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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.62 São Paulo ago./dez. 2016

 

EM PAUTA | CORPO REFLEXIVO: O EU E O OUTRO

 

O aniquilamento do corpo em Auschwitz: análise semiótica do relato de Primo Levi

 

The annihilation of the body at Auschwitz: semiotic analysis of the account of Primo Levi

 

 

Izidoro Blikstein

Mestre em linguística comparativa pela Université de Lyon. Doutor, livre-docente e titular em linguística e semiótica pela Universidade de São Paulo. Professor-adjunto de comunicação na Fundação Getulio Vargas de São Paulo. Consultor em comunicação corporativa, redação empresarial e media training. Autor de Falar em público e convencer (2016)

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RESUMO

O aniquilamento do corpo em Auschwitz: análise semiótica do relato de Primo Levi No contexto da temática do corpo, meu objetivo, neste artigo, é demonstrar como a "originalidade" dos métodos de extermínio dos prisioneiros, nos campos de concentração nazistas, começavam pelo aniquilamento do corpo. Tal metodologia foi descrita, minuciosamente, por um sobrevivente de Auschwitz, o químico e, sobretudo, contundente escritor, Primo Levi. Exímio observador semiótico, ele focaliza, particularmente, as relações entre as representações sígnicas e a "verdade" interna dos prisioneiros. Com tal enfoque semiótico, Levi con-segue demonstrar que a política de extermínio praticada pelo nazismo deu-se antes das câmaras de gás e dos fornos crematórios: a "originalidade" do nazismo - para usar a expressão do historiador Raul Hilberg (1985) - foi a de, antes de tudo, aniquilar o indivíduo. Essa política de aniquilamento consistiu, como tão bem ilustrou Levi, na destruição da verdade interna do indivíduo a partir da destruição das representações sígnicas externas.

Palavras-chave: Aniquilamento do corpo. Campos de concentração. Holocausto. Cinésica. Proxêmica.


SUMMARY

In the context of the subject of the body, my purpose in this article is to demonstrate how the "originality" of the methods of extermination of prisoners in the Nazi concentration camps began with the annihilation of the body. Such methodology has been described, in detail, by a survivor of Auschwitz, the chemist and, above all, blunt writer, Primo Levi. An eminent semiotic observer, he focuses particularly on the relations between the signic representations and the internal "truth" of the prisoners. With such a semiotic approach, Levi can demonstrate that the policy of extermination practiced by the Nazis took place before the gas chambers and crematorium: the "originality" of Nazism - to use historian Raul Hilberg's expression (1985) - it was, first of all, to annihilate the individual. This policy of annihilation consisted, as Levi has so well illustrated, in the destruction of the inner truth of the individual from the destruction of external signic representations.

Keywords: Corporal annihilation. Concentration camps. Holocaust. Kinesics. Proxemics.


 

 

Auschwitz - ou o anus mundi, no dizer do historiador L. Poliakov (1964) - operou uma fratura definitiva na história do mundo ocidental. Com Auschwitz, o mundo perdeu o sentido, ou melhor, assumiu novos sentidos, produzidos pelo discurso dos administradores e dos industriais envolvidos na construção e manutenção dos Kozentrationslager ou K. L. (campos de concentração). Com efeito, na volumosa documentação apresentada por J. C. Pressac sobre a "indústria da morte" montada nos campos de extermínio nazistas, é possível observar a normalidade, e até mesmo a naturalidade, de que se investiu o discurso dos técnicos que se empenhavam na fabricação de incineradores, cada vez mais eficientes e econômicos, para os prisioneiros de Auschwitz, Dachau, Buchenwald etc. etc.:

O construtor indicava, sugerindo assim a possibilidade de incineradores em série, que a segunda e a terceira incineração não exigiam nenhum combustível suplementar e que as seguintes poderiam ser praticadas quase sem acréscimo de combustível, apenas com insuflação de ar no crisol. Ele estimava em um hora e meia a duração de incineração de um corpo de 70 kg num caixão de madeira de 35 kg. A partir desses dados, os SS deduziram que incinerar um corpo sem caixão permitiria ganhar uma meia hora e que, de manhã, 100 kg de coque lhes seriam suficientes para reduzir a cinzas uma vintena de corpos durante o dia... (Pressac, 1993, p. 6)

