons das águas residuárias, consideradas "humanas", tais como torneiras, descargas, bebedouros etc.

A maior parte do documentário se dá durante as viagens realizadas pela equipe para a captação de sons. Essas viagens percorreram nascentes, desembocaduras, encontros de rio e mar, encontros de diversos rios, galerias e córregos, além de águas de torneiras, descargas e o próprio rio corrente. Outra parte, mais reduzida, é a gravação em estúdio de risos de diferentes pessoas, que irão constituir um dos lados do vinil. É justamente no trajeto dessas viagens que o encontro corporal com as águas, pessoas e lugares se revelou inesperado e indutor de reflexões. Nesse sentido, a reflexão sobre o processo artístico é ainda mais fundamental para a recepção da obra final.

Uma obra sonora como essa necessitou, para ser realizada, de uma minuciosa coleta de sons, uma larga disposição para ouvir. Trata-se de um trabalho cuja proposição não é visual em nada e, no entanto, ativa nossa sensibilidade por meio de outros mecanismos. Ao extrapolar a visão retiniana, a experiência da arte é múltipla, envolve todos os sentidos, e o corpo é implicado diretamente nessa relação.

Apesar do som pertencer ao domínio da imaterialidade, é possível perceber que há uma pretensão de chegar a um sólido através da música - o som seria quase um objeto (Maia, 2009). Contudo, um objeto que só se realiza no espaço.

A partir dessa disposição do artista e de sua equipe para ouvir, o corpo da escultura vai se formando até se transformar em um corpo condensado num disco de vinil que se expande pela sua audição. O processo de execução do projeto RIO OIR foi fundamental na definição do trabalho final, e é justamente esse modo de realização que o documentário Ouvir o Rio nos revela. Que modo é esse?

O próprio Cildo Meireles nos dá pistas de como trabalha:

Apesar de sempre definir muito bem os nomes de meus trabalhos, a nebulosidade tem sido uma das premissas de meu trabalho. Nebulosidade no senti-do de que o trabalho pressupõe um caminho cujo fim não sabemos. Acho que uma das preocupações essenciais da arte corresponde à sina do garimpeiro, que se define como alguém que vive de procurar o que não perdeu. (Meireles, 1977, pp. 50-51)

O depoimento do artista registrado no documentário nos serve de guia para compreendermos seu processo artístico. "Qualquer que seja o projeto, ele sempre sofre interferência do real. E uma coisa que você começa pensando muito abstrato e se preocupando fundamentalmente com o aspecto estético, tem um movimento que você não pode contornar o fator crítico" (Meireles, citado por Lordy, 2011).

Durante o documentário, é possível perceber claramente o trânsito de sentidos que a obra realiza. A captação de sons para a construção de um sólido se dá num processo de encontro com a alteridade de que emerge cada som. Mas tal encontro ocorre de uma forma muito peculiar, aberta e fértil. E, assim, o rumo do trabalho é alterado. É nessa nova configuração que emerge, da dimensão estética, a dimensão política.

Em entrevista sobre a exposição, Cildo revela:

Embora a intenção inicial não fosse de denúncia ou de tomada de posição ou de campanha, enfim, não tinha um aspecto imediatamente político, mas por força das circunstâncias, você também não pode evitar de pensar a partir desse ângulo. E foi o que aconteceu. (Meireles, 2011)

Cildo procura deixar claro que não é um especialista em águas ou propriamente um ambientalista, segundo ele: "as questões é que foram se impondo".

Podemos nos perguntar: de que forma essas questões foram se impondo?

A viagem começa com passagens deslumbrantes pelas quedas de Iguaçu e, em seguida, em busca das nascentes de rios importantes, como o Prata, na Estação Ecológica de Águas Emendadas. Nascentes que encharcam a terra e emergem em vários pontos do terreno como veias pulsantes em circulação. O momento em que a equipe silencia diante da gravação do ruído sublime de um olho d'água revela um tipo de atenção muito especial por parte dessa tripulação: buscar ouvir o som que não se ouve, pois é tomado como um ruído constante para nossos ouvidos. Ouvir uma cachoeira ou um olho d'água é um exercício de concentração que se opõe à atenção corriqueira aos barulhos incessantes do mundo.

