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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.62 São Paulo ago./dic. 2016

 

CONTRAPONTO 1: SEXUALIDADES, GÊNERO, ABJEÇÃO

 

Duelo e diálogo: e Deus criou o homem

 

Duel and dialogue: and God created man

 

 

Heloisa de Moraes RamosI; Mirian MalzynerII

IMembro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
IIMembro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo aborda as vicissitudes da integração somatopsíquica, particularmente as questões de gênero, usando referências das artes em geral, dança, cinema e artes plásticas. Pacientes em que a identidade de gênero não corresponde à identidade biológica geram inúmeras questões: estamos diante de uma patologia? Se assim for, de que ordem? Estamos falando de perversão? De um transtorno borderline? Uma psicose? Ou talvez um transtorno narcísico? Ou a partir de outro vértice, uma forma diferenciada de expressão da condição humana, uma patologia do ser? A perplexidade que essas questões trazem para nós psicanalistas leva à busca de novas perspectivas.

Palavras-chave: Integração somatopsíquica. Identidade de gênero.


SUMMARY

This article discusses the vicissitudes of the somato-psychic integration, particularly about gender issues, using as references art, dance and cinema. Pacients whose gender identity and biologic identity do not correspond raise inumerous questions: are we facing a pathology, and if so, what is its nature? Are we talking about perversion? A borderline condition? Narcisism? Or, in another vertex, a differentiated form of expression of human condition, a pathology of the being? The perplexity surrounding these issues lead us psychoanalysts to search for new perspectives.

Keywords: Somato-psychic integration. Gender identity.


 

 

Corpo: ambiguidade e mistério

O tema deste número da ide nos estimulou a pensar e trocar ideias sobre questões da clínica atual, principalmente no que diz respeito às vicissitudes do alojamento da psique no corpo ou, em outras palavras, aos processos de integração somatopsíquicos. A existência humana é essencialmente psicossomática. A localização da psique no soma muitas vezes é vista como óbvia, mas na realidade é algo a ser alcançado. "É uma aquisição que de modo algum se encontra ao alcance de todos" (Winnicott, 1990, p. 143).

Nossa primeira e mais direta associação foi com um espetáculo recente de dança contemporânea, que tivemos o privilégio de assistir: TOROBAKA. Usar a arte como ponto de partida é algo que nos atrai. Há algo de mágico na forma como os artistas veiculam e expressam temas do mundo, nos colocando em contato com aquilo que lá está, de forma até então indizível, sem a inútil tentação de "explicar".

Numa breve descrição, TOROBAKA reúne dois bailarinos de origens diferentes: um espanhol, Israel Galvan, de dança flamenca, e um inglês, Akram Kham, de origem indiana, fortemente ligado à dança clássica Khatac. Em um diálogo forte e impactante, os dois se entregam de corpo e alma numa interação que preserva a singularidade de cada um, transformando-se mutuamente em uma criação única e inédita.

O nome TOROBAKA foi pensado a partir de um poema fonético de inspiração maori - toto-vaca, de Tristan Tzara. O touro (toro) e a vaca (baka), animais sagrados para a tradição dos dois bailarinos, unem-se aqui como num poema dadaísta.

Se as diferenças nos assustam e estimulam a reserva, a rejeição e o preconceito, vimos em cena a possibilidade de uma integração estética, que inclui as diferenças e a enorme gama de sentimentos a elas associados. "Duelo e diálogo" nos pareceu uma expressão que se aproxima ainda mais das tensões que pretendemos abordar. Enquanto preservamos a tensão dessas polaridades, não há solução possível. Preferimos assim. Os processos de integração não têm fim, eles são movimento constante. Nesse espetáculo, várias polaridades se apresentam: o touro (flamenco) e a vaca (indiana), o masculino e o feminino, o ativo e o passivo, o forte e o fraco, ou o peso e a leveza. Os dois bailarinos afirmam sua singularidade, deixando-se "afetar" mutuamente. Os corpos em movimento integram os diferentes estilos e tradições, numa coreografia inusitada e harmoniosa. Pensamos que essa harmonia traduz um processo de integração bem-sucedido.

Fomos levadas às questões presentes na nossa clínica, onde o jogo de ilusão nem sempre está implicado. Pensamos em pacientes que trazem um sofrimento ligado à pele que habitam. Pessoas que não se reconhecem no próprio corpo. Muitas vezes, há um desencontro entre a identidade sexual, corpo biológico, e a formação da identidade de gênero, o Ser subjetivo. Assoladas pela angústia, buscam soluções que entendem ser modificações neste corpo que não reconhecem. Buscam transformações, envolvendo ou não cirurgias, desde simples "correções" estéticas até as mais recentes e drásticas cirurgias de "reconstrução", que a medicina e a psicologia acreditam indicadas para o que chamam de disforia de gênero.

