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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.63 São Paulo Jan./June 2017

 

EM PAUTA | PENSAMENTO CLÍNICO E CULTURA DO ESPETÁCULO

 

Subjetividade como mercadoria e a doença normótica

 

Subjectivity is commodity and the normotic ilnesss

 

 

Laura Belluzzo de Campos Silva

Psicóloga, mestre e doutora em psicologia social pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em psicologia clínica pela PUC-SP. Docente do curso de psicologia no Centro Universitário Paulistano-Unipaulistana e no Projeto Sampa da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Segundo Foucault, a sociedade disciplinar produz um homem dotado de uma alma/subjetividade por meio da qual o poder acessa os corpos tornando-os dóceis. Para Marcuse, a sociedade de consumo transforma o trabalhador em consumidor, acessando sua subjetividade pela criação de desejos e necessidades voltadas para o con-sumo, tornando-o cúmplice passivo de sua própria dominação. Nessa sociedade, que Debord definiu como "a sociedade do espetáculo", a forma mercadoria permeia todas as relações sociais que passam a ser mediadas por imagens que substituem e reificam a realidade social. Segundo Bauman, na sociedade contemporânea, a subjetividade se torna uma mercadoria que deve buscar aumentar continuamente seu valor no mercado. Nesse movimento incessante de produção de si, favorecido pelas novas tecnologias da informação, em que cada um deve estar apto a expor continuamente suas capacidades, floresce a "cultura do narcisismo", tal como teorizada por Lasch. Nesse contexto, são produzidos novos modos de subjetivação e sofrimento psíquico, que desafiam a clínica psicanalítica, dentre os quais podemos incluir a doença normótica, tal como definida por Bollas.

Palavras-chave: Sociedade disciplinar. Sociedade de consumo. Sociedade do espetáculo. Narcisismo. Sociedade de controle.


SUMMARY

According to Foucault, the disciplinary society produces a soul/subjectivity endowed man, by means of whom the power accesses the bodies making them docile. In Marcuse's view, the consumer society transforms workers into consumers by accessing their subjectivity through the creation of desires and needs for consumption. This makes them passive accomplices of their own domination. In this society, which Debord defined as "the society of the spectacle", the commodity form permeates all social relationships. They start being mediated by images which replace and characterize the social reality. According to Bauman, in the contemporary society, subjectivity becomes a commodity which should try to increase its market value. In this incoming movement of self-production, favored by the new information technologies, in which everyone should be able to continually display their capacities, the culture of narcissism blossoms as it was theorized by Lasch. In this context, new forms of subjectivation and psychic suffering, which challenge the psychoanalytic clinic, are produced. Among them the normotic illness, exactily as it was defined by Bollas, can be included.

Keywords: Disciplinary society. Consumer society. Society of the spectacle. Narcissism. Control society.


 

 

 

Foucault e a sociedade disciplinar - os corpos dóceis

Foucault situou o surgimento da sociedade disciplinar no final do século XVIII. Na sociedade que a antecedeu, o poder soberano era exercido de modo cruento, cruel e ostensivo sobre os corpos dos condenados. Na sociedade disciplinar, cria-se sobre os corpos uma superfície anímica por meio da qual o poder os atinge, tornando-os corpos dóceis, tão mais eficientes quanto submissos. Disseminado na sociedade pelas instituições sociais, esse novo tipo de poder atinge os indivíduos de maneira suave, com modos humanizados e pouco visíveis a olho nu, sendo, para os que o exercem, menos custoso e mais eficiente que o anterior. Ele tem sua marca distintiva na estrutura arquitetônica do panóptico, que possibilita que todos sejam continuamente vigiados por um vigilante que a todos vê sem ser visto. Visa a um ideal normativo e exerce o controle por palavras de ordem que conferem economia e efetividade ao comando, que se realiza por uma vigilância hierarquizada.

O livro em que Foucault desenvolve essas ideias, Vigiar e punir, marca o início da fase genealógica de sua obra, na qual o filósofo francês está preocupado em investigar por que determinados saberes surgem em determinados momentos históricos. Respondendo à questão que motivou seus estudos, Foucault defende a tese de que, doravante, o poder, para ser exercido, necessita de um saber, apontando que o nascimento das ciências humanas está diretamente relacionado ao surgimento de um novo tipo de humanismo, no qual o homem, que passa a ser objeto de estudo, é já o efeito de uma sujeição bem mais profunda:

Esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. Sobre essa realidade-referência, vários conceitos foram construídos e campos de análise foram demarcados: psique, subjetividade, personalidade, consciência, etc.; sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados; a partir dela, valorizaram-se as reivindicações morais do humanismo. Mas não devemos nos enganar: a alma, ilusão dos teólogos, não foi substituída por um homem real, objeto de saber, de reflexão filosófica ou de intervenção técnica. O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma "alma" o habita e o leva à existência, que é ela mesma, uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo. (Foucault, 1983, pp. 31-32)