Tendo já percorrido paisagens espetaculares durante a via-gem, Cildo revela alguns momentos de profundo "impacto":

O primeiro impacto se deu em Formosa, quando a gente chegou num lugar que era um bingo e era uma das nascentes do rio Pipiripau e essa nascente estava concretada, tinha virado um poço, cuja água servia pra lavar as calçadas e regar as plantas, o jardim daquele bingo. (Meireles, 2011)

Podemos dizer que o ápice se deu na viagem ao rio São Francisco, quando descobriram, por exemplo, "que a vazão de um rio como o São Francisco foi reduzida a 8% num período de 50 anos" (Meireles, 2011), e, então, constataram o tamanho da catástrofe2.

A partir desse "impacto", Cildo relata que surgiu a necessidade de uma reflexão. Esse choque mudou todo o percurso que havia sido desenhado para a obra até então, e o trabalho ganhou outro caráter. As ondas sonoras dos sons de águas - que antes iriam migrar da onda de menor amplitude para a de maior amplitude, ou seja, do volume mais baixo para o mais alto - se inverteram completamente. O resultado final foi uma junção dos sons, porém, deslocando-se do volume mais alto para o mais baixo, até o silêncio total.

Não podemos desconsiderar que RIO OIR é uma obra que se realiza numa viagem. E, ao contrário do que se possa pensar, viajar não significa transitar entre diferentes espaços, numa distribuição homogênea de pontos consecutivos. O movimento proposto por uma viagem não é de um ponto a outro do mapa geográfico, assim como também não é de um instante a outro num suposto tempo linear de cada vida. Pois espaço e tempo não são categorias homogêneas formadas por extensões sucessivas. O espaço é constituído por descontinuidades e brechas, assim como o tempo é indeciso e lacunar. Em uma viagem, "se há passagem, é de uma configuração a outra de sentido" (Cardoso, 1988). As viagens são distanciamentos, e, mais uma vez, não falamos aqui de categorias positivas. O viajante se distancia porque se diferencia e transforma seu mundo; afasta-se de si mesmo, diferencia seu território. Trata-se de uma experiência de estranhamento. O encontro realizado em uma viagem é sempre com um outro, levando o viajante a se diferenciar de si mesmo para poder acolher em si esse outro olhar, pois as viagens levam a alterações e diferenciações desse mundo próprio, tornando-o estranho para si mesmo. Porém, nesse sentimento de estranheza, seu mundo não se estreita - ao contrário, abre-se a novas configurações de sentido.

A partir desta experiência de estranhamento provocada pelas viagens, podemos pensar analogamente no processo de ruptura de campo proposto pelo psicanalista Fabio Herrmann. Entendemos por campo "aquilo que determina e delimita qualquer relação humana" (Herrmann, 2003, p. 99), através de uma produção psíquica bem definida, mas não consciente pelo próprio sujeito. Cada campo é regido por regras de organização, as quais delimitam o que nele faz sentido e o que não faz. Os campos são tão definidores das relações que os compõem e não chegam a ser por nós percebidos. Eles são uma parte do psiquismo em ação, tanto do psiquismo individual como da psique social e da cultura, e possuem um destino principal: serem rompidos. Pois cada campo anuncia em si a possibilidade de correspondência a outro campo qualquer. Há fissuras presentes nos campos que indicam caminhos de rupturas. A ruptura de um campo ocasiona um efeito vertiginoso, uma experiência de perda de configurações, um sentimento de estranheza.

Mas voltemos ao ponto em que o artista e sua equipe experimentam o primeiro "impacto". Diante de uma nascente de rio concretada, eles encontram um bingo. Esse é o ponto em que o campo se rompe. Como disse o artista, "as questões foram se impondo" (Meireles, 2011). Abre-se um "vazio representacional", que, nas palavras de Herrmann (2003), é chamado de "expectativa de trânsito" - um período de angústia em que as configurações delimitadas pelo campo rompido são postas em suspensão. De acordo com Cildo, essa ruptura alterou significativamente a estrutura do trabalho.

