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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.62 São Paulo ago./dez. 2016

 

EM PAUTA | CORPO REFLEXIVO: O EU E O OUTRO

 

O amor nas fronteiras do eu

 

The love on the borders of the ego

 

 

Elisabeth Antonelli

Psicóloga, psicanalista, mestre em psicologia clínica, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, autora do livro Os sentimentos do analista (2011)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo visa problematizar a questão do desejo do paciente borderline por situações turbulentas, relações turbulentas, tese defendida por Bollas. Pretendo trabalhar com a hipótese de que em tais situações o paciente faz do próprio corpo um corpo anestesiado, que servirá de suporte para angústias impensáveis. A partir da análise do filme She so lovely (1997), pretendo ilustrar tal função do próprio corpo.

Palavras-chave: Borderline. Corpo. Angústia. Desejo.


SUMMARY

The present article aims to problematize the issue of the borderline patient's desire through turbulent situations, turbulent relations, thesis defended by Bollas. I intend to work with the hypothesis that in such situations the patient makes his own body an anesthesiated body that will serve as a support for unthinkable anguishes. Based on the analysis of the movie She's so lovely (1997), I intend to illustrate such function of the own body.

Keywords: Borderline. Body. Anguish. Desire.


 

 

Introdução

Love is that kindness, so rarely kind, and never at all proper.

(B. R. Dignin, 1892)

Se o amor pode desestabilizar pessoas sãs, o que não poderá causar a quem já é louco?

E se, além do mais, o excitante for a loucura?

Christopher Bollas, no artigo seminal "O desejo borderline", abre pistas interessantes para pensarmos o que pretendo trabalhar neste texto. O autor faz uma importante pergunta: será que as frequentes tempestades emocionais de um paciente borderline, que provocam fragmentação e desorganização crescentes, apontariam para a direção de um estranho objeto de desejo?

O presente estudo terá como foco o corpo. Poderíamos, seguindo o autor, complementar a pergunta: as frequentes automutilações, acidentes de toda ordem, que são característicos do paciente borderline, revelariam um uso para o corpo como suporte de angústias impensáveis?1 Estas teriam como referência a busca do objeto primário, fundamental para nossa constituição humana (nascemos desamparados e precisamos, na base, de um suporte materno), porém, perdido em tempos imemoriais da própria história?

Para poder trabalhar tais questões, analiso o filme She's so lovely ("Loucos de amor", 1997), dirigido por Nick Cassavetes.

O filme começa e termina com uma panorâmica sobre a cidade. Uma cidade qualquer, como outra qualquer, num dia qualquer. É uma história anônima como a de tantas pessoas, justificada sob o nome do amor. Pouco se fala disso, pouco sabemos sobre o amor e seus desvãos. No entanto, é certo que é uma história mais comum do que se tem notícia. Nick Cassavetes certamente sabe trabalhar com o tema das famílias disfuncionais...

Maureen, à beira de um colapso nervoso, grávida e sem dinheiro, procura desesperadamente o marido, Eddie, desaparecido há dias. O vizinho de corredor do hotel precário onde vivem as personagens a convida para beber, ela recusa. Sai em busca do marido e vai ao bar de costume. Lá chegando, encontra amigos que lhe dizem: "Não é como se ele nunca tivesse desaparecido antes. Você conhece esta prática. Espera por ela". Como se ela estivesse em busca disso?

Mais adiante, exaurida pela inutilidade das buscas, bate à porta do vizinho, entra e se embriaga. O preço é alto - o vizinho a estupra e agride. Ela sai com a face muito machucada, exausta e mais perdida do que quando entrara. Sai desgovernada, dirigindo sob uma chuva torrencial. Meio sem rumo, chega à delegacia e não sabe o que fazer: se denunciar o vizinho, Eddie poderá ma-tá-lo. Seu atordoamento, os sinais visíveis de agressão, somados à extensa ficha criminal de Eddie, fornecem indícios para a delegada concluir que ela fora agredida por Eddie, e Maureen não consegue desfazer o engano. Combina com a delegada que em caso de necessidade telefonaria para a delegacia, e vai embora.