Tal discurso - que poderia figurar numa peça de Ionesco, Beckett ou Jarry - não seria tão absurdo assim: mudando-se os nomes, o espaço e o tempo, os argumentos usados, em 1939, pelo competente fabricante de fornos industriais, o engenheiro Kurt Prüfer, da Topf und Söhne (empresa vencedora da concorrência para a fabricação de incineradores nos campos de extermínio nazistas), poderiam caber perfeitamente agora na proposta de uma empresa empenhada em persuadir o cliente das vantagens de seu produto; é o que se pode depreender do comentário de Pressac:

[...] a astúcia do engenheiro Prüfer foi compreender que o ambiente concentracionário não exigia um forno civil inutilizável e ornado de um frontão neogrego em mármore, como o que foi proposto pela empresa Müller, mas um modelo simplificado, eficaz, utilizável [...] e a preço módico. Um forno móvel (sem isolamento interno e revestido de placas de ferro) com dois crisóis incineradores, movidos a ar insuflado, aquecido a óleo cru e com exaustão forçada... foi sua resposta. Esse modelo... foi instalado em Dachau no final de 1939. Seu rendimento incinerador era estimado em dois corpos por hora. (Pressac, 1993, p. 7)

A aceitação natural dessas vantagens técnicas por parte dos encarregados dos campos de concentração indica a normalidade e a coerência com que se foi instaurando a "lógica" de um sistema tão absurdo que falar dele ou tentar explicá-lo pressupõe, de partida, um problema (ou mesmo um impasse) fundamental para a linguística e a semiótica: até que ponto é possível conhecer, por inteiro, a realidade do universo concentracionário? Até onde seria possível relatar, com precisão e objetividade, a experiência nos Kozentrationslager? Apesar da afirmação de Émile Benveniste, para quem "a língua é o interpretante de todos os sistemas, linguísticos e não linguísticos" (Benveniste, 1974, p. 60), como poderia a língua ser o fiel interpretante desse mundo ao mesmo tempo absurdo e... normal?

Sobrevivente de Auschwitz - para onde foi deportado em 1944 -, o escritor italiano Primo Levi observa que, para rebater as teses revisionistas que negam a existência dos campos de extermínio e o genocídio premeditado de milhões de pessoas, "[...] é natural e óbvio que o material mais consistente para a reconstrução da verdade dos campos seja constituído pelas memórias dos sobreviventes [...]" (Levi, 1990, p. 4). A preocupação de Primo Levi com a veracidade dos relatos de sobreviventes se justifica plenamente, pois ainda há aqueles que negam a existência de Auschwitz e outros campos de extermínio. A esse propósito, vale conferir as críticas contundentes de Pierre Vidal-Naquet (1991) às teses "negacionistas" de Robert Faurisson (e também a Noam Chomsky, que defendeu Faurisson!). Por outro lado, Primo Levi, ele mesmo memorialista de Auschwitz, reconhece os inevitáveis impasses linguísticos e semióticos que enfrentam os sobreviventes ao tentar contar sua experiência no universo concentracionário; esses impasses e bloqueios, como assinala Levi, envolvem diferentes etapas e aspectos do processo comunicacional, como veremos a seguir.

 

I) Falta de credibilidade da mensagem

A monstruosidade da experiência concentracionária era tal que tanto os opressores como as vítimas tinham consciência da dificuldade que teriam os outros em acreditar nos relatos. Assim, os oficiais nazistas

[...] se divertiam avisando cinicamente os prisioneiros: [...] ainda que fiquem algumas provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos narrados são tão monstruosos que não merecem confiança, [...] que são exageros da propaganda aliada e acreditarão em nós, que negaremos tudo, e não em vocês. (Levi, 1990, p. 1)

Já os sobreviventes temiam que um sonho se tornasse realidade:

[...] o de terem voltado para casa e contado com paixão e alívio seus sofrimentos passados, dirigindo-se a uma pessoa querida, e de não terem crédito ou mesmo nem serem escutados. Na forma mais típica (e mais cruel), o interlocutor se virava e ia embora silenciosamente. (Levi, 1990, p. 1)

 

II) Percepção fragmentária e parcial da realidade

Estar no campo não era condição suficiente para que o prisioneiro percebesse claramente as dimensões e a estrutura do sistema concentracionário:

[...] nas condições desumanas a que estavam submetidos, era raro que os prisioneiros pudessem adquirir uma visão de conjunto de seu universo. Podia acontecer, sobretudo àqueles que não compreendiam o alemão, que os prisioneiros não soubessem nem mesmo em qual ponto da Europa se achava o Lager [campo] em que estavam e ao qual tinham chegado após uma viagem massacrante e tortuosa em vagões lacrados. Não sabiam da existência de outros Lager, talvez a poucos quilômetros de distância. Não sabiam para quem trabalhavam [...]. (Levi, 1990, p. 4)

 

III) Impossibilidade de comunicar a experiência integral

Primo Levi aponta um cruel paradoxo, ao observar que os únicos prisioneiros que teriam competência para relatar integralmente sua experiência, já não se encontravam mais em condições de fazê-lo... por razões óbvias:

[...] hoje se pode bem afirmar que a história dos Lager foi escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu próprio, não tatearam seu fundo. Quem o fez não voltou, ou então sua capacidade de observação ficou paralisada pelo sofrimento e pela incompreensão. (Levi, 1990, p. 5)

 

IV) Diferenças crescentes entre os repertórios dos sobreviventes e dos ouvintes ou leitores

Aí reside, talvez, a barreira crucial entre o relato dos sobreviventes e a percepção dos destinatários. Com o passar dos anos, vai ficando cada vez mais difícil, sobretudo para o repertório de um jovem, entender a organização e a estrutura dos campos de concentração e de extermínio. Dos alunos de uma escola, para quem expunha a experiência vivida em Auschwitz e, principalmente, a quase absoluta impossibilidade de escapar do campo, Primo Levi recebeu uma verdadeira aula de "técnicas" de fugas espetaculares:

[...] Meu interlocutor... me expôs o plano que arquitetara: aqui, de noite, degolar a sentinela; depois, vestir seu uniforme; correr imediatamente à central e inter-romper a corrente elétrica, de modo que os holofotes se apagariam e se desativaria a rede de alta tensão; por fim, eu poderia ir embora tranquilo. Acrescentou seriamente: "Se lhe acontecer de novo, faça como eu disse: verá que consegue". (Levi, 1990, p. 98)

Considerando que, em virtude dos inevitáveis bloqueios e barreiras, as narrativas dos sobreviventes podem carecer de coerência, precisão e objetividade, pondo-se em questão, portanto, a credibilidade desses depoimentos, aqueles que querem manter viva e verdadeira a memória do Holocausto têm investido na produção de trabalhos científicos, apoiados, por exemplo, na inesgotável documentação liberada pelos Arquivos Centrais de Moscou, em que se expõe, em seus mínimos pormenores técnicos, o planejamento da construção de câmeras de gás e de for-nos crematórios. É o caso do já citado trabalho de Jean-Claude Pressac (1993), empenhado na coleta de documentos que comprovem, com todas as minúcias técnicas, o funcionamento da indústria da morte nos campos nazistas. Mas, por mais inaceitável e impensável que seja, essa precisão técnica pode ser contestada por um contra-argumento "negacionista"! Basta ler o seguinte trecho do Relatório Leuchter, publicado por S. Castan, diretor da editora Revisão, de Porto Alegre:

Relativamente às outras alegadas instalações de execução em Chelmno (caminhões de gás), Belzec, Sobibor, Treblinka e quaisquer outras, devemos observar que o gás de monóxido de carbono foi alegadamente usado. Como examinamos acima, o gás de monóxido de carbono não é gás de execução e o autor acredita que, antes de o gás poder causar efeito, todos teriam sido sufocados. Assim sendo, a melhor opinião do autor, como engenheiro, é a de que ninguém morreu por execução a CO... operando em capacidade máxima, as alegadas câmaras de gás somente (sic!) teriam podido processar 105.688 pessoas em Birkenau, e isso ao decorrer de período muito mais longo. (Castan, 1989, p. 49)