A experiência do après-coup, reinterpretada por Lacan a partir da noção de trauma em Freud, remete-nos a um acontecimento que inaugura o sujeito na temporalidade. Caso não tivesse ocorrido essa força de inscrição no tempo, não seria vivido como golpe tal como foi. Trata-se, então, de uma descoberta que é uma redescoberta; o acontecimento do après-coup só terá ocorrido anteriormente se, e somente se, puder ser vivido posteriormente. Dessa forma, põe-se o tempo de cabeça para baixo, desorganiza-se a cronologia. É assim que a experiência vivida ganha potência de elaboração, se puder encontrar uma escuta para isso.

Para que essa experiência de estranhamento não resultasse num total desenraizamento do projeto e, portanto, do artista, o processo de criação contou com uma atitude silenciosa fundamental: a escuta. Num primeiro momento, podemos pensar que a escuta se refere exclusivamente à recepção dos sons captados ao longo das viagens. Afinal, a disposição do próprio artista e de sua equipe para realizar a coleta de sons das águas, e, posteriormente, sons das risadas, é a essencial matéria-prima no surgimento desse trabalho. Porém, tal recepção é operada através de uma certa disposição para ouvir. Uma disposição que carrega consigo uma abertura para aquilo que surgirá. E o que surgirá no futuro liga-se misteriosamente a um passado arcaico.

Essa é a temporalidade própria da psicanálise, por isso, a disposição psíquica para aquilo que não é óbvio ou mesmo razoável, para aquilo que não busca caminhar na trilha já traçada pelas intenções prévias, relaciona-se com o conceito de escuta na psicanálise. A técnica da "atenção flutuante" - uma atenção desatenta ao discurso construído racionalmente, ou ao seu conteúdo, mas disponível para o surgimento de novos sentidos - nos remete ao movimento próprio das águas.

Dessa forma, o que surge do processo de escuta dessa obra é também a escuta do artista. De acordo com Herrmann, "deixar surgir" para só depois "tomar em consideração" é a forma de não impor sentidos exteriores ao psiquismo do paciente, nesse caso, ao processo criativo do artista.

É intenção do artista realizar uma escuta (ouvir o rio, ouvir as risadas, assim como fazer o espectador ouvir), mas não faz parte de sua intenção (ao menos explícita) que essa escuta seja propriamente psicanalítica. No entanto, podemos fazer aproximações, pois ela opera analogamente a uma escuta psicanalítica. Sua abertura às experiências que surgem ao longo da expedição conduz o artista a momentos de choque que podemos associar com rupturas do campo inicialmente proposto - um campo que se restringia ao universo estético formado por uma orquestra de sons de águas e risadas. Mas, a partir dessa ruptura, o sentido se coloca em trânsito. Poderíamos dizer que ali ocorreu um vórtice3. O projeto despersonaliza-se, abre-se um novo campo: o político. Aquilo que pretendia ser uma captação abstrata de determinados sons revela um universo histórico de projeto de país e de desenvolvimento político-econômico. Nesse novo campo, as gargalhadas (cujos motivos não se pode acessar) ganham um tom fortemente sarcástico (Wisnik, 2011), difícil de suportar.

Outro depoimento do artista que demonstra essa frustração:

Se eu fosse tentar sintetizar o que aconteceu nesse processo, diria duas coisas: encontramos nascentes natimortas, o que foi muito impactante; e, uma decorrência disso, a percepção de que muito em breve todas as águas fluviais do Brasil serão, de certa forma, residuárias, pois elas já estão sendo conspurcadas na fonte. (Meireles, 2011)

A equipe frustra-se terrivelmente diante da vida agônica dos rios, do encontro de nascentes quase mortas e a diminuição qua-se completa do fluxo das águas. Com isso, irrompe esse novo campo: o político, a partir da crítica. Ao buscar ouvir os rios, o que se encontrou foram sua agonia e um projeto de país que deprecia suas fontes mais férteis.

