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versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.63 São Paulo enero./jun. 2017

 

EM PAUTA | PENSAMENTO CLÍNICO E CULTURA DO ESPETÁCULO

 

Como se conversa? Aproximações, conexões e apoios1

 

How to talk? Approximations, connections and support

 

 

Lucila de Jesus Mello Gonçalves

Psicóloga, psicanalista, mestre em saúde pública (USP), doutoranda em psicologia social no IP-USP, membro do Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae, membro do GT Psicologia e Povos Indígenas do CRP/SP, autora do livro Na fronteira - Das relações de cuidado em saúde indígena (2011)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de algumas reflexões postas pela antropologia, de experiências etnográficas com povos indígenas, e dos pressupostos teóricos das matrizes fenomenológicas, coloca-se a questão: como se conversa com os outros? Em que medida a aproximação com os outros permite a comunicação e a compreensão de um "outro mundo"? Tomando o conceito de psicanálise implicada como um lugar desde o qual se pode etnografar, algumas aproximações e conexões parecem possíveis.

Palavras-chave: Conversa. Indígenas. Psicanálise implicada. Corpo. abertura.


SUMMARY

Considering some reflections on anthropology, ethnographic experiences with indigenous peoples and theoretical assumptions of phenomenological arrays, raises the question: How do you talk to the others? To what extent the approach with others enables communication and understanding of the "another world"? Taking the concept of psychoanalysis implicated as a place from which to ethnography, some approaches and connections seems possible.

Keywords: Conversation. Indigenous. Implicated psychoanalysis. Body. Opening.


 

 

Em suma, o "salto mortal", a experiência da "outra
margem", subentende uma mudança de natureza -
é um morrer e um nascer. Mas a "outra margem" está
em nós mesmos. Sem que nos movimentemos, quietos,
nos sentimos arrastados, movidos por um grande
vento que nos deixa fora de nós. Deixa-nos fora
e ao mesmo tempo nos empurra para dentro de nós
.
(Paz, 1982, p. 147)

Como se conversa com os outros? Ou posto de outra maneira, como nós, na contemporaneidade, lidamos com os problemas dos outros?

O sujeito moderno sempre buscou "sair de si" para explorar o que não conhece, mas, se por um lado essa busca revelou um genuíno interesse ao que não é próprio, por outro parece que a maneira de revelar as descobertas sobre os outros acabou sendo, em muitos casos, uma repetição da lógica cientificista, colonialista e etnocêntrica. Porque ao falar, compreender ou mostrar as coisas dos outros, podia-se identificar uma forte hierarquia: etnografias, textos, teorias, apropriações e produções artísticas denunciaram problemas estruturais no sentido do possível encontro com o outro. O campo da arte traz exemplos bem concretos disso.

Em determinado momento da história, ao que se chamou "surrealismo etnográfico", em que se deu o questionamento dos cânones dos valores vigentes, de ordem moral, estética e religiosa, foi detonado um período de fragmentação do que era posto. Essa abertura gerou uma curiosidade e sensibilidade etnográfica, de modo que muitos artistas foram em busca, influenciados pelos seminários de Marcel Mauss, de conhecer as "culturas primitivas" (Clifford, 1988).

Mas em que medida essa sensibilidade se traduziu em revelação/apresentação da cultura do outro? Parece que muito pouco. O questionamento das relações de poder e das fronteiras sobre o que é ou não chamado de arte parece ter sido deixado de lado. Partia-se dessa categoria como se fosse universal, e as reflexões sobre a complexa classificação de objetos e dinâmicas de autoria permaneceram esquecidas.