Como se percebe, a tentativa de provar, de forma objetiva e rigorosa, a existência de câmaras de gás e de crematórios pode esbarrar em objeções de ordem igualmente objetivas e rigorosas (por mais absurdas e indecentes que sejam), produzindo-se intermináveis polêmicas e escamoteando-se algumas questões que nos parecem essenciais para compreender como Auschwitz foi possível. Na verdade, talvez não seja tão necessário perseguir essa verdade exterior, objetiva e palpável - amplamente comprovada por uma significativa documentação escrita e iconográfica que se produziu e vem sendo produzida no mundo inteiro. Mas, como a distância, no tempo e no espaço, não nos permite ter um conhecimento total da realidade objetiva dos campos de concentração, talvez seja muito mais convincente e contundente, no momento atual, penetrarmos na verdade subjetiva, ou melhor, na verdade interna do universo concentracionário, isto é, no mundo interior dos prisioneiros: afinal, como viviam os prisioneiros? Como acordavam, como passavam o dia e se alimentavam? Como dormiam e satisfaziam suas necessidades? Como cuidavam do corpo, como se sentiam, o que percebiam e o que pensavam? Diante da "lógica" do sistema, talvez essas questões sejam até mais pertinentes do que a realidade externa e objetiva. E aí a semiótica pode ajudar muito na medida em que, ao voltar-se para a constituição e a significação do discurso, ela pode liberar-nos dessa obsessão pelo "verdadeiro", pelo "real", pelo "factual", pelo "preciso": ao debruçar-se sobre o discurso, o olhar semiótico procura captar não só o visível mas, sobretudo, o inteligível. Em outras palavras, a semiótica nos permite perceber como atuam as representações sígnicas externas na estrutura interna dos indivíduos. Nesse sentido, Primo Levi não é exatamente um memorialista: trata-se, isto sim, de um autêntico observador semiótico, pois a descrição que faz do sistema concentracionário focaliza particularmente as relações entre as representações sígnicas e a "verdade" interna dos prisioneiros. Com tal enfoque semiótico, Primo Levi consegue demonstrar que a política de extermínio praticada pelo nazismo deu-se antes das câmaras de gás e dos fornos crematórios: a "originalidade" do nazismo - para usar a expressão do historiador Raul Hilberg (1985) - foi, antes de tudo, aniquilar o indivíduo. Essa política de aniquilamento consistiu, como tão bem ilustrou Primo Levi, na destruição da verdade interna do indivíduo a partir da destruição das representações sígnicas externas. Tratou-se, na verdade, de uma desconstrução semiótica do corpo, nas suas três dimensões: a fala, a cinésica (semiótica dos gestos e movimentos corporais) e a proxêmica (semiótica do corpo no espaço). Em É isto um homem (1988), Primo Levi descreve, com um notável distanciamento crítico, como se desenvolve, passo a passo, a sua própria desconstrução semiótica. Nas várias etapas do processo (prisão, deportação, viagem de trem, chegada aos campos, internação, iniciação e cotidiano), ocorre uma desmontagem das estruturas sígnicas a tal ponto que o prisioneiro vai perdendo seu referencial semiótico e adquirindo um "novo" repertório:

1) Na etapa da prisão, há uma alteração léxico-semântica fundamental, pois as pessoas passam a ser chamadas de Stuck ("peças" ou "pedaços"):

[...] Com absurda precisão à qual em breve nos acostumamos, os alemães fizeram a chamada. Ao final - Wievel Stuck? [Quantas peças?] - perguntou o sargento, e o cabo, batendo continência, respondeu que as "peças" eram seiscentas e cinquenta, e que tudo estava em ordem... (Levi, 1988, pp. 14-15)

2) Na viagem, surgem as primeiras mudanças na proxêmica, com a redução drástica do espaço e as agressões físicas:

[...] E lá recebemos as primeiras pancadas... como é que, sem raiva, pode-se bater numa criatura humana?... Os vagões eram doze, e nós, seiscentos e cinquenta... vagões de carga, trancados por fora, e, dentro, homens, mulheres e crianças socados sem piedade, como mercadoria barata, a caminho do nada [...]. (Levi, 1988, p. 15)

3) Na chegada ao campo, a cinésica e a proxêmica da automatização e da perda de identidade: "Emergiram... dois grupos de sujeitos estranhos. Caminhavam em linhas de três, com um andar esquisito, atrapalhado, a cabeça baixa, os braços rígidos. Um boné ridículo, uma longa túnica listrada..." (Levi, 1988, p. 19).