Diante desses pacientes nos defrontamos com a complexidade do que entendemos por identidade de gênero. Surgem inúmeras questões: estamos diante de uma patologia, como definida classicamente? Se assim for, de que ordem? Estamos falando de perversão? De um transtorno borderline? Uma psicose? Ou talvez um transtorno narcísico? Ou a partir de outro vértice, uma forma diferenciada de expressão da condição humana, uma patologia do Ser.

Estamos nos baseando na teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott. O que está em pauta é o sentimento de Ser, de Ser Real, de existir num mundo real como um si-mesmo e alcançar uma identidade unitária. As falhas nesse processo de integração resultam em indivíduos que se constituem a partir do desejo do outro (falso self) ou ainda pessoas que não se reconhecem na sua singularidade, com experiências de vazio e de não existência (Winnicott, 1971). Alguns pacientes sentem-se impedidos de se situar em seus corpos e no mundo. Fundamentalmente, lutam para enfrentar o desafio de Ser, integrar o que é aparentemente impossível.

Na abordagem dessas questões, nos deparamos com referências que se baseiam em modelos binários, fixos, como normal/ patológico, masculino/feminino. A solidez desses modelos é insidiosa e insistente, atravessando séculos e diferentes culturas. O próprio Freud fez uma ruptura ao falar ao mundo de uma sexualidade infantil perversa polimorfa. Com esse conceito "desbiologizou" a sexualidade e a descolou da procriação. O estranhamento e a rejeição produzidos na época em relação às ideias de Freud sobre a sexualidade infantil nos lembram, de certa forma, o estranhamento e a rejeição que as neossexualidades despertam nos dias de hoje.

A complexidade do ser humano desconstrói qualquer tentativa de compreensão por meio de conceitos universais, sejam eles biológicos, psicológicos, sociais ou econômicos. Na Ásia, textos budistas sobre sexualidade, datados do século III, já faziam referências a um "terceiro gênero". A partir do século XVIII esse terceiro gênero foi criminalizado pelas leis coloniais juntamente com qualquer relação de caráter sexual entre homens. Tudo o que fugisse de um modelo rigidamente binário passou a ser crime. No Nepal, na Índia e no Paquistão há as conhecidas hijras, pessoas que são biologicamente homens, mas se identificam como mulheres. Tanto na cultura oriental como na nossa cultura ocidental, a exclusão social, a discriminação e o preconceito estão fortemente presentes. Nesse sentido, o espetáculo TOROBAKA nos parece um duelo e um diálogo que contam algo dessa história que atravessa séculos.

Na mitologia grega, pela figura do sábio Tiresias, questões relacionadas ao masculino e feminino são trazidas na forma de indagação: quem teria mais prazer, o homem ou a mulher? Somente alguém que teria vivido as duas identidades num só corpo e numa só vida poderia responder a essa questão. Tiresias é sábio, pois teria vivido a experiência: nove anos como mulher e nove anos como homem. Um saber que transcende a natureza única e limitada, restrita ao sexo biológico.

Na arte contemporânea temos vários exemplos de como o corpo do artista passa a ser incluído na cena expressiva, com o surgimento da bodyart e das performances artísticas. O tema da sexualidade é intensamente explorado, muitas vezes associado à morte e à violência. O corpo como lugar de experiência: transformações, mutilações, implantes.

Ainda antes de essas manifestações tornarem-se comuns, alguns artistas se anteciparam usando o corpo de maneira lúdica, "brincando" com a identidade sexual. Marcel Duchamp, em 1921, criou a personagem Rrose Sélavy, em que o artista, vestido como mulher, aparece em uma série de fotografias do fotógrafo Man Ray. O nome é um trocadilho com a frase "Eros, c'est la vie". A androginia coloca-se também quando Duchamp pinta a Monalisa com bigodes! Arte que interroga o espectador, provocando e perturbando, trocando referenciais e desafiando a perspectiva do senso comum.

Andy Warhol, no início dos anos 1980, munido de uma câmera Polaroid, produziu fotos dele mesmo que o apresentavam como uma drag queen, uma personagem de nome Drella (o nome era uma junção de Drácula + Cinderela). Drella era branquela, pálida: camisa branca, maquiagem branca, peruca loura ultraplatinada, batom vermelho intenso. A androginia, a sexualidade indefinida e o travestismo apontam para a complexidade da sexualidade humana.