São vários os casos de exposições de arte das culturas ditas primitivas, exóticas: expõem-se coisas dos outros como "objetos de arte", mas que para os outros são coisas que sequer são chamadas de objetos; elegem-se determinados objetos para apresentá-los ao mundo ocidental, isolando-os em um espaço de museu, mas esses objetos, para os outros, são coisas mortas, sem nenhum valor, quando separados do próprio contexto; determinam-se aproximações entre obras de arte, de um artista contemporâneo, por exemplo, com alguma produção proveniente de certa cultura milenar, mas que revelam somente aproximações de superfícies, texturas, cores. O artista muitas vezes nem mesmo visitou ou conheceu a cultura com a qual se apresenta aparentado.

Desse modo, é verdade que se formalizou na história da arte uma abertura para o outro, pois há espaços para tais exposições e mercado para tais objetos, mas sempre no registro do exótico, do outro primitivo, inferior, selvagem, daquele que temos tanta curiosidade, mas de que, no processo de aproximação e apresentação, necessitamos guardar distância segura.

E, mais ainda, alguém perguntou o que os outros acham disso tudo?

Dufrenne critica a justaposição desses objetos nas exposições de arte, colocados lado a lado segundo critérios de afinidade de processos de superfície. Enquanto não nos perguntamos e elencamos as diferenças, essas exposições não seriam modos de reprodução da soberania da lógica ocidental sobre todas as outras?

Tratando essas questões de maneira precisa e profunda, Cesarino (2014) propõe a reflexão sobre os conflitos ontológicos que perpassam toda discussão sobre as etnografias contemporâneas, e por que não dizer aqui sobre a própria possibilidade de comunicação: o que permite os acordos e ajustes de categorias provenientes de diferentes origens?

Segundo Cesarino (2015), o problema sobre os pressupostos ontológicos colocados pela filosofia foi adotado mais recentemente pela antropologia, mas trouxe um grande salto no que tange à reflexão política: como restituir aos outros um direito de ter um mundo?

O autor traz um exemplo sobre os índios Marubo, que não têm em sua língua uma palavra para mito e, no entanto, há historiadores estudando os "mitos" Marubo.

Outro exemplo interessante é trazido por Almeida em texto que discute conflitos entre ontologias e reivindica multiplicidades ontológicas:

Uma estudante guatemalteca, mulher e indígena, assistia a uma palestra em que o palestrante tratava da construção de identidades como parte do processo de construção de estados nacionais. Fiz um comentário inapropriado: "- Isso quer dizer que você é uma construção social e não uma índia Maia?". O comentário foi inapropriado porque embora a intenção fosse trazer à luz as implicações dos textos que estudávamos na sala de aula, a implicação era profunda: a perda da existência. (Almeida, 2013, p. 23)

Em seguida, o autor afirma sua posição de maneira mais objetiva:

[...] É contra essa ontologia universal e minimalista que argumento aqui em favor de multiplicação de ontologias. Voltemos ao ponto de vista que estou afirmando nesse texto: a existência e não existência de entes é campo de luta e de poder, e não apenas uma questão de epistemologia ou modos de conhecer. Ora, no caso de entes coletivos e sociais, agrega-se a este campo a possibilidade da autorreflexão em si e no outro [...]. (Almeida, 2013, p. 23)

É possível que sempre nos interessemos e nos debrucemos sobre as produções e modos de vida de tantos outros, mas como dar voz a eles, saber o que pensam disso, acolher sua participação como "agentes" sem incorrer em relações de poder?

Para Almeida (2013, p. 25): "O encontro com essa proliferação de entes é a tarefa em questão". Para o autor, somente reconhecer os outros modos de existência e a multiplicidade de ontologias não é suficiente, pois cada "ente" está posicionado em determinado contexto social e político e esses elementos não devem ser esquecidos ou ignorados, pelo contrário, são justamente os que revelariam o estatuto do encontro, no sentido deste ser ou não mera repetição de alguma relação estabelecida de poder.

E como se encontra com os outros?

Em trabalho anterior (Gonçalves, 2011), em que, a partir de uma etnografia de um ano e meio na Casa de Saúde Indígena de São Paulo, pesquisei as relações entre pacientes indígenas em tratamento médico na cidade e as equipes de saúde não indígenas que os atendiam, houve muitas situações que poderiam servir de ilustração para a tarefa de encontrar uma "proliferação de entes". São situações que revelam a distância entre um mundo e outro e a dificuldade do encontro.