Voltando à noção de après-coup, esta instaura necessariamente uma tensão, "condensando duas dimensões que só que-rem afastar-se uma da outra" (André, 2008): o presente-passado e o passado-presente. Nesse ponto, ligam-se dois tempos, que estiveram desconectados até então. O segundo golpe, que acontece agora, que nos impacta e provoca um vazio representacional, é o tempo 1 do trauma; enquanto o primeiro golpe, aquele do passado e nunca simbolizado, é vivido como o tempo 2.

O après-coup é um trauma, e se não é uma simples repetição é porque contém elementos de significação que dão acesso, desde que encontrem uma escuta e uma interpretação, a uma transformação do passado. [...] Desde que encontrem um outro. O après-coup é um acontecimento traumático tardio em busca de sentido e de intérprete, cristaliza uma situação inter-humana. A abertura intersubjetiva que o tempo 1 permite é um eco do tempo 2. (André, 2008, p. 144 - grifo nosso)

"Desde que encontrem uma escuta e uma interpretação." "Desde que encontrem um outro." Tal condição é fundamental para a elaboração realizada durante o processo criativo. É por essa condição que a obra se amplia para outros campos, se enriquece de alteridade e, finalmente, inscreve-se na temporalidade.

A materialidade de tal poética nos remete a dimensões fundamentais da psicanálise, como é a própria escuta analítica. O caminho percorrido pelo artista e sua equipe ao longo da realização da obra, como sabemos, ocorre em uma viagem, numa empreitada no tempo, ou seja, algo que se relaciona com a experiência da alteridade e do trauma, que, ao encontrar uma escuta, poderá se abrir a uma interpretação.

Então, diante das resistências impostas pela obra - esse corpo sonoro sintético -, a psicanálise terá de se reinventar. E não será o trabalho psicanalítico sempre uma reinvenção? Dessa forma, cabe a nós, no intento de recepção da obra, realizarmos um mergulho no fluxo inapreensível dela (aquele presente nas águas e nas risadas), para dele extrair uma perlaboração, um modo de "trabalhar através" das resistências e das descontinuidades próprias as vivências traumáticas.

Perlaboração e après-coup não são simples opostos, mas nem por isso deixam de apresentar duas figuras distintas da temporalidade: continuidade - descontinuidade. Continuidade não é linearidade, o working through frequentemente passa através, perde seu caminho, se perde, dá meia-volta, afunda-se nas areias... para, de vez em quando, chegar a um porto seguro. Perlaboração é uma palavra laboriosa, mas seu processo nem sempre o é, tomando também a forma de uma marcha silenciosa e subterrânea, fugindo da atenção dos dois atores da cena analítica, até o dia em que o hóspede do lago Ness decide emergir. (André, 2008, p. 149)

A obra de arte - este corpo autorreferenciado, numa articulação singular de forma e significação - exige de seu interlocutor paciência sensível e abertura interrogativa. De acordo com Frayze-Pereira (2007), o psicanalista deve se posicionar eticamente diante do paciente tal e qual deve fazer diante de uma obra de arte. Sendo a obra aquela que suscita interpretação, diante dela, portanto, o psicanalista assume o lugar de espectador.

O analista tem de privilegiar o sensível, mas sem descartar sua formação teórica, num "movimento que vai da experiência à teoria e desta à experiência, um movimento pendular sem esperança de fim, cujo resultado é uma forma: a forma do tratamento, a forma da interpretação, a forma narrativa do caso" (Frayze-Pereira, 2007, p. 136).

O que temos é que a própria obra oscila entre abundância e seca de forma que vemos refletida nela a atividade psicanalítica, ora prenhe de sentidos e ora escassa, permeando o vazio. O processo de execução, presente no documentário, é abundante em tudo a que se propõe: é um projeto grandioso, que pôde ser realizado com uma equipe de pesquisadores e outra de filmagem e que viajou pelos quatro cantos de um país de dimensões continentais. Ao longo do percurso, onde se esperava encontrar água, encontrou-se concreto, estiagem, assoreamento. No curso do rio São Francisco em que antes passavam barcos com cascos profundos, hoje se joga futebol. O seu assoreamento sofre um aceleramento assustador e irrecuperável em curto prazo.