Por outro lado, encontramos na mídia atual uma banalização glamorosa dessa questão. Este quadro também binário, "exclusão X glamour", é o que estará presente em nossos consultórios. O desafio passa a ser manter um olhar abrangente, sem deixar-se aprisionar em formulações simplistas e restritivas. Ao nos procurar, nosso paciente está sofrendo, muitas vezes aprisionado numa vida-impasse, numa longa história de desencontro. Para ser quem é, busca ser um outro. A desarmonia entre psique e soma é evidente e, geralmente, dramática.

É essa desarmonia entre psique e soma, a falta de uma integração psicossomática, que se traduz em um sofrimento manifesto das mais variadas formas, frequentemente expresso por configurações de uma estética peculiar. O espectro é amplo, envolvendo desde a busca por "correções", cujo referencial são padrões de beleza e juventude rígidos, até as cirurgias mais radicais de mudança de sexo, acompanhadas de tratamentos hormonais. Os resultados são seres mutantes que, em alguns casos, produzem sentimento de estranheza e desconforto.

Sem dúvida, percebemos aí uma nova demanda ou, ainda, uma demanda antiga vestida de roupas novas.

Como já dissemos, há algo de mágico na forma com que os artistas abordam as questões humanas e antecipam diferentes representações da subjetividade. Os limites de um palco ou de uma tela sustentam essa magia. Tudo se torna possível e dizível por meio da integração estética, que se transforma em infindáveis possibilidades.

Vamos usar a personagem Lili, do filme A garota dinamarquesa, primeira transexual a passar por uma operação de mudança de sexo, para nos aproximar desse drama humano.

Baseado no livro de David Ebershoff, A garota dinamarquesa, a história se passa na Copenhagen da década de 1920. Na cidade, dois artistas vivem para sua arte e um para o outro. Ele, Einar, pinta paisagens delicadas e tem obtido sucesso em sua carreira. Ela, Gerda, é uma pintora retratista que busca reconhecimento. Porém, inadvertidamente, ao pedir que Einar pose com roupas femininas para terminar uma obra, ela desencadeia uma secreta obsessão no marido, que se lança em uma jornada de autodescoberta. Escreveu Einar em seus diários sobre a experiência que mudara sua vida (Man Into Woman): "Eu não posso negar, por estranho que possa parecer, de que eu gostava de mim neste disfarce", e ainda, "Eu gostei da sensação suave daquelas roupas femininas. Eu me senti em casa com elas, desde o primeiro momento"

Lili - a persona feminina de Einar - busca profissionais da saúde que possam ajudá-la a compreender seu sofrimento. Ten-do nascido e vivido como homem até a idade adulta, aos poucos vai entrando em contato com uma realidade subjetiva em que sente ser verdadeiramente uma mulher. Aparentemente, o fator desencadeador foi o toque suave da seda em seu corpo, ao posar para sua esposa. Revelam-se fatos que remetem ao início da constituição da identidade.

Em sua busca por ajuda, Lili enfrenta o despreparo de um olhar que lhe devolve uma imagem de anormalidade. As reações dos médicos retratados no filme revelam a precariedade das soluções propostas: mágicas, invasivas e agressivas.

Atualmente, nos nossos consultórios, pacientes relatam que desde muito pequenos sentem-se presos a um corpo e a uma identidade de gênero que não condiz com a realidade subjetiva. Pedro é um paciente de características físicas bem masculinas. Levou bastante tempo até revelar no processo da análise: "Sinto que sou uma mulher". Isso já se anunciava na experiência de inautenticidade e falta de realidade percebida pela analista. Detalhes femininos começaram a aparecer no visual - cabelos longos e muito bem tratados, fivelas de strass. Essas fivelas pareciam representar um brilho de outra forma ausente, já que em geral parecia inexpressivo e desvitalizado. A manchete "Sinto-me mulher e uso calcinhas" apontava para questões profundas de estruturação de self, uma tentativa de dar expressão a uma história de falta de lugar no mundo. O único brilho parecia vir do cabelo longo e bem cuidado. Dava ideia de uma vivacidade deslocada ou interrompida.

Os processos de formação do self são complexos e, ao longo da vida, passam por diversas etapas. Desde o início, as bases da identidade estão lançadas e se apoiam num jogo sutil e delicado das interações do indivíduo e do mundo a sua volta, que inicialmente tem como seu representante a mãe. O mais importante e central é o olhar da mãe (Winnicott, 1967).