Apresento um fragmento do caderno de campo e reflexão posterior feita na ocasião, em que a desigualdade da pretensa conversa é apontada por um indígena:

Em determinado momento, um casal de índios Pankararé perguntou-me o que eu fazia por ali. Expliquei que era pesquisadora, formada em psicologia, e pensava desenvolver uma pesquisa na área de saúde indígena ali na Casa. Nesse momento outro indígena nos interpelou bravo, disse-me que não aceitava esta história de saúde indígena, "se você for para minha aldeia e pegar malária vai ser uma malária diferente, de branco? Saúde é tudo igual, não tem essa, isso eu não aceito...". (p. 24)

O índio que contestou o tema da pesquisa foi chamado de "estressado" pelos que testemunharam a cena, mas parece que o que houve ali foi uma manifestação de reivindicação no que concerne à igualdade.

Será que a própria situação de permanência na Casai, onde a priori estão colocadas tantas desigualdades, faz que se reivindique igualdade, desse modo, como uma espécie de resistência? Em que medida essa manifestação representa o "mundo" desse índio? Seria uma reação a toda ordem imposta pelo sistema de atenção à saúde indígena determinado? Uma manifestação que seria a própria marca de uma ruptura, dada pela vinda da aldeia para a cidade e pelas condições de atendimento? (Gonçalves, 2011, p. 25)

Retomando essa situação, que aconteceu no primeiro dia de visita à Casa, percebo que a reflexão crítica posterior sobre a própria postura, intenções e palavras, foi determinante para o processo da pesquisa, convívio e aprendizado que ali se iniciou. O termo "saúde indígena" adotado pelos funcionários, políticas de saúde e pesquisadores não índios, não fazia o menor sentido para aquele indígena em tratamento na instituição.

 

Aproximações e conexões

É evidente a relevância das questões levantadas pela antropologia que encontram ressonância com as questões da psicologia social e da psicanálise, sobretudo no campo da saúde mental, quando discutem as categorias classificatórias e as hierarquias postas entre normalidade e patologia, sanidade e loucura, inclusão, exclusão e confinamento. Também no campo filosófico e político as reflexões se aproximam quando tratam de igualdade, dominação, reificação e liberdade.

No entanto, a lógica subjacente aos modos de produção acadêmico e científico permanece amparada por pressupostos rígidos, fixos e fechados: ainda se busca coerência, relações de semelhança, estruturas, deduções, induções, repetições, previsões, medições.

No prefácio de A invenção da cultura, o antropólogo Roy Wagner (2010) trata diretamente esse problema: "A antropologia é teorizada e ensinada como um esforço para racionalizar a contradição, o paradoxo e a dialética, e não para delinear e discernir suas implicações; tanto estudantes quanto profissionais aprendem a reprimir e ignorar essas implicações, a 'não enxergá-las'" (2010, p. 10).

Em um artigo intitulado "Ser afetado", a antropóloga e analista Jeanne Favret-Saada (2005) também critica a impossibilidade de alguns antropólogos levarem em conta as contradições, os elementos involuntários e as comunicações não intencionais e não verbais que surgem em campo. A autora procura descrever esta modalidade de ser afetado como um dispositivo metodológico, distinguindo-o da observação participante e da empatia, e assim esclarecer de que modo obteve suas informações de campo. Relata que mesmo para os antropólogos voltados, como ela, para os estudos de feitiçaria, o que realmente contava nas pesquisas eram os fatos possíveis de serem observados, e as narrativas dos nativos eram desqualificadas, tratadas como proposições falsas, em oposição à palavra do etnógrafo. Os autores negavam a possibilidade de existência de uma feitiçaria rural na Europa atual, e ela, de uma região onde a feitiçaria era amplamente verificada, questiona:

Por que um erro empírico tão evidente, tão grande e tão compartilhado? Sem dúvida, tratava-se de uma tentativa absurda de realizar novamente a Grande Divisão entre "eles" e "nós" ("nós" também já acreditamos em feiticeiros, mas foi há trezentos anos, quando "nós" éramos "eles"), e assim proteger o etnólogo (esse ser a-cultural cujo cérebro somente conteria proposições verdadeiras) contra qualquer contaminação pelo seu objeto. (2005, p. 156)

O ponto que a autora parece considerar essencial nessa modalidade de etnografia relaciona-se a uma abertura para diferentes formas de comunicação: "o próprio fato de que aceito ocupar esse lugar e ser afetado por ele abre uma comunicação específica com os nativos: uma comunicação sempre involuntária e desprovida de intencionalidade, e que pode ser verbal ou não" (Favret-Saada, 2005, p. 159).

No artigo "De Mauss a Claude Lévi-Strauss", Merleau-Ponty (1960) descreve a experiência etnológica como

uma incessante prova de si pelo outro e do outro por si. Trata-se de construir um sistema de referência geral onde possam encontrar lugar o ponto de vista do indígena, o do civilizado e os erros de um sobre o outro, construir uma experiência alargada que se torne, em princípio, acessível para homens de um outro país e de um outro tempo. [...] A etnologia é a maneira de pensar quando o objeto é "outro" e que exige nossa própria transformação. [...] método singular: trata-se de aprender a ver o que é nosso como se fôssemos estrangeiros, e como se fosse nosso o que é estrangeiro. (1960, p. 199)

Para Merleau-Ponty, a atitude fenomenológica tem muito a oferecer à psicologia: "o estudo da percepção desenvolvido sem preconceitos pelo psicólogo acaba por revelar que o mundo percebido não é uma soma de objetos no sentido que as ciências dão a essa palavra" (1990, p. 85). "[...] Perceber é tornar algo presente a si com a ajuda do corpo, tendo a coisa sempre seu lugar num horizonte de mundo e consistindo a decifração em colocar cada detalhe nos horizontes perceptivos que lhe convenha" (1990, p. 92).

Constatamos elementos que se conectam entre as reflexões dos autores citados, que, ainda que falem de "lugares" muito distintos, se debruçam sobre as "questões humanas" cientes de que não há deciframento total possível. Trata-se, parece, de levar em conta, além dos aspectos objetivos, racionais e diretos consequentes do encontro possível, uma disposição ao mundo do outro, que, expressando-se em "abertura", "autorreflexão", "desalojamento" de si, "não intencionalidade", admite e considera o campo do subjetivo, do não apreensível imediatamente, invisível, não verbal, não intencional.

Frayze-Pereira, psicanalista que articula questões de estética e psicanálise, em seu livro Arte, dor..., considera a proximidade entre a experiência estética e a experiência psicanalítica, assinalando que ambas exigem "uma silenciosa abertura ao que não é nós e que em nós se faz dizer" (Frayze-Pereira, 2010, p. 38). Trata-se de uma disposição à abertura ao desconhecido, ao outro, ao qual não tenho qualquer acesso a não ser que me deixe tocar e dizer pelo outro para que dele possa ter uma experiência. O autor, que é deveras amparado pela filosofia de Merleau-Ponty, desenvolve a ideia de "psicanálise implicada" para se referir ao modo reflexivo (interrogativo, crítico, que trabalha menos com temas e mais com ligamentos, desligamentos, conexões e rupturas) de se posicionar diante de uma obra de arte, de um paciente, de um outro. Aqui as teorias psicanalíticas não são aplicadas ao outro, mas há um posicionamento pelo qual se pode ter experiência do que não é próprio.