Ao aprofundar a análise de seu projeto, no primeiro volume de História da sexualidade: a vontade de saber, Foucault constata que a partir da era vitoriana os discursos sobre o sexo se multiplicam vertiginosamente, dando ao sexo visibilidade e ampliando o exercício do poder disciplinar sobre as formas de viver, de pensar e de sentir. No início do século XX, momento em que as sociedades disciplinares atingem seu apogeu, "Freud, ao escrever Três ensaios sobre uma teoria da sexualidade, questiona o saber existente sobre as chamadas aberrações sexuais, interroga a sexualidade e conclui que esta é essencialmente desviante, aberrante e perversa e subverte o saber de sua época, no tocante à sexualidade, definindo o ser humano como um ser 'perverso polimorfo'" (Frayze-Pereira, 2017, p. 3).

Ao criar um psiquismo atravessado por um inconsciente e caracterizado por essa sexualidade, Freud subverte também a ideia de tratamento como ajustamento social, vigente na época, tornando possível o acesso ao sofrimento psíquico sem reduzi-lo aos modelos impostos pela norma.

A sociedade disciplinar, que se instaura com o surgimento do capitalismo, deve ser capaz de lidar com indivíduos livres e aptos a vender sua força de trabalho, mediante um contrato em que o processo e o ritmo do trabalho passam a ser impostos aos trabalhadores pelos que detêm os meios de produção. O corpo do trabalhador deve se ajustar ao processo de trabalho e às máquinas, em prol da produtividade e do lucro, transformando-se em uma espécie de engrenagem dessas máquinas.

 

Marcuse e a sociedade industrial avançada - o homem unidimensional

A partir de meados do século XX, novas forças começam a se configurar. Estudando as sociedades industriais avançadas, Marcuse (1968) afirma que, a partir da Segunda Guerra Mundial, instituiu-se um novo tipo de controle sobre os trabalhadores.

Marcuse se refere à sociedade idealizada por Henry Ford, em que a produção em massa necessita de consumo em massa: a partir de agora, para que o capitalismo se mantenha, o trabalhador deve ter acesso aos bens que produziu. Negociando com os sindicatos, Ford intensificou a produção, recompensando os trabalhadores com a diminuição do dia de trabalho e o aumento do valor da hora trabalhada. Além disso, aliando-se a Keynes, criou o estado de bem-estar social, que, subsidiando despesas como saúde, moradia, escola e locomoção, permitiu aos trabalhadores o aces-so ao consumo de bens até então inacessíveis a eles. Mas não nos enganemos, pois nem o tempo livre nem os benefícios econômicos decorrentes desse acordo podem ser usados pelo trabalhador a seu bel-prazer: devem ser dedicados ao consumo, como condição para a manutenção e funcionamento do capitalismo. Nesse período, havia nos Estados Unidos profissionais especialmente treinados para a função de visitar as casas dos operários para orientá-los sobre como direcionar os recursos e o tempo livre para o consumo de bens considerados "adequados" (Harvey, 2002).

Como afirmou Guy Debord: "Neste ponto da 'segunda revolução industrial' o consumo alienado torna-se para as massas um dever suplementar à produção alienada" (1997, pp. 30-31).

Para Marcuse, a originalidade dessa sociedade reside na utilização da tecnologia para obter a coesão das forças sociais em um movimento que alia uma eficiência esmagadora a uma melhoria crescente do padrão de vida (1968, p. 16).

Nesse contexto, os meios de comunicação de massa desempenham um papel central na conformação de um novo tipo de homem, seja de modo direto e deliberado, pela divulgação de produtos que induzem a criação de novas necessidades e estilos de vida pela publicidade, seja de modo indireto e subliminar, pelos conteúdos criados pela indústria cultural, no cinema, rádio e televisão. É esse homem - sujeito de um controle social que se dá através do meio tecnológico, apassivado pelos meios de comunicação de massa e precondicionado pela produção e pela difusão da informação de massa - que Marcuse chamou de homem unidimensional. Unidimensional porque para esse homem não há mais liberdade interior isolada da opinião pública, já que a realidade tecnológica invadiu o espaço privado, restringindo-o, e a mercadoria passou a ditar estilos de vida.

Para Marcuse, o capitalismo americano integra as dimensões pública e privada da existência, na medida em que o aparelho de produção determina, ao mesmo tempo que as atividades, as atitudes e as aptidões que implicam a vida social, as aspirações e as necessidades individuais. Assim, não há mais oposição entre a vida privada e a pública e entre as necessidades sociais e as individuais. A tecnologia permite instituir normas de controle e de coesão social cada vez mais novas, mais eficazes e mais agradáveis (1968, p. 21).

Desse modo, na sociedade industrial avançada, "a democracia consolida a dominação mais fortemente que o absolutismo; liberdade administrada e repressão instintual tornam-se forças incessantemente renovadas da produtividade" (Marcuse, 1968, p. 7).