Na rua, leva um tombo, ensopando-se e piorando ainda mais a sua situação. Porém, parece não se importar - não "sente" seu corpo? -, não sabemos bem o porquê, e entra no bar, onde encontra Eddie, que se põe a conversar com ela, ignorando a presença de pessoas ao redor, fazendo perguntas, demonstrando interesse por ela e por sua saúde, com bastante intimidade, ele de um lado do bar e ela do lado oposto, numa demonstração de amor; mas como sabemos que a deixara abandonada por alguns dias, tudo nos leva a crer se tratar de um amor de tipo fusional, no qual os parceiros nutrem uma crença secreta de possuírem certo conhecimento e domínio do ser amado. Questionada sobre os ferimentos no rosto, ela alega que foi uma queda na rua, desviando de contar a verdade. Ele a leva ao hospital, ao ser examinada pelo médico, sente cócegas, se contorce e ri, meio infantil, deixando Eddie enfurecido e enciumado! O que se passa com Maureen e Eddie? Enfurecido, Eddie a retira da consulta e saem para a noite, dançam e comem.

Ao chegarem ao hotel, avistam o vizinho no corredor. Maureen se lança sobre ele, batendo e gritando, pedindo que Eddie também bata nele. O marido não sabe por que deveria fazê-lo, mas acaba socando o homem. Vai ficando clara a impulsividade dos dois, que no caso de Eddie pode se tornar incontrolável, com risco de atos criminosos.

Na manhã seguinte, Eddie, que já dava sinais de surto psicótico, com histórias desconexas, entende que fora enganado e que Maureen havia mentido para ele. Quando Maureen acorda, percebe que ele está armado, dizendo que vai trucidar o vizinho.

Na sequência, Maureen avisa a delegada por telefone.

Eddie está no balcão do bar, quando a polícia chega, ele atira, joga-se contra a vidraça e sai correndo pela rua. Senta numa praça, sente calor, abaixa as calças e se espanta ao ver que está cercado por policiais.

Na cena seguinte, Eddie aparece já internado e vestindo uma camisa de força. Maureen o visita na cela, declara sua culpa dizendo que o vizinho a tinha agredido, que ele está doente e que virá buscá-lo em três meses.

Corte. Dez anos depois.

Maureen está casada, tem três filhas (sendo a primeira de Eddie) e uma vida estável, amparada financeiramente pelo segundo marido.

Eddie é liberado, acreditando que só se passaram três meses. Aprendeu a controlar a impulsividade, mas ainda lhe falta a consciência espaço/tempo. Ele vai procurar a ex-mulher.

Em meio ao desespero, Maureen tenta o suicídio, e Eddie, que está espiando a casa dela, acaba salvando-a.

Existe nela uma grande divisão de sentimentos entre a família construída durante esses anos e o amor por Eddie. Vai ficando claro também que tais personagens, embora desajustadas, são capazes de uma sinceridade sem tamanho. Maurren é sincera e Eddie também. Eles são adoráveis e inconsequentes, porém, totalmente compreensíveis do ponto de vista dos afetos envolvidos. Tudo muito aparente, sem censura.

Em uma luta corporal bastante confusa, Eddie consegue desarmar o marido atual de Maureen (aprendeu na internação a ter controle sobre a impulsividade; antes, quando contrariado, tudo que sabia fazer era matar ou quebrar uma garrafa na cabeça dos seus oponentes, e ele não iria mais agir dessa maneira), e então diz ao outro homem: "Ela não te ama, ela não me ama, ela é adorável (she's so lovely)". Não se pode esperar estabilidade vinda de Maureen, ela tem o encanto da imaturidade emocional, que também provoca irritação e desespero no outro, por parecer histeria.

Maureen acaba seguindo Eddie, abandonando tudo que ha-via sido construído nesses dez anos, marido, três filhas, casa...

Esse relato do filme, que certamente não dispensa assisti-lo, é suficiente para o presente estudo, ajudando a encontrar elementos que permitam avançar: Maureen (borderline) coloca o próprio corpo em estado de anestesia, encontrando, desse modo, suporte para angústias impensáveis? E, simultaneamente, coloca seu corpo em estado de intensa dor, em função de uma relação fusional marcada pela impossibilidade de viver a separação?

O segundo companheiro, Joey, é que não suporta ser abandonado; então, nessa nova relação, ela não corria perigo. Porém, Joey consegue estruturar uma vida em família e usufruir disso, ao passo que, para Maureen, o coração ficara preso a Eddie.

O desejo borderline

Assim tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, temos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo - num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva - e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma - é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que "na ausência da amada o sol não brilha", e outras coisas assim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta que terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens. Têm que ser duas paisa-gens, mas pode ser - não querendo admitir que um estado de alma é uma paisagem - que se queira simplesmente interseccionar um estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior.