Nas palavras do autor,

[...] a psicanálise, tal qual entendemos, não é mero instrumento de investigação da cultura, não é rede de noções aptas a atribuir sentido ao sensível. [...] Pensar psicanaliticamente implica escutar, mais ou menos intensamente, as questões singulares e comoventes, isto é, ambíguas e por isso mesmo perturbadoras, daquele que sofre. Portanto, daquele que vive. Nesse processo, cabe ao psicanalista, junto ao seu outro, dar forma à dor do inarticulado que, por seu próprio modo de ser, excede toda tentativa de representação. (Frayze-Pereira, 2010, p. 38)

A tomada do sensível, portanto do corpo como lugar de conhecimento e "encontro" com outros, que tanto a atitude fenomenológica quanto a psicanálise implicada supõem, parece fazer eco em algumas etnografias modernas, instigantes e inspiradoras.

Na antropologia, além de Favret-Saada, Marilyn Strathern é um exemplo fecundo. A partir de uma extensa etnografia na Melanésia, a antropóloga estrutura todo material que colhe de maneira inédita na antropologia. Parece haver uma abertura às coisas mesmas, que permitem uma experiência em campo, que reconhecemos como rigorosa, singular e viva na leitura da pesquisa. Dito de outra maneira: a linguagem usada para contar, descrever, apresentar as pessoas com as quais se encontrou, as coisas das pessoas, os eventos em que as pessoas tornam-se pessoas, os processos pelos quais as relações se fortalecem, mais do que as próprias descrições, revelam-nos profundamente o mundo visitado. A autora reconhece as diferentes ontologias e se coloca, ou melhor, é colocada, em uma posição, digamos, "alinhada": sem a ingenuidade de esperar partilhar do modo melanésio um lugar de reconhecimento e investigação do mundo desses outros. Também está ciente de não poder se livrar de si mesma para penetrar no outro mundo: sempre será um corpo encarnado, desde sua cultura, sua pátria; suas "metáforas-raiz", preferências, personalidade, formação, léxico, biografia e sonhos.

Desse modo, trata a possibilidade do que aqui estamos chamando de conversa, ou encontro com os outros, como "acordos comunicativos" entre uma cultura e outra, acordos que se apoiam em convenções e invenções. A maneira que a autora utiliza a linguagem, adotando certos termos para descrever todo esse fluxo de relações e "posições", "efeitos" e "apoios" e "conexões" para que os processos se deem, acaba por nos colocar em lugar móvel, que jamais se fixa e sim enreda disposição de acompanhamento; assim, a autora acaba por nos revelar mesmo um outro mundo! Puro paradoxo. Será assim que se pode comunicar, nesses espaços que as palavras dispostas de tal modo abrem e nós leitores adentramos neles? Esse é um tipo de acordo?

Em ressonância com as matrizes fenomenológicas e nos termos de Frayze-Pereira, desde um lugar implicado, apresento outro fragmento de campo, em que o corpo foi lugar de conexões, onde o sonho da pesquisadora, tomado como comunicação silenciosa, é que revelou algo da realidade compartilhada:

Em um dia de visita, fui ver como estava uma usuária Terena, sabia do recente diagnóstico e imaginei que estivesse triste. Além disto, um enfermeiro comentara que não saíra do quarto a não ser para as refeições, e nestas horas andava a chorar pelos cantos. Bati na porta e entrei, encontrando-a deitada, cabeça coberta. Chamei, sentei-me em sua cama e puxei conversa. Não tocamos no assunto da doença, somente da gravidez, do clima frio do dia... No mesmo quarto encontravam-se duas famílias, primas entre si, da etnia Ikpeng, do Xingu.

Tentei falar com uma delas, uma moça jovem, mãe de um bebê recém-nascido, estavam deitados em duas camas de solteiro que formavam uma grande. Sua prima, também deitada em sua cama, alertou-me de que a moça não entendia português. Em determinado momento entrou uma auxiliar de enfermagem. Foi passando de leito em leito, medindo temperatura e dando comprimidos para cada paciente. Não trocou palavras com as moças com quem eu conversava. Ficou inibida com minha presença ou fazia sempre assim? Conversando com a índia Terena, soube que algumas falam um pouco mais, conversam, mas a maioria passa rápido mesmo, somente para medicar.