4) Durante a internação e a iniciação, surgem o espaço sem sentido, a cinésica da imobilidade, objetos sem função e uma sede infinita:

Isso é o inferno. Hoje, em nossos dias, o inferno deve ser assim: uma sala grande e vazia, e nós, cansados, de pé, diante de uma torneira gotejante, mas que não tem água potável, esperando algo certamente terrível, e nada acontece... (Levi, 1988, p. 20)

5) A desconstrução continua na proxêmica do alinhamento e na cinésica do desnudamento: "Devemos formar filas de cinco, deixando um espaço de dois metros entre um e outro; a seguir, despir-nos..." (Levi, 1988, p. 20).

6) O desnudamento completa-se na perda de significado dos sapatos e dos cabelos:

Chega um sujeito de vassoura que leva os sapatos todos, varrendo-os para fora da porta, todos juntos, numa pilha só. Está maluco, vai misturá-los todos, noventa e seis pares de sapatos... Segundo ato. Quatro homens entram bruscamente com pincéis, navalhas e tesouras para a tosquia... eles simplesmente nos agarram, e num instante estamos barbeados e tosquiados. Com que caras ridículas ficamos sem cabelos... (Levi, 1988, p. 21)

7) A ausência de qualquer explicação é uma forma de esvaziar a significação da expressão sígnica corporal:

Por que, então, nos deixam aqui de pé e não nos dão de beber e ninguém nos explica nada; e estamos sem sapatos, sem roupa, com os pés na água, e faz frio, e há cinco dias que viajamos e nem podemos sentar? (Levi, 1988, p. 22)

8) A iniciação em Auschwitz consistiu, primeiro, nesse esvaziamento semiótico do corpo; uma vez "esvaziados", os prisioneiros deverão construir uma nova semiótica, com novos papéis e significados:

... quem é bom boxeador tem chance de ganhar uma vaga como cozinheiro... quem trabalha bem recebe bônus-prêmios com os quais pode comprar tabaco e sabão... a água, realmente, não é potável, mas... a cada dia recebe-se um café de cevada, só que em geral ninguém o toma, já que a sopa é tão aguada que, sozinha, basta para aplacar a sede... (Levi, 1988, p. 24)

9) Inseridos no cotidiano do campo, os prisioneiros incorporam novos signos, começando por um batismo que indica, no próprio corpo, sua nova identidade: "Häftling [prisioneiro]: aprendi que sou um Häftling. Meu nome é 174.517; fomos batizados, levaremos até a morte essa marca tatuada no braço esquerdo" (Levi, 1988, p. 25).

10) A desconstrução semiótica do corpo e da identidade dos prisioneiros implica, como vimos, a criação de novos signos e funções novas dos objetos, ou melhor, surge uma semiótica nova para

a) a música:

Uma banda de música [...] toca "Rosamunda", essa canção popular sentimental, e isso nos parece tão absurdo que nos entreolhamos sorrindo com escárnio... A banda, porém, depois de "Rosamunda", continua tocando uma música após outra, e lá aparecem nossos companheiros, voltando em grupos de trabalho. Marcham em filas de cinco, com um andar estranho, não natural, duro, como rígidos bonecos feitos só de ossos; marcham, porém, acompanhando exatamente o ritmo da música. (Levi, 1988, p. 28)

b) as figuras geométricas e as cores: "[...] os criminosos levam, ao lado do número, costurado no casaco, um triângulo verde; os políticos, um triângulo vermelho; os judeus, que formam a grande maioria, levam a Estrela de David, vermelha e amarela..." (Levi, 1988, p. 31).