O produto final, a obra em si, é um corpo absolutamente sintético e imaterial, não está no disco de vinil, apesar de este ser o meio que veicula a obra, mas está no som. E para que o público pudesse acessar isso de uma forma mais ampla e corporal, foram concebidas duas salas, uma para cada lado do disco. A sala de espelhos, com sons de risadas, remete a uma dispersão, é confusa e iluminada. Muitos espectadores caem no riso gratuito ali também. Outros são sensíveis ao sarcasmo no riso que desafia a morte.

Enquanto a sala com sons de águas é escura e convida à concentração e à reflexão, assim como a um contato sonoro muito elementar e íntimo. O barulho das águas nos joga de volta a um tempo outro ao qual jamais pertencemos, mas que se apresenta vivo no nosso presente-passado. É o entrejogo das salas e sonoridades que coloca o próprio corpo do espectador em suspensão dos sentidos comuns e em vias de refletir a partir da sua experiência.

A perlaboração psicanalítica acompanha o ritmo próprio da obra, desprende-se de configurações cristalizadas num processo movediço e imerso na mesma nebulosidade de que nos fala o artista. O disco de vinil rígido, suporte das fissuras que carregam as vibrações sonoras, é um objeto absolutamente sintético. O som que ele transporta, volátil. Mas o percurso realizado para tal síntese estética é prenhe de temporalidade, inaugurada pela experiência traumática devidamente acolhida por uma escuta.

O après-coup tem caráter de passagem.

Só a força do trauma permite que as cartas voltem a ser embaralhadas, que a história seja reescrita. Ou até mais que isso, permite que aquilo que ainda era sem sentido tome um sentido. Não há après sem coup, o après-coup une o que somos inclinados a opor: a violência da efração traumática e a abertura do sentido. Se nos esquecermos de um dos dois aspectos, deixamos de ter um acontecimento psíquico observável. De um ao outro, do trauma ao significado, o fenômeno de après-coup é um operador, um transformador, o agente de passagem. Sua plasticidade faz dele, senão o oposto, ao menos o diferencial da compulsão à repetição. [...]

Ele ignora a contradição - condensa, funde em um só dois movimentos que a lógica separa: passado-presente, presente-passado - mas abre o tempo, o processo de temporalização. (André, 2008, p. 151)

Como esclarece Herrmann (1999, citado por Frayze-Pereira, 2007, p. 136),"[...] a interpretação, ato psicanalítico essencial [...] não se confunde com as falas do analista, por mais acertadas que sejam: às falas chamamos sentenças interpretativas". O processo é muito mais amplo, composto por silêncios, interferências, digressões, retornos e incertezas... "A explicação, a sentença interpretativa, vem depois, para dar ciência ao analisando do que se passou; não é motor do processo." Por isso, a interpretação se dá em processo. Seu ritmo convida o intérprete à quase completa imersão no campo, a partir do qual é possível produzir rupturas.

Nesse sentido, tal método pode ser entendido como um trabalho de reflexão (Chauí, 2002) exatamente porque interroga as experiências imediatas, deixando surgir e tomando em consideração as mediações desconhecidas que as tornam possíveis. [...] interrogá-la como imediata para tomar em consideração o mediato que se esconde nela. Ao interrogar a experiência, o modo de pensar psicanalítico promove a recriação das ideias, sendo os campos que exigem a elaboração de teorias ajustadas às novas experiências. (Frayze-Pereira, 2007, p. 139)

Em suma, o modo de pensar psicanalítico é trabalho de reflexão. Nesse sentido, é um processo que é análogo ao conceito de "formatividade" proposto por Pareyson (2001) no campo da Estética, um processo tal que, "enquanto faz, nega o feito, o instituído, e inventa o por fazer e o modo de fazer, o instituinte" (Frayze-Pereira, 2007, p. 140).