A tendência à integração envolve duas vertentes: uma experiência funcional do bebê - sensações de pele, erotismo muscular, excitação, instintos -, e a vertente ambiental - os cuidados maternos. A mãe dá significados às funções corporais do bebê iniciando um processo de elaboração imaginativa a partir de sua corporeidade. Isso possibilita um corpo vivo, que é físico, mas não meramente fisiológico. O corpo vivo está relacionado à vitalidade (Dias, 2003).

Um autor que não se esquiva de abordar o difícil conceito de "normalidade" é Michael Eigen. Ele fala de um sentimento básico e fundamental de sentir-se "normal", baseado na experiência do amor e da aceitação pelos pais.

Winnicott até sugere que esse amor incondicional é já expresso fisiologicamente pelo cuidado que o feto recebe no útero. Ele relaciona como o bebê é suportado pela vida emocional dos pais e como esse suporte e aceitação se deram antes do nascimento. A vida somática e a vida emocional se imbricam desde a sua origem. "Mais letal do que a deformidade física é a deformidade psíquica que resulta de uma vivacidade espontânea que não encontra lugar ou que sofre mutações pela incompreensão, ansiedade, ou frieza parentais" (Eigen, 1999, p. 86).

Winnicott fala de uma área de trauma, especialmente quando o fluxo adaptativo se interrompe por dificuldades maternas. Ele se preocupa com o destino da vivacidade em um meio que não pode sustentar isso. Existe um período de experimentar a vivacidade e a continuidade de ser antes de desenvolver uma ideia do corpo visto de fora. O sentido espontâneo da continuidade do ser provê o sentimento básico do self, a base para sentir-se normal que subjaz a qualquer ideia posterior de normalidade baseada em padrões externos. "Normal é o que está lá" (Winnicott, 1989, p. 209).

As origens dos processos identificatórios estão colocadas inicialmente na aceitação e na resposta adequadas ao fluxo de vivacidade, do ser "sendo". Não por acaso, com frequência, os pacientes "trans" parecem abdicar do desejo enquanto pulsão, para buscar uma afirmação muito mais ligada à ontologia do Ser. Mas nessa busca de Ser no mundo, se observarmos com cuidado, veremos o quanto está vinculada à concretude do corpo. A obstinação em buscar soluções no nível biológico nos mostra a busca de uma "realidade" em que falta a possibilidade do jogo da ilusão. Uma falha em algo essencial para a transformação de um corpo biológico em um corpo humano. Buscam soluções concretas numa tentativa de realizar a integração psicossomática, que não foi possível de outra forma.

Pensamos que a sociedade tem evoluído em aceitar e acolher as diversidades, o que contribui muito para reavaliar formas de pensamento que tendem a colocar como patologias as diferentes formas de expressão e manifestação humanas. Pensamos também que o avanço técnico da medicina e dos recursos cirúrgicos e químicos que buscam aliviar o sofrimento humano é valioso, sem sombra de dúvida, mas está distante de dar conta de questão tão complexa.

Nas artes, a ambiguidade masculino/feminino enquanto transicionalidade nos propicia a ilusão compartilhada.

Buscamos nesse texto refletir como nós psicanalistas podemos manter uma forma de pensar aberta para caminhar junto aos nossos pacientes e incluir o maior número possível de referências e possibilidades no nosso repertório teórico e emocional.

Convivemos num mundo em constante mudança e estamos sujeitas aos mesmos preconceitos, dogmas e interferências rígidas que nossos pacientes, mas acreditamos que a psicanálise pode sempre ir um passo além do senso comum, do óbvio, do conhecido. Diante do paciente, podemos viver o choque, o desconcerto, o impacto estético, e isso é o que nos faz caminhar.

 

REFERÊNCIAS

Eigen, M. (1999). Feeling Normal. In M. Eigen. Toxic Nourishment. Londres: Karnac Books.         [ Links ]

Winnicott, C., Shepherd, R. & Davis, M. (1994). Sobre as bases para o self no corpo em explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1971). O papel do espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil em O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1967).         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Oliveira Dias, E. (2003). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
HELOISA DE MORAES RAMOS
Rua Sergipe, 401/511
01243-001 São Paulo - SP
tel.: 11 3257-8682
hmramos@uol.com.br

MIRIAN MALZYNER
Rua Purpurina, 155/67
05435-030 - São Paulo - SP
tel.: 11 3815-8115
mimalzyner@gmail.com

Recebido 23.03.2016
Aceito 10.09.2016

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