(Fernando Pessoa, "Cancioneiro")

Esse excerto de Fernando Pessoa contempla de forma literária a questão dos espaços interno e externo, trabalhada a partir da perspectiva do exterior e do espírito, com grande sensibilidade demonstra uma tese psicanalítica: sendo o "espírito" uma paisagem tanto quanto o mundo externo, a consciência precisaria dar conta das duas paisagens que se interpenetrariam, e o pulo do gato seria dar conta das duas paisagens, saber de si e saber da existência do outro separado de si, fenômeno que não acontece com o borderline, que, como outros pacientes difíceis, não neuróticos,"age" no exterior parte da turbulência que sente ou simplesmente sai em busca dessa turbulência mundo afora. A paisagem interna funde-se com a paisagem externa e o paciente toma uma coisa pela outra. Não tendo desenvolvido a capacidade de separar o que está sentindo do que está acontecendo e se está sentindo muita turbulência interna, o borderline procura causar turbulência no ambiente, provocando situações estressantes, ruidosas, desagradáveis e conflitantes com o analista.

No começo do filme, Maureen está grávida, esfomeada e sem dinheiro. Por que ficou nessa situação? Eddie frequentemente a deixa abandonada à própria sorte, e ela fica? Ao tentar se consolar com um amigo em comum, este nos dá uma importante pista, desde a abertura do filme podemos fazer a seguinte questão: quem é Maureen, ela sabe quem é?

Ora, é certamente disso que se trata ao pensarmos na clínica dos borderlines. Tais pacientes não sabem quem são; há uma questão de identidade muito crucial. O borderline traz como restos/relíquias da infância mais arcaica uma insuficiência de identificações. Isso o conduz a uma busca de identificações alimentadoras, mantendo-se aberto e poroso ao seu ambiente e às pessoas à sua volta.

Green (1988) foi o autor que mais se dedicou a estudar a metapsicologia do borderline (fronteiriço e estado-limite são outros nomes usados). Ao iniciar seu capítulo sobre o conceito "fronteiriço", no primeiro parágrafo nos dá notícia da importância que essa questão adquire na nossa clínica contemporânea: "O protótipo mítico do paciente do nosso tempo já não é mais Édipo e sim Hamlet". Realça, desse modo, a desventura da nossa modernidade sincopada: um homem que já não sabe mais de si mesmo - "ser ou não ser, eis a questão".

Os termos fronteira, borda e limite se referem a uma tendência à insanidade - como se houvesse uma linha demarcando a separação entre a sanidade e a insanidade (loucura)? Porém, em vez disso, o que temos é um vasto território, sem nenhuma divisão e nenhuma demarcação. Guardemos esta importante informação: o fronteiriço é alguém cujo processo de subjetivação não se completou, as fronteiras entre dentro e fora, eu e não eu, não se estabeleceram satisfatoriamente, portanto a grande problemática gira em torno da identidade. O borderline não sabe quem é e fabula que pode vir a ser quem imagina que quer ser.

Atento-me à questão da relação do borderline com o objeto primário nos efeitos duradouros e estruturantes da vida psíquica. Parece-me que no caso do borderline o caminho é bastante tortuoso. Como esse objeto foi insatisfatório, o paciente se vê impossibilitado de substituí-lo e simbolizá-lo, o que acarreta angústia de separação, por um lado; por outro lado, como não tem uma barreira de proteção adequada, que lhe permita manter uma boa distância para relações interpessoais, a aproximação do outro, mesmo que solícita, sempre é sentida como excessiva, gerando uma angústia de intrusão. Isso produz um efeito paradoxal para o borderline e para quem com ele convive - o conflito circunscreve o Ego e o objeto. Ou seja, um paciente borderline puxa e empurra, ama e odeia, gruda no seu analista e abandona o tratamento. E também usa o corpo como uma espécie de plataforma para desencadear a avalanche de afetos desorganizados que o acomete - pode se automutilar, deixar-se acidentar, deixar-se ser agredido etc.

O borderline sofreu de carências objetais profundas, logo, não teve contempladas suas necessidades narcísicas fundamentais e constituintes. Como aponta Green (1988), esses pacientes parecem magoados em seu ser. As feridas narcísicas vêm sangrando.

Não temos nenhuma informação desse tipo sobre Maureen, mas sabemos que a separação é insuportável, e Eddie vive sumindo, o que acarreta frequentes desabamentos de Maureen - ela bebe, sai como louca pela rua e entra na casa do vizinho, imprudentemente. E, finalmente, quando Eddie é internado, constitui família com Joey, mas o abandona, como se estivesse à espera de Eddie e esse tempo tivesse sido o da espera por ele.