Aprendemos o valor dos alimentos; nós também, agora, raspamos o fundo da gamela, e a seguramos debaixo do queixo quando comemos pão, para não desperdiçar migalhas... Aprendemos que tudo serve: o pedaço de arame, para amarrar os sapatos; os trapos, para envolver os pés; o papel, para forrar (embora proibido) o casaco contra o frio. (Levi, 1988, p. 31)

c) os alimentos e os objetos:

Aprendemos o valor dos alimentos; nós também, agora, raspamos o fundo da gamela, e a seguramos debaixo do queixo quando comemos pão, para não desperdiçar migalhas... Aprendemos que tudo serve: o pedaço de arame, para amarrar os sapatos; os trapos, para envolver os pés; o papel, para forrar (embora proibido) o casaco contra o frio. (Levi, 1988, p. 31)

d) os costumes, a ética e... a cinésica: "Aprendemos que, por outro lado, tudo pode ser roubado... e para evitar isso tivemos que aprender a arte de dormir apoiando a cabeça numa trouxa feita com o casaco e contendo todos os nossos pertences, da gamela aos sapatos" (Levi, 1988, pp. 31-32).

e) os hábitos, o vestuário, a higiene, as unhas e os sapatos:

Inúmeras são as proibições: [...] dormir com o casaco posto, ou sem ceroulas, ou de chapéu na cabeça... sair do Bloco com o casaco desabotoado ou com a gola levantada... Infindáveis e insensatos são os rituais obrigatórios: ...deve-se arrumar a cama, perfeitamente plana e lisa; passar nos tamancos barrentos a graxa... raspar das roupas as manchas de barro... à noite, a gente deve submeter-se ao controle dos piolhos e ao da lavagem dos pés... aos domingos... ao controle geral da sarna e ao dos botões do casaco, que devem ser cinco... Quando as unhas crescem, a gente precisa cortá-las, e isso só pode ser feito com os dentes (quanto às unhas dos pés, basta o atrito dos tamancos)... Se um sapato aperta, a gente deve apresentar-se, à noite, à cerimônia da troca de sapatos... E não é de crer que os sapatos signifiquem pouco, na vida do Campo. A morte começa pelos sapatos. Eles se revelaram, para a maioria de nós, verdadeiros instrumentos de tortura que, após umas horas de marcha, criam feridas dolorosas, sujeitas a infecção na certa... seus pés incham... mas entrar no hospital com o diagnóstico dicke Füsse [pés inchados] é sumamente perigoso, já que todos sabem (e especialmente os SS) que dessa doença, aqui, não dá para se curar. (Levi, 1988, pp. 32-33)

Com a frase A morte começa pelos sapatos, Primo Levi criou um ícone que sintetiza perfeitamente o pesadelo semiótico do universo concentracionário. Na verdade, o prisioneiro "desconstruído", destituído de suas representações sígnicas pessoais e familiares, já estava morto antes de entrar nas câmaras de gás. Essa é a triste originalidade do nazismo. Mas é oportuno assinalar que essa morte semiótica foi o resultado da lógica concentracionária, cuja função era apagar todos os signos de identidade e de individualidade do prisioneiro com a aplicação rigorosa, metódica, regular, redundante e diária de complicadíssimos regulamentos e rituais, resultando daí movimentos desprovidos de sentido e que levavam a lugar nenhum: "Esta será, então, a nossa vida. Cada dia, conforme o ritmo fixado, Ausrücken e Einrücken, sair e voltar; trabalhar, dormir e comer; adoecer, sarar ou morrer" (Levi, 1988, p. 34).

Ausrücken... Einrücken, sair e entrar, sair e entrar... é uma técnica de aniquilamento corporal tão eficaz que pode derrubar qualquer tese negacionista.

 

REFERÊNCIAS

Benveniste, É. (1974). Problèmes de linguistique générale (Vol. 3). Paris: Gallimard.         [ Links ]

Blikstein, I. (2003). Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade. São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

Castan, S. E. (1989). Acabou o gás!... O fim de um mito - O relatório Leuchter sobre as alegadas câmaras de gás de Auschwitz, Birkenau e Majdanek. Porto Alegre: Revisão.         [ Links ]

Hilberg, R. (1985). The Destruction of the European Jews. Nova York: Holmes and Meier.         [ Links ]

Levi, P. (1990). Afogados e sobreviventes. São Paulo: Paz e Terra.         [ Links ]

______. (1988). É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

Poliakov, L. (1964). Auschwitz. Paris: Gallimard; Julliard.         [ Links ]

Pressac, J.-C. (1993). Les crématoires d'Auschwitz. Paris: CNRS.         [ Links ]

Vidal-Naquet, P. (1991). Les assassins de la mémoire. Paris: Éditions de la Découverte.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
IZIDORO BLIKSTEIN
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Recebido 11.10.2016
Aceito 29.10.2016

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