E aqui vemos emergir a tese central deste filósofo da Escola de Frankfurt, segundo a qual, nas sociedades industriais avançadas, os indivíduos são dominados por meio da repressão suave de seus instintos em troca da satisfação de suas necessidades pela via do consumo. As necessidades são manipuladas em nome de um falso interesse geral, já que sua função e seu conteúdo social são determinados por forças exteriores sobre as quais os indivíduos não têm controle; seu desenvolvimento e sua satisfação são heterônomas. O fato de que essas necessidades tenham se tornado próprias ao indivíduo, com as quais ele se identifica e com cuja satisfação se realiza, não muda nada, já que são produto de uma sociedade na qual os interesses dominantes exigem a repressão. Os controles sociais fazem nascer na sociedade da abundância a necessidade irresistível de produzir e consumir o supérfluo, de se submeter a um trabalho embrutecedor e a formas de lazer que incensam e prolongam esse embrutecimento (Marcuse, 1968, p. 32). O fato de o indivíduo renovar espontaneamente necessidades impostas não significa que ele seja autônomo, só prova que os controles são eficazes. O condicionamento não começa apenas no momento da produção de rádios e televisões em massa, em que seu controle é centralizado. Quando as pessoas chegam a essa fase, já estão condicionadas há muito tempo. O decisivo é que o contraste ou conflito entre o dado e o possível, entre as necessidades satisfeitas e as não satisfeitas, atenua-se, de forma que, nessa sociedade, a autonomia, a independência de pensamento e o direito a uma oposição política são privados de sua função crítica (Marcuse, 1968, p. 33).

Para Marcuse, a realidade tecnológica invadiu o espaço privado e o restringiu. Nessa sociedade, o indivíduo é preso pela produção e distribuição de massa e os processos de introjeção são cristalizados de modo quase que mecânico. Por isso, não se pode falar em adaptação, sim em uma identificação imediata do indivíduo com a sociedade. Essa identificação imediata, que caracterizou as formas primitivas de associação, reaparece na civilização industrial avançada, porém, com a diferença de que foi criada por uma organização e uma gestão elaboradas cientificamente. Nesse processo, a dimensão "interior" do espírito, que poderia provocar uma oposição ao status quo, restringe-se. Marcuse aponta ter havido inclusive uma descentralização da função disciplinar das famílias em prol dos meios de comunicação de massa, pela disseminação de costumes, padrões de comportamento, valores e estilos de vida, calcados na sociedade de consumo (1968, p. 35).

Desse modo, o aparelho produtivo, os bens e os serviços que ele produz vendem ou impõem o sistema social como um todo. Os meios de transporte, as comunicações de massa, as facilidades de moradia, alimentação e vestimenta e uma produção cada vez mais invasiva da indústria do lazer e da informação impõem hábitos, atitudes e reações intelectuais e emocionais que ligam os consumidores aos produtores, e por meio deles ao conjunto. Os produtos doutrinam e condicionam, e, quando se tornam acessíveis a um grande número de indivíduos nas classes sociais mais numerosas, passam a ser veiculados pela publicidade como um modo de viver melhor do que antes, que, enquanto tal, defende-se contra toda mudança qualitativa. As ideias, as aspirações e os objetivos que, por seu conteúdo, transcendem o universo estabelecido do discurso e da ação, são rejeitados ou reduzidos aos termos desse universo, tomando a forma de pensamentos e comportamentos unidimensionais (Marcuse, 1968, p. 36). Os que ocupam o inferno da sociedade da abundância são encerrados com uma brutalidade que relembra as práticas medievais. Aos outros, a sociedade responde a seu anseio de liberdade, satisfazendo suas necessidades, o que torna a servidão suportável, e mesma insuspeitada (Idem, ibid., p. 49).

Para Marcuse, as classes trabalhadoras, nos setores avançados da civilização industrial, sofreram uma transformação decisiva, sendo os principais fatores dessa transformação:

1. A redução da quantidade e da intensidade da energia física dispensada ao trabalho, possibilitada pela mecanização. Essa mudança incide sobre o conceito marxista de trabalhador (proletário), pois, para Marx, o trabalhador é um trabalhador manual que dispensa sua energia física ao longo do trabalho, mesmo se trabalha com as máquinas. Para se apropriar da mais-valia, os capitalistas compram e utilizam essa energia humana que, em condições infra-humanas, deu à exploração seus aspectos revoltantes e inumanos. Marx denunciou a dor física, a miséria física do trabalho, este é o elemento material, tangível, que se encontra na escravidão assalariada - a dimensão fisiológica e biológica do capitalismo clássico (Marcuse, 1968, p. 50). No capitalismo avançado, a mecanização do trabalho cada vez mais aperfeiçoada, mesmo mantendo a exploração, modifica o estatuto e a atitude do explorado. A tecnologia substituiu o esforço muscular pelo esforço mental, de sorte que nas usinas mais automatizadas o que se visa é transformar energia física em técnica e inteligência: "uma boa cabeça em vez de uma mão hábil, mais nervo que músculo, um condutor mais do que um trabalhador manual, um vigilante mais que um operador" (Idem, ibid., p. 51). Esse tipo de advertência não se restringe aos trabalhadores das fábricas, sendo exercida sobre os datilógrafos, bancários, vendedores ou apresentadores de TV, assim a padronização e a rotina acabam tornando todas as ocupações parecidas.