Chamou-me a atenção: a enfermeira se ateve à moça do bebê, o paciente era ele, depois eu soube. Deu inúmeras instruções de como lavar o menino, temperatura da água, insistia que não podia ser fria, horário do banho... tudo em português! Mas não disseram que ela não entendia? Perguntei à moça com quem conversava... "pois é"... respondeu.

Duas outras situações me chamaram a atenção: conversando com um enfermeiro, perguntei sobre o indiozinho Ianomâmi, não o vira naquela tarde. Havia sido internado, passara por cirurgia. Este menino estava há quase um mês esperando um tradutor chegar para dar início ao seu tratamento. Acompanhado pelo pai, não falam português, eu os via para cima e para baixo, o menino sempre meio tristonho, muitas vezes chorando, o pai falando bravo, batia nele. O enfermeiro contou que, além da cirurgia, havia ficado internado, pois precisaram sedá-lo para fazer uma intervenção odontológica. Não conseguiram explicar ao certo o que iriam fazer, ou os Ianomâmi não entenderam, como saber?

Fui conversar um pouco com uma usuária Pankararu, estava em cadeira de rodas, assistindo à televisão na sala. Primeira vez que a encontrei fora de sua cama. Voltava da internação. Bem disposta, contente, pois estava indo embora, não para sua cidade mas para casa da afilhada, aqui em São Paulo mesmo, não havia necessidade de ficar mais.

Uma das enfermeiras veio dar as recomendações de alta. Fiquei ao lado. A enfermeira explicava de que modo a paciente deveria urinar. O modo que falava me deixou apreensiva, a paciente estaria entendendo? A enfermeira explicava fazendo uma espécie de mímica, usando termos infantis, fazendo piadinhas de cunho erótico. Devia estar demonstrando em meu rosto minha aflição, pois, fiz menção de falar algo, ela rapidamente olhou pra mim e disse: "eles entendem o meu jeito de falar!" A paciente tentou perguntar várias vezes o que era um pequeno volume que sentia no abdômen, a enfermeira respondia, brincando, que era o filhinho da paciente, sugerindo que estivesse grávida! (Uma pessoa de aproximadamente 70 anos!) A enfermeira perguntava se a paciente havia arrumado namorado na UTI, pedia um para ela... A enfermeira parecia tensa, usando seu repertório de brincadeiras, e a paciente angustiada, tentando entender o que se passava com ela... que situação de falta de possibilidade de se comunicar!

[Nesta noite tive um sonho que me chamou a atenção. Sonhei que fora internada às pressas, submetida a uma cirurgia em que tiraram um pedaço de meu baço. Depois da alta, antes de sair do hospital, eu andava pelos corredores em busca dos médicos que me operaram: o que aconteceu comigo? Por que tive que tirar um pedaço de meu órgão? O que tenho que fazer? O que provocou o que tive? Ninguém respondia. Acordei com a sensação de total impotência sobre o meu corpo.]

Será que é assim que alguns indígenas se sentem? O que será que estão pensando? Como se dão as comunicações entre pessoas tão diferentes? Comigo houve uma "comunicação indireta"; sonhei uma questão deles. Depois da última visita, não restou dúvida. Não posso falar outras línguas, mas de alguma forma nos comunicamos. (Gonçalves, 2011, p. 97)

 


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Apoios

Será que o que permite "encontrar" ou "conversar" com os outros, e depois "comunicar" o que se passou, é a "atitude" ou um "corpo" que se vai a campo? Atitude que possa permitir uma espécie de abertura, de escuta, de olhar, de detalhar?

Se não se pode comparar pessoas, culturas e sociedades, e nem estabelecer relações de analogia, a proposta de Strathern parece ser um caminho possível: encontrar conexões parciais, escalas de aproximação e constelações de diversos fatores que permitam configurações topológicas.