Da imersão nesse processo interpretativo, surge uma reflexão crítica sobre nossa malha fluvial, sobre o projeto de Brasil que adotamos e, mais radicalmente, sobre o sistema capitalista em que vivemos. Wisnik (Lordy, 2011), o curador da exposição presente na viagem, conclui: "A paisagem fluvial é o antilitoral. O litoral é o culto da beleza, enquanto as margens dos rios são abandonadas, cheias de dejetos, doenças". Tal reflexão acaba por desembocar numa crítica, em última instância, ao próprio capitalismo refletido no modo de vida das cidades. No entanto, o capitalismo, como meio de vida a que as sociedades industriais e pós-industriais aderiram, revela em seu modo de produção e organização social algo extremamente significativo acerca dos seres humanos. Afinal, em que medida as sociedades que constituímos sob a forma "capitalismo" revelam algo do nosso desejo inconsciente e nossa relação com aquilo que nos falta?

Em outro documentário sobre o artista, realizado em 2009 e intitulado Cildo, uma poderosa síntese sobre nosso modo de vida é elaborada:

Talvez tudo no universo seja perecível. Talvez, o universo seja perecível. Talvez, tudo seja durações. E Deus apenas a mais longa delas, não sei. O que sei é que o perecível difere muito do descartável. O perecível é uma condição metafísica superável pela aceitação da hipótese de que o universo é finito. Já a descartabilidade é uma prática econômico-consumista fundada na ilusão da infinitude. Acho que esta é sim uma questão que merece a reflexão de todo artista porque ela incide sobre a natureza, o espírito e a aparência do seu produto. Perecebilidade é sabermos que vamos morrer. Descartabilidade é suicidarmo-nos por causa disso. Not to be or not to be, eis a questão. (Meireles, citado por Moura, 2009)

Com essa elaboração, Cildo toca diretamente na configuração-chave para compreendermos sua obra. A morte - que circula transitória entre os rios e irrompe em gargalhadas - alcança, finalmente, seu estatuto originário. Como num après-coup, aquilo de que tememos, de que temos horror, estranhamento e angústia, é o acontecimento do passado-presente. O fim que se anuncia está presente desde o nosso tempo arcaico: é a finitude. Nesse sentido, a obra migra do campo da "infinitude", baseada na crença de recursos inesgotáveis, de uma vida eterna, ao da "perecibilidade", em que o caráter finito, e, sobretudo, de passagem do tempo, impõe-se.

A escuta foi o exercício que orientou o processo artístico de Cildo Meireles, na medida em que garantiu livre curso para suas próprias associações diante do percurso de captação de sons. Vale lembrar que, quando não estamos diante de um paciente, é o próprio intérprete que coloca em fluxo suas associações.

Não parece sem sentido que o projeto baseado numa escuta tenha sido levado a cabo justamente por uma ruptura de campo. Uma obra que nasce de uma intenção puramente estética, tomada na radicalidade do sensível, caminha, por isso mesmo, para a abertura do questionamento político. Afinal, a escuta nos orienta muito mais ao campo do sensível para dele fazer surgir novos sentidos.

A escuta psicanalítica, sendo atividade que sustenta a interpretação, é capaz de propiciar rupturas de configurações de si que se pretendem totalizantes, mas que apenas pertencem a um dos campos possíveis. É no rompimento de um campo que as suas sustentações, antes invisíveis, agora emergem.

De forma análoga, se dá a crítica ao discurso ideológico. O discurso ideológico é justamente aquele que nega suas determinações históricas e sociais e, por isso mesmo, faz a realidade parecer impossível de transformar. Podemos pensar que a possível crítica a esse discurso não é simplesmente aquela que revela as determinações escusas da ideologia. Aliás, essa forma de crítica raramente tem efeito. Isso porque, como argumenta o psicanalista Slavoj Zizek, a ideologia possui um papel fundamental na estruturação da realidade, a saber: ela "mascara um insuportável núcleo real impossível [...]. A função da ideologia não é oferecer-nos uma via de escape de nossa realidade, mas oferecer-nos a própria realidade social como uma fuga de algum núcleo real traumático. É a totalidade empenhada em apagar os vestígios de sua própria impossibilidade" (Zizek, 1996, p. 327).