2. A mudança na forma de pagamento do trabalho, que já não é feito por tempo ou por peça, estando em jogo agora a relação do trabalhador com as outras classes e com a organização do trabalho.

3. A mudança de atitude e de consciência dos trabalhadores. A integração do trabalhador ao processo de produção dentro da própria fábrica leva à assimilação das necessidades e das aspirações, do nível de vida, das atividades de lazer e das atividades políticas, fazendo com que os trabalhadores passem a participar da solução dos problemas da produção a ponto de, nas empresas mais avançadas, apresentarem um interesse de proprietário (Idem, ibid., p. 57).

4. O enfraquecimento da atitude negativa da classe trabalhadora, de maneira que, no novo mundo tecnológico do trabalho, a classe operária não é mais a contradição viva da sociedade. A organização tecnológica da produção e a dominação tomam a forma de uma administração em que os dirigentes e os capitalistas perdem suas funções de agentes responsáveis, transformando-se em burocratas no aparelho do grande capital. A hierarquia dos comitês de administração faz desaparecer os verdadeiros agentes da exploração, pois a raiva e a frustração dos trabalhadores são privadas de objetivos (Idem, ibid., p. 58).

Marcuse analisa também os processos culturais que ocorrem nesse tipo de sociedade, afirmando que a produtividade tecnológica conduz a uma integração no campo da cultura, tal como a que ocorreu no campo da política. O antagonismo entre a realidade cultural e a realidade social se enfraquece e os elementos de oposição e transcendentes, graças aos quais a cultura superior constituía outra dimensão da realidade, tendem a desaparecer, por sua incorporação em massa na ordem estabelecida, que os reproduz e difunde em grande escala (Marcuse, 1968, p. 82). A cultura superior do Ocidente - da qual a sociedade industrial continua a professar os valores estéticos, intelectuais e morais - era uma cultura pré-tecnológica e devia sua força à experiência de um mundo que não existe mais, e que não pode mais ser reencontrado porque a sociedade tecnológica o tornou praticamente impossível. Era uma cultura feudal que se opunha ao mundo dos negócios e da indústria e a seu olhar fundado sobre o cálculo e o lucro. As comunicações de massa unem de forma harmoniosa, e, frequentemente, de modo sub-reptício, a arte, a política, a religião, a filosofia e o comércio, reduzindo esses domínios culturais a um denominador comum: a forma mercado, tornando a cultura superior parte integrante da cultura material (Marcuse, 1968, p. 83).

Para explicar as relações entre produção e cultura que passam a ocorrer nessa sociedade, Marcuse se vale dos conceitos freudianos de sublimação, princípio do prazer e da realidade, criando o conceito de dessublimação:

É em virtude de uma satisfação material progressiva, que são efetuadas a conquista e unificação dos opostos e que a cultura superior é transformada em cultura popular. É no curso dessa transformação que se produz uma dessublimação crescente. O distanciamento artístico é sublimação, ela cria as imagens de situações que são inconciliáveis com o princípio de realidade estabelecido. Esse conjunto de imagens perdeu sua eficácia. O fato de elas circularem em todos os lugares com um objetivo comercial é uma dessublimação, ela substitui uma satisfação mediatizada por uma satisfação imediata. Mas essa dessublimação se faz a partir de uma posição de força da sociedade que pode se permitir dar mais do que antes porque seus interesses estão sendo cuidados por seus cidadãos no mais profundo de seu ser e porque as satisfações que ela fornece são elementos de coesão social e de contentamento. O princípio do prazer absorve o princípio da realidade; a sexualidade é liberada (ou melhor dizendo, liberalizada) em modos socialmente construtivos. Assim como na dessublimação da cultura superior, a dessublimação no domínio sexual constitui um dos efeitos secundários do controle social da tecnologia, que generaliza a liberdade intensificando a dominação. Se analisamos como a energia sexual se transforma no uso que é feito dela na sociedade, compreendemos melhor a ligação que existe entre a dessublimação e a realidade tecnológica. Nessa sociedade, o tempo que se passa sobre as máquinas e com as máquinas não é apenas um tempo de trabalho, e a energia que a máquina economiza não é mais exclusivamente a energia de trabalho. A mecanização também salvaguardou a libido, as forças das pulsões de vida - ou seja, ela lhe suprimiu as forças anteriores de realização. (Marcuse, 1968, pp. 96-97)

Se, como vimos, a sociedade disciplinar inventou um homem dotado de uma alma que, passível de ser acessada, possibilitou o controle dos corpos, tornando-os dóceis, na sociedade industrial avançada esse controle se intensifica e se torna ainda mais suave, sutil e subliminar, seduzindo os homens com a satisfação de suas necessidades e tornando-os cúmplices "felizes" de sua servidão. O alvo atingido não é mais o corpo-máquina, mas o corpo erógeno, dotado de um psiquismo movido por pulsões e regido pelos princípios do prazer e da realidade.