Christopher Bollas, autor de um artigo muito original e fecundo sobre esse tipo de padecimento psíquico, afirma:

O trabalho com pacientes borderlines sugere a seguinte hipótese: tenham sido eles crianças inerentemente perturbadas ou desorganizadas pelo ambiente, ou ambos, seu objeto primário é menos uma possibilidade de introjeção... e mais um efeito recorrente no self. Como o vento sopra entre as árvores, é algo que se move através do self... tal turbulência não é simplesmente um afeto. Este estado mental tem como característica uma intensidade mental violenta - um pensar, pensar, e mais uma vez pensar sobre x - geralmente acompanhada de um falatório inútil... (2003, p. 7)

A busca de satisfação das necessidades básicas torna-se inoperante, dado que a matriz objetal gravada foi a de um objeto que não silencia, não ampara e nutre, simplesmente não esteve disponível (por qualquer razão que o tenha impedido) ao infans. Este, além de ficar lançado à própria sorte, tem cravado em si as marcas da turbulência que um ser em nascimento psicológico vivencia. E essa vivência deixa marcas profundas, não verbais e inacessíveis ao próprio indivíduo. Temos notícias desses acontecimentos em idade tenra por meio dos fatos narrados pelo paciente, mas principalmente pela contratransferência, que adquire um valor fundamental para essa clínica.

Wilfred Bion, autor de uma teoria psicanalítica que contempla de maneira bastante abrangente tais estados, tem uma expressão curiosa para os encontros humanos em geral, mas que acredito serem em especial buscados pelo borderline. Cito aqui:

Quando duas personalidades se encontram, cria-se uma tempestade emocional. Se elas fazem contato suficiente para se darem conta uma da outra, ou mesmo o suficiente para não se darem conta uma da outra, produz-se um estado emocional pela conjunção desses dois indivíduos, e a perturbação resultante dificilmente será considerada, necessariamente, um avanço sobre a situação caso jamais houvessem se encontrado. Entretanto, uma vez que houve o encontro, e uma vez que essa tempestade emocional ocorreu, as duas partes envolvidas nessa tempestade podem decidir "tornar proveitoso um mau negócio". (1987, p. 247 - tradução livre)

A turbulência emocional é um fenômeno humano. Dentro da situação analítica, a turbulência pode ser examinada, e é essa possibilidade que põe em movimento a cena analítica, o jogo das emoções dentro da sessão. O par transferência/contratransferência constitui uma unidade na qual o cerne é a eficácia analítica.

Citando Bollas mais uma vez: "Mesmo que aquela paciente perseguisse seu objeto - agora sob a forma de uma turbulência de elementos fragmentados -, sentia-se mais próxima de mim quando eu me tornava aquele que provocou tal angústia" (1987, p. 7).

Maureen sai do apartamento do vizinho desgrenhada (e evidentemente estuprada) e em pior estado do que antes. E para onde vai? Sai pela rua, meio sem rumo, e cai no chão de cara, piorando ainda mais seu estado. Será que ela sente seu próprio corpo nesse momento? Percebe que está correndo perigo? Sente dor? Grávida, esfomeada, agredida, parte para a delegacia. É interrogada pela delegada, mas esta, mesmo que tenha se mostrado atenciosa, acaba descartada por Maurren, como frequentemente acontece com o analista em relação ao paciente borderline, que supostamente chega esfomeado por atenção. Portanto, temos a impressão de que diante de tanta dor pelo abandono sofrido desde o sumiço de Eddie, Maureen não se dá mais conta de si mesma e seu corpo vira uma espécie de apoio para angústias impensáveis. E é desse modo que ela continua indo para frente e para frente e para frente.

E por que o borderline "puxa e empurra", como colocado anteriormente? Nas suas especulações metapsicológicas, Green propõe "não uma teoria da clínica, mas um pensamento clínico" (Candi, 2010, p. 195) que acaba encontrando um solo fértil, embora muito angustiante quanto à problemática dos estados-limite, cujo desafio é trabalhar nos limites do analisável. Formula então a noção da função do limite como conceito, definido por sua funcionalidade.