Desse modo, devemos evitar o fascínio fetichista do conteúdo por trás da forma, pois o que nos interessa aqui é a própria forma. Ou seja, a interpretação psicanalítica não possui seu êxito no simples ato de tornar explícito o conteúdo latente de uma manifestação de caráter inconsciente. Se fosse assim, a psicanálise assumiria um caráter didático, que é incapaz de romper o campo instituído, apenas demonstrando suas determinações. É a ruptura de um campo que leva à reflexão, ela que traz à tona as regras que sustentam o campo. Nesse sentido, tanto a interpretação psicanalítica quanto o discurso crítico (contraideológico) atuam nos interstícios da forma. E não é o método psicanalítico, tal como enfatizado por Herrmann, justamente uma intervenção de caráter formal e, nesse sentido, propriamente estético?

A partir do filósofo Jacques Rancière (2012), compreendemos que é menos importante o conteúdo da mensagem moral ou política que está em transmissão através de certo dispositivo, do que o próprio dispositivo, este prenhe de rupturas.

Sua fissura [a do dispositivo] põe à mostra que a eficácia da arte não consiste em transmitir mensagens, dar modelos ou contramodelos de comportamento ou ensinar a decifrar as representações. Ela consiste sobretudo em disposições dos corpos, em recorte de espaços e tempos singulares que definem maneiras de ser, juntos ou separados, na frente ou no meio, dentro ou fora, perto ou longe. (Rancière, 2012, p. 55)

Nessa medida, o que se busca é algo além do que se pode encontrar na "interminável tarefa de desmascarar os fetiches ou na interminável demonstração da onipotência da besta" (Rancière, 2012, p. 34), aqui compreendida como o monstro do capitalismo.

Tal dispositivo é capaz de instaurar a "eficácia de um dissenso" (Rancière, 2012, p. 59), entendido não como o conflito de ideias ou sentimentos, mas como "o conflito de vários regimes de sensorialidade. É por isso que a arte, no regime da separação estética, acaba por tocar na política. Pois o dissenso está no cerne da política" (Rancière, 2012, p. 59).

Se a experiência estética toca a política, é porque também se define como experiência de dissenso, oposta à adaptação mimética ou ética das produções artísticas com fins sociais. [...] O resultado não é a incorporação de um saber, de uma virtude ou de um habitus. Ao contrário, é a dissociação de certo corpo de experiência. (Rancière, 2012, p. 60)

Sendo o dissenso o choque de dois regimes de sensorialidade, ele opera por meio da "reconfiguração da experiência comum do sensível" (Rancière, 2012, p. 63), produzindo "rupturas no tecido sensível das percepções e na dinâmica dos afetos" (Rancière, 2012, p. 64). E, à medida que atravessa a ruptura estética, seu efeito não presta a nenhum cálculo determinável, causando uma ruptura com a antiga configuração do possível.

Como bem adverte Rancière, não há motivo para que os choques de sensorialidade levem à compreensão das razões das coisas e que esta, em seguida, produza a decisão de mudar o mundo. Porém, a contradição presente no dispositivo da crítica não se torna sem efeito.

Pode contribuir para transformar o mapa do perceptível e do pensável, para criar novas formas de experiência do sensível, novas distâncias em relação às configurações existentes do que é dado. [...] Não se passa da visão de um espetáculo à compreensão do mundo e da compreensão intelectual a uma decisão de ação. Passa-se de um mundo sensível a outro mundo sensível que define outras tolerâncias e intolerâncias, outras capacidades e incapacidades. O que está em funcionamento são dissociações: ruptura de uma relação entre sentido e sentido, entre um mundo visível, um modo de afeição, um regime de interpretação e um espaço de possibilidades; ruptura dos referenciais sensíveis que possibilitavam a cada um o seu lugar numa ordem das coisas. (Rancière, 2012, pp. 66-67)

Portanto, trata-se aqui de uma compreensão da crítica totalmente diferente daquela crítica social que pretende mostrar ao espectador aquilo que ele não sabe ver ou não quer ver, com o intuito de denunciar "a incapacidade de conhecer e o desejo de ignorar", induzindo "a culpa no coração da negação" (Rancière, 2012, p. 34).