Marcuse foi um dos arautos do movimento hippie, movimento de jovens que, nos anos 1960, pregavam uma contracultura que se opunha aos valores mais caros à sociedade americana, propondo o movimento pacifista contra a guerra do Vietnã, paz e amor livre, luta pelos direitos das minorias (movimentos negro, feminista e gay), trabalho artesanal e vida alternativa, sem consumo.

 

Debord e a sociedade do espetáculo - o homem-mercadoria

Assim como Marcuse inspirou a revolta dos jovens nos Estados Unidos, na Europa os situacionistas forneceram as palavras de ordem para as manifestações de maio de 1968, movimento em que jovens de todas as classes sociais e operários lutavam contra o poder constituído, na família, na empresa, na universidade e na política, e a favor de propostas radicais de mudança. Após a Segunda Guerra Mundial, no período de relativa estabilidade entre os EUA e a URSS que ficou conhecido como Guerra Fria, a presença militar e econômica dos Estados Unidos consolidou sua hegemonia na Europa e na América Latina. A ajuda econômica dos Estados Unidos na reconstrução da Europa difundiu o modo fordista de produção, o American way of life e os símbolos da cultura capitalista do novo mundo. O período pós-guerra caracterizou-se, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, pelo surgimento de uma cultura de massa que fugia aos padrões estabelecidos pela alta cultura europeia. Os pontos altos desse momento são as artes voltadas para o lazer, como a música, o teatro e o cinema. Esses setores da produção cultural conhecem um grande desenvolvimento, evidenciado pela invasão do cinema de Hollywood nos países europeus e pelo progresso do cinema italiano e francês. Nos meios culturais das principais capitais europeias, as vanguardas artísticas do entreguerras foram sendo radicalizadas nos anos 1950, com a reestruturação de movimentos como o Bauhaus Imaginista, o surrealismo, o dadaísmo, entre muitos outros. Mas, pouco a pouco, essas vanguardas perdem seu ímpeto de crítica radical e vão se integrando ao novo sistema de produção cultural de caráter industrial, midiático e de massa. É nesse contexto que surge, em 1952, na França saída dos traumas da guerra, da ocupação alemã e da colaboração, um grupo de intelectuais e artistas que se associam no movimento Internacional Letrista, que posteriormente deu origem à Internacional Situacionista, movimento artístico, político e poético criado e liderado por Guy Debord. Suas propostas de revolução contra o capitalismo e o estalinismo baseavam-se na crítica da sociedade de consumo e do capitalismo de estado dos países comunistas, fornecendo aos estudantes e operários uma alternativa ante o estalinismo dos aparelhos políticos burocratizados do sindicalismo e dos partidos. Sua crítica às artes, às ciências, aos intelectuais e ao establishment em geral deslocava a luta de classes do terreno da economia para o da cultura e da vida cotidiana, acenando com algo novo no cenário político: a revolução das subjetividades. Sua teoria revolucionária começa por uma crítica das condições de existência inerentes ao capitalismo superdesenvolvido: a pseudoabundância da mercadoria e a redução da vida ao espetáculo (Belloni, 2003).

Em seu livro, A sociedade do espetáculo, Debord explicita como ocorre a transformação do trabalhador em consumidor em prol dos interesses do capitalismo avançado:

Na fase primitiva da acumulação capitalista "a economia política só vê no proletário o operário", que deve receber o mínimo indispensável para conservar sua força de trabalho; jamais o considera "em seus lazeres, em sua humanidade". Esse ponto de vista da classe dominante se inverte assim que o grau de abundância atingido na produção das mercadorias exige uma colaboração a mais por parte do operário. Subitamente lavado do absoluto desprezo com que é tratado em todas as formas de organização e controle da produção, ele continua a existir fora dessa produção, aparentemente tratado como adulto, com uma amabilidade forçada, sob o disfarce de consumidor. Então, o humanismo da mercadoria se encarrega "dos lazeres e da humanidade" do trabalhador, simplesmente porque agora a economia política pode e deve dominar essas esferas como economia política. Assim, a "negação total do homem" assumiu a totalidade da existência humana. (Debord, 1997, pp. 31-32)

Para Debord, o espetáculo "é uma permanente Guerra do Ópio para fazer com que se aceite identificar bens a mercadorias e conseguir que a satisfação com a sobrevivência aumente de acordo com as leis do próprio espetáculo" (1997, p. 32). Por isso, o consumo se torna algo que deve crescer sempre, já que a privação nunca deve ser contida. Nesse sentido, "o consumidor real torna-se consumidor de ilusões" (1997, p. 33).