Cabe dizer que, mais do que o detalhamento, talvez seja o "lugar" de onde o etnógrafo colhe, escuta, fala e está, que mais possibilite pesquisas menos "projetivas", "científicas", "reproduzíveis"etc.

Mas esta disposição em se posicionar, que implica alargar, esticar, estender o pensamento, o sentimento e a capacidade de apreensão do outro como outro, quem tem e como tem?

Segundo as matrizes fenomenológicas, a disposição para a abertura é ontológica.

Para Merleau-Ponty, que investiga a percepção do mundo, das coisas e do outro através de uma filosofia dos sentidos, não é possível separar as coisas de sua maneira de aparecer no mundo. A relação com as coisas no mundo se dá pelo nos-so corpo, pela reverberação sensorial que elas nos provocam e que nos faz, reciprocamente, projetarmos nelas: "O homem está investido nas coisas, e as coisas estão investidas nele" (Merleau-Ponty, 2004, p. 24). Desse modo, a inteligência não basta para a relação com o mundo, assim como a ciência positivista não basta como forma de conhecimento do mundo.

Para o filósofo, o corpo é enigma, pois carrega esta possibilidade de ser, ao mesmo tempo, aquele que vê e que é visto; que toca e é tocado; que se vê sendo visto e se toca sendo tocado; possui esta misteriosa capacidade de desdobramento sobre si mesmo, numa permanente tensão entre as polaridades, que nunca são plenamente atingidas nem plenamente abandonadas.

A filosofia de Merleau-Ponty leva, por esse caminho, para a impossibilidade radical de apreensão do que quer que seja, inteiramente. Não há metafísica possível. Os corpos e as coisas coexistem em um mesmo registro e o lugar do homem no mundo é sempre entre ele e as coisas, sendo permanentemente afetado por elas e afetando constantemente o mundo, sem que a reversibilidade se dê por completo, num movimento ininterrupto e inapreensível em sua totalidade (Chauí, 1989).

O encontro com o outro de que se fala talvez possa ser compreendido como fenômeno em que ocorrem aberturas, no sentido de disponibilidade para conexões e apoios, em diferentes corpos, simultaneamente.

Então, aprender a interrogar junto, escutar com os olhos, ver com os ouvidos e permanecer ali, nessa tensão, sustentando o inapreensível, o silencioso, o invisível, talvez seja o máximo, e muito, que se possa fazer, entre culturas, no campo do humano.

Parece que o que muda, no contato com uma ou outra pessoa, uma ou outra cultura, é o modo de fazer as perguntas, considerando que cada relação "exige", na expressão de Merleau-Ponty, um modo específico de perguntar, irreproduzível, porque encontrado e constituído no cerne da própria relação.

Desse modo, talvez seja possível conversar quando se estabelece, no encontro com outros, modos de perguntar que possam conter a capacidade de autorreflexão, esta que parece ser o "primeiro passo" para perceber, acolher e considerar os fatores "inconscientes" em jogo, tomando-nos também como comunicação.

E em que medida (ainda pensamos em medidas!) são a possibilidade de um certo desdobramento de si, uma qualidade de reverberação das questões que se enfrenta, o desalojamento do próprio self, a consciência das próprias "metáforas-raiz", as dúvidas sobre as próprias perguntas, justamente os "mínimos essenciais" que, em diferentes escalas, revelam mais ou menos sobre aquele outro mundo?

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
LUCILA DE JESUS MELLO GONÇALVES
Rua Antônio Bicudo, 327/11
05418-010 – São Paulo – SP
tel.: 11 3064-3171
lucilajmg@gmail.com

Recebido 10.04.2016
Aceito 30.04.2016

 

 

1 Artigo inspirado no ensaio escrito para a disciplina Antropologia da Arte, na FFLCH-USP, no primeiro semestre de 2015.

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