Para Green, a garantia de funcionalidade do aparelho psíquico reside em duas áreas fronteiriças:

A primeira área permite a delimitação e a integração do mundo de dentro e do mundo de fora, e a segunda (que será comparada ao pré-consciente) serve de barreira de contato entre os conteúdos conscientes e inconscientes, funcionando como uma pele para a vida fantasmática do inconsciente. (Green, citado por Candi, 2010, p. 200)

Nosso paciente borderline, quando puxa e empurra, está tentando viver no real sua subjetividade, encarnando num acting desesperado suas angústias. Nesse movimento, o próprio corpo pode servir de palco para tal encenação, tanto anestesiado, como vemos em muitas cenas nas quais Maureen se deixa abater, quanto em momentos em que a dor da automutilação fornece um "local", uma espécie de paisagem exterior para as angústias impensáveis.

E, voltando a Fernando Pessoa, desse modo, as paisagens se fundem, formando apenas uma, causando a perda da dimensão espacial. No caso do paciente borderline, a impossibilidade de distinção entre interior e exterior se traduz em um não saber mais de si, nem muito menos do outro, um não saber o que é o seu sentimento e o que está acontecendo na realidade. E, como quisemos apontar no presente texto, Maureen utiliza o próprio corpo, ora anestesiado, ora colocado em intensa dor, para tentar suportar tais estados de extrema angústia decorrentes dessa indiscriminação.

Citando novamente Bollas:

O fato de o desejo borderline localizar-se com frequência entre o externo e o interno - relacionado a um acontecimento externo, mas imediatamente evocado internamente - dá testemunho do lugar inconsciente do objeto primário do borderline: um fora que é dentro. O self está na borda de uma simultaneidade de valorações: o objeto que impacta o ego e o coloca em alerta, e o objeto que toma a forma precisa das características do mundo interno do sujeito naquele momento. (2003, p. 9)

Para concluir, podemos dizer que o trabalho com a clínica borderline é, por um lado, e em muitos momentos, muito árduo e frustrante para o analista, por outro lado, contém tantos elementos instigantes para seu próprio desenvolvimento intelectual, técnico e humano, que poderíamos, parafraseando o título do filme, nomeá-lo de clínica "so lovely".

 

REFERÊNCIAS

Antonelli, E. (1998). Em defesa de uma certa porosidade. Percurso, n. 42.         [ Links ]

Bion, W. (1987). Turbulência emocional. Revista Brasileira de Psicanálise, 21(1).         [ Links ]

Bollas, C. O. (2003). O desejo borderline. Percurso, n. 30.         [ Links ]

Candi, T. S. (2010). O duplo limite: o aparelho psíquico de André Green. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Green, A. (2002). Histeria e estados-limites: quiasma. Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 36, n. 2.         [ Links ]

______. (1988). O conceito de fronteiriço. In A. Green. Sobre a loucura pessoal. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Santos, E. Angústias impensáveis: mudanças na psicanálise tradicional. Texto recuperado em 08.08.2016: www.psicanaliseefilosofia.com.br/textos/angustias%20impensaveis.pdf.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
ELISABETH ANTONELLI
Rua Monte Alegre, 428/53
05014-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 3862-1703
bethantonelli@gmail.com

Recebido 10.08.2016
Aceito 10.09.2016

 

 

1 Para compreender o sentido de "angústias impensáveis" precisamos entender um pouco da psicanálise winnicottiana. As angústias são definidas como impensáveis porque, por um lado, "não são definíveis em termos de relações pulsionais de objeto, baseadas em relação de representacionais de objeto (percepção, fantasia, simbolização)", e, por outro lado, "porque estamos nos referindo a um momento pré-verbal, pré-psíquico e pré-representacional, anterior ao início de qualquer capacidade relacionada a mecanismos mentais e muito anterior ao reconhecimento de impulsos instintuais como fazendo parte do si-mesmo e tendo um significado". As angústias impensáveis, portanto, são traumas localizados nos estágios iniciais do processo de amadurecimento humano, entendendo-se trauma, nesse início, como quebra da continuidade na existência de um indivíduo. Depois de uma experiência traumática, defesas são organizadas a fim de evitar que as angústias impensáveis voltem a ser experienciadas. "Quando o padrão do ambiente é traumático", esclarece Elsa O. Dias, "ocorre uma interrupção do processo de amadurecimento. As angústias impensáveis quebram a incipiente integração, isto é, a incipiente experiência de um si-mesmo, de qualquer grau ou tipo, mas anterior à constituição de um eu, que existe por ocasião do fracasso ambiental" (Santos, 2016, p. 1).

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