A sociedade contemporânea, segundo Debord, caracteriza-se pela separação e afastamento do mundo vivido em imagens que o representam, criando um mundo de imagens autonomizadas, que escapam ao controle do homem, da mesma forma que a criatura escapa de seu criador.

A onipresença dos meios de comunicação de massa e suas encenações espetaculares ampliam a coisificação e a reificação, o que não significa, no entanto, que o espetáculo possa ser compreendido como mero abuso do mundo da visão ou produto de técnicas de difusão massiva de imagens. O espetáculo é a expressão de uma visão de mundo, materialmente traduzida. "É uma visão cristalizada do mundo" (1997, p. 14).

O espetáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta em sua plenitude a essência de qualquer sistema ideológico: o emprobrecimento, a submissão e a negação da vida real. O espetáculo é, materialmente, "a expressão da separação e do afastamento entre o homem e o homem". A nova "força do embuste" que nele se concentrou tem por base essa produção, pela qual "com a massa de objetos cresce [...] o novo domínio de seres estranhos a quem o homem fica sujeito". (1997, pp. 138-139)

Para Debord, o espetáculo é o momento em que a mercadoria chega à ocupação total da vida social, pois nada mais se vê senão ela, de modo que o mundo visível é o seu mundo. A satisfação que a mercadoria já não pode oferecer pelo uso, acaba sendo procurada no reconhecimento de seu valor enquanto mercadoria: com o uso da mercadoria bastando-se a si mesmo; bastando, para o consumidor, a efusão religiosa para com a liberdade soberana da mercadoria. Dessa maneira, as ondas de entusiasmo por um dado produto, apoiado e relançado por todos os meios, propagam-se a grande velocidade, como um filme sugerindo um estilo de roupa ou uma revista lançando lugares da moda (Debord, 1997, pp. 44-45).

Debord cita como exemplo do fascínio exercido pelo valor da mercadoria certos objetos-brinde que são ostentados por aqueles que os possuem, como indicadores de prestígio. Reconhece-se, diz ele, naquele que faz uso desses objetos, a manifestação de seu abandono místico à transcendência da mercadoria, como uma espécie de indulgências da mercadoria, que, a exemplo das indulgências religiosas, denotam um sinal glorioso de sua presença entre os fiéis. À vista disso, o homem proclama a prova da sua intimidade com a mercadoria e, como nos arrebatamentos do velho fetichismo religioso, o fetichismo da mercadoria atinge momentos de excitação fervente (1997, p. 115).

O espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível, e sua única mensagem é: "o que aparece é bom, e o que é bom aparece". A atitude que ele exige é aquela aceitação passiva, que, na verdade, ele já obteve na medida em que aparece sem réplica, por seu monopólio de aparência (1997, pp. 16-17).

Contando com as estrelas do momento como seus agentes, o espetáculo os apresenta como modelos de identificação. A vedete do consumo, mesmo representando diferentes tipos de personalidade, mostra cada um desses tipos como tendo igualmente acesso à totalidade do consumo, e encontrando aí a felicidade. A vedete da decisão deve possuir o estoque completo do que foi admitido como qualidades humanas (1997, pp. 40-41). Mas nessa sucessão infinita de mercadorias que são oferecidas continuamente, a própria impostura da satisfação se denuncia, ao ser substituída assim que surgem novos produtos (1997, pp. 46-47).

Para o autor, o ganho de tempo, constantemente procurado pela sociedade moderna - seja pela utilização dos transportes ou pela utilização de sopas em pacote -, é gasto no consumo das imagens, notando que o tempo médio diário gasto pela população americana (no final da década de 1960) na contemplação da televisão era de três horas por dia (1997, pp. 105-106).

Ele previu que a cultura tida integralmente como mercadoria deveria se tornar a vedete da sociedade espetacular, de forma que, na segunda metade do século XX, desempenharia o papel de motor no desenvolvimento da economia, que foi representado pelo automóvel na primeira metade do século XX e pelas ferrovias na segunda metade do século XIX (1997, pp. 126-127).

Outro aspecto importante tratado por Debord é o que chamou de "autodestruição crítica da antiga linguagem comum da sociedade e sua recomposição artificial no espetáculo mercantil, a representação ilusória do não vivido" (1997, p. 121), afirmando ocorrer, com isso, o desfalecimento da faculdade do encontro, que é substituído por um fato alucinatório social: a ilusão do encontro (1997, pp. 139-140).