O que há são cenas de dissenso, ou seja,

[...] uma organização do sensível na qual não há realidade oculta sobre as aparências, nem regime único de apresentação e interpretação do dado que imponha a todos a sua evidência. É que toda situação é passível de ser fendida no interior, reconfigurada sob outro regime de percepção e significação. Reconfigurar é modificar o território do possível e a distribuição das capacidades e incapacidades. (Rancière, 2012, pp. 48-49)

Porém, o desenho dessa nova topografia do possível não pode surgir sem que haja uma escuta atenta e cuidadosa à sua espera. Com efeito, a escuta é o que propicia a crítica, na medida em que abre uma fenda no regime de sensorialidades, capaz de romper campos instituídos, na passagem de um mundo sensível a outro mundo sensível, e, a partir daí, gerar novos sentidos que desautomatizam experiências. E a arte, ao solicitar a escuta, numa relação intrínseca com o sensível, abre espaço para a emergência da crítica.

 

REFERÊNCIAS

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______. (2002). Psicanálise, teoria dos campos e filosofia: a questão do método. In L. M. Barone (Coord.). O psicanalista: hoje e amanhã: O II Encontro Psicanalítico da Teoria dos Campos por Escrito. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Freire, C. (2006). Arte conceitual. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Herrmann, F. (2004). Introdução à teoria dos campos. (2ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

______. (2003). Clínica psicanalítica: a arte da interpretação. (3ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Lordy, M. (2012). Ouvir o Rio: uma escultura sonora de Cildo Meireles. (Documentário, Marcela Lordy, dir., 79min.). São Paulo: Itaú Cultural.         [ Links ]

Maia, C. (2009). Cildo Meireles. Rio de Janeiro: Funarte.         [ Links ]

Meireles, C. (2011). Catálogo da ocupação Rio Oir. São Paulo: Itaú Cultural.         [ Links ]

Moura, G. R. (2009). Cildo. (Documentário. Produção de Mariana Ferraz, Ana Murgel, Gustavo Rosa de Moura, Fernanda Marques. Direção de Gustavo Rosa de Moura, 78min.). Videofilmes, Estudio Matizar.         [ Links ]

Pareyson, L. (2001). Os problemas da estética. (3ª ed.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Rancière, J. (2012). O espectador emancipado. (I. C. Benedetti, trad.). São Paulo: WMF Martins Fontes.         [ Links ]

Zizek, S. (1996). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
GRAZIELA MARCHETI GOMES
Avenida Vieira de Carvalho, 197/10A
01210-010 – São Paulo – SP
tel.: 11 99316-8376
graziela.marcheti@gmail.com

Recebido 25.10.2016
Aceito 29.10.2016

 

 

1 Este trabalho tem origem na dissertação de mestrado Uma escuta para a finitude - Ensaio sobre RIO OIR de Cildo Meireles, apresentada no Instituto de Psicologia da USP em 2014.
2 Em setembro de 2014 (três anos após a finalização da obra de Cildo), em meio a uma estiagem severa, secou pela primeira vez na história a principal nascente do rio São Francisco, localizada no município de São Roque de Minas (MG). A notícia foi dada pelo diretor do Parque Nacional da Serra da Canastra, Luiz Arthur Castanheira, que frisou: "Essa nascente é a original, a primeira do rio e é daqui que corre para toda a extensão. Ela é um símbolo do rio. Imagina isso secar? [...] Não é comum, é preocupante. Não há dúvida de que algo em grande escala está mudando em nosso ecossistema" (Castanheira, 2014).
3 Vórtice aqui se refere ao efeito geral, vertiginoso, da ruptura do campo psicanalítico. Como num redemoinho, "acompanham-no sentimentos vagos de perder o pé e afundar-se em si mesmo, de despersonalização e autodesconhecimento, de estranheza" (HERRMANN, 2003, p. 71).

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