Nessa sociedade, as próprias capacidades pessoais do trabalhador passam a ser valorizadas e vendidas como mercadoria. Christopher Lasch, historiador que se inscreve na tradição crítica da Escola de Frankfurt e é considerado um dos mais severos críticos das sociedades industriais modernas, demonstra como se deu essa passagem:

O culto do sucesso do século XIX surpreendentemente deu pouca ênfase à competição, ele media o progresso não pelo progresso dos outros, mas por um ideal abstrato de disciplina e abnegação. Na mudança do século, contudo, as prédicas sobre o sucesso começaram a acentuar a vontade de vencer. A burocratização da carreira empresarial mudou as condições de autoprogresso, os jovens ambiciosos tinham agora que competir com seus pares pela atenção e aprovação de seus superiores.

(Lasch, 1983, p. 85)

O magnetismo pessoal passa a ser considerado uma qualidade importante, pois capacita um homem a influenciar e dominar os outros, como se depreende do sucesso de alguns manuais publicados na época, que ensinavam "como fazer amigos e influenciar pessoas", levando aos jovens a mensagem de que para obter sucesso tinham de saber vender sua imagem (1983, pp. 85-86).

Referendando a ideia defendida por Debord, de que nessa sociedade o que conta é a aparência, Lasch afirma que as "imagens da vitória" contam mais que o desempenho e a atribuição mais do que a realização, de sorte que o sonho do sucesso foi esvaziado de qualquer sentido além do seu próprio (1983, p. 87). Na sociedade baseada na produção de mercadorias, nenhuma das antigas formas ultrapassadas de pensamento ou sentimento tem qualquer posição lógica, sendo seu objetivo último a busca desenfreada pelo prazer instantâneo (1983, p. 98).

Considerando que, "após a ebulição política dos anos 60, os americanos recuaram para preocupações puramente pessoais" (Idem, ibid., p. 24), Lasch afirma que a escassez de ideais comuns e o consequente recuo da política levaram ao surgimento de uma ética da sobrevivência narcísica que aponta para o investimento no bem-estar individual como única alternativa válida.

Assim, para Lasch (1983, p. 124), a publicidade encoraja todos a verem a criação de seu eu como a forma mais alta de criatividade e a identidade passa a ser construída a partir de materiais fornecidos pela publicidade e pela cultura de massa (1983, p. 126). Para polir e aperfeiçoar o papel que escolher para si, o novo Narciso olha para seu próprio reflexo, não tan-to por admiração, mas por uma incessante procura de imperfeições, sinais de fadiga ou decadência (1983, p. 123). As for-mas predominantes da vida social encorajam muitas formas de comportamento narcisista, que alteram inclusive os processos de socialização, enraizando-os já nas primeiras experiências do indivíduo. Lasch afirma que esse modo de socialização favorece a criação de pessoas mimadas, não só pela satisfação de seus desejos e necessidades pela via do consumo, mas também pela necessidade contínua de aplauso, criticando os rumos tomados pela educação, em que qualquer tipo de correção passa a ser vista como potencialmente traumatizante, formando pessoas incapazes de lidar com as dificuldades da vida adulta.

Para Lasch, "ao mesmo tempo que a sociedade torna cada vez mais difícil o encontro no amor e no trabalho, cerca o indivíduo de garantias manufaturadas de gratificação total" (1983, p. 277).

No mesmo ano em que Lasch publica seu livro sobre o narcisismo (1979), diante das transformações que ocorriam na natureza da produção industrial e nas técnicas de governo, Debord aponta o surgimento do espetacular integrado e, na década seguinte, com o fim da Guerra Fria e a conversão da burocracia russa, atesta plenamente o progresso da técnica espetacular.

As transformações às quais Debord se refere são as que ocorrem a partir da década de 1970, com a crise do fordismo. No período de 1965 a 1973 começa a ficar cada vez mais evidente a incapacidade do fordismo e do keynesianismo de conter as contradições inerentes ao capitalismo. Como nem todos eram contemplados pelos benefícios desse sistema, tornava-se cada vez mais difícil manter essas desigualdades. Sem acesso ao trabalho privilegiado da produção de massa, amplos segmentos da força de trabalho não tinham acesso ao consumo de massa. A esse descontentamento, aliavam-se os movimentos das minorias excluídas, os movimentos contraculturais e a crítica à racionalidade burocrática despersonalizada.

A crise do petróleo de 1973 levou à necessidade de economizar energia através de mudanças tecnológicas e organizacionais, obrigando as corporações a entrarem num período de racionalização, reestruturação e intensificação do controle do trabalho, que se valeu de várias estratégias para acelerar o tempo de giro do capital: mudança tecnológica, automação, busca de novas linhas de produtos e nichos de mercado, dispersão geográfica para zonas de controle do trabalho mais fácil e fusões.

O compromisso fordista foi solapado, dando lugar ao regime de acumulação flexível, que se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. O regime de acumulação flexível caracteriza-se pelo surgimento de novos setores de produção, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. Ele amplia a oferta de empregos no "setor de serviços" e envolve um movimento de "compressão do espaço-tempo" (Harvey, 2002, p. 140).

Nessa nova modulação do capitalismo, cada um deve se tornar o empreendedor de si mesmo. Foucault destacou que, no neoliberalismo, o homo economicus passa a ser considerado o empresário de si mesmo, sendo ele próprio seu capital, seu produtor e sua fonte de renda. Trata-se da teoria do capital humano, concebido como composto de elementos inatos (hereditários ou não) e adquiridos (obtidos por meio de investimentos em educação) (Foucault, 2008, pp. 311-312).

Foucault também previu que a partir da Segunda Guerra Mundial começou a se configurar um novo tipo de sociedade, que Deleuze descreveu como a "sociedade de controle":

É fácil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de máquina, não porque as máquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as for-mas sociais capazes de lhes darem nascimento e utilizá-las. As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e o ativo, a pirataria e a introdução de vírus. Não é uma evolução tecnológica sem ser, mais profundamente, uma mutação do capitalismo. É uma mutação bem conhecida que pode ser resumida assim: o capitalismo do século XIX é de concentração, para a produção e de propriedade. Por conseguinte, erige a fábrica como meio de confinamento, o capitalista sendo o proprietário dos meios de produção. [...] Mas atualmente o capitalismo não é mais dirigido para a produção, relegada com frequência à periferia do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas complexas do têxtil, da metalurgia ou do petróleo. É um capitalismo de sobreprodução. Não compra mais matéria-prima e não vende produtos acabados: compra produtos acabados ou monta peças destacadas. O que ele quer vender são serviços e o que quer comprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a produção mas para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado. (Deleuze, 1992, pp. 223-224)

Nessa sociedade, os muros da sociedade disciplinar vão sendo demolidos, e o controle, possibilitado pelas novas tecnologias da informação, dá-se a céu aberto, em tempo real e em rede. Todos são continuamente vigiados por câmeras de segurança, que avisam a todo momento e nos mais insuspeitados lugares, das salas de aula às de parto: "sorria, você está sendo filmado".

Demolidas as fronteiras que separavam as instituições, a partir de agora sempre é possível, enquanto se trabalha, ser bombardeado na tela do computador por um sem número de ofertas de mercadorias, e, nos momentos de lazer, ser acessado pelo chefe que cobra a realização de uma tarefa, sem ter de se confrontar fisicamente com a resistência de seu subordinado.

Os movimentos realizados na internet são rastreados, gerando perfis cada vez mais precisos dos consumidores, contribuindo para a criação de produtos direcionados a nichos de mercado cada vez mais segmentados. O consumidor passivo da TV vai sendo substituído por um consumidor ativo, que produz conteúdos, seja pela avaliação e comentários que emite nas redes sociais, seja pela produção e venda de estilos, a exemplo das blogueiras de moda, que impõem padrões de estilo e consumo a milhões de seguidores.

A rapidez com que o desejo por novos objetos de consumo é renovado e a instantaneidade de sua satisfação fazem com que a obsolescência programada reduza a vida útil dos produtos a um tempo mínimo, gerando, de um lado, a ansiedade e a compulsão consumista motivada pelo desejo de estar sempre atualizado, e de outro, a questão ambiental de como lidar com a monumental quantidade de lixo gerada.

A necessidade de todos terem de agir como capitalistas de si mesmos, buscando vender sua criatividade, sua expertise e sua imagem da melhor forma possível, a fim de obter os maiores lucros, transforma todos os aspectos da vida em espetáculo.

Nas redes sociais virtuais a vida é exposta como produto a ser consumido, por meio de imagens que atestam as qualidades pessoais e profissionais de cada um: sua formação, seu currículo, os lugares que frequenta, suas companhias, o que consome etc.

Numa espécie de democratização dos lugares até então reservados aos membros endinheirados das elites, como as colunas sociais e os livros do tipo "quem é quem", as redes sociais virtuais se tornaram o lugar onde todos podem saber da vida de todos e ter seus 15 minutos de fama, tornando-se celebridades instantâneas. A vida privada passa a ser exibida, sendo alvo de admiração e elogios mas também de comentários maldosos, perseguição, ódio e inveja.

E, assim como os produtos, as identidades também se tornam obsoletas num piscar de olhos, exigindo dos indivíduos flexibilidade e rapidez cada vez maiores para criar novos modos de ser. Se a sociedade disciplinar operava com moldes rígidos, a sociedade de controle funciona por um tipo de modulação que exige a atualização contínua de si mesmo para que se esteja sempre apto a ser escolhido nas prateleiras do mercado de bens.

Assim, para Bauman: "Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável" (Bauman, 2008, p. 20).

Na sociedade de produtores, de acordo com Bauman, o ato de comprar e vender a força de trabalho, ao dotá-la de um valor de mercado, transformou o produto do trabalho numa mercadoria, de uma forma não visível, sendo oculta na aparência de uma interação autônoma de mercadorias. No caso da subjetividade na sociedade de consumidores, o que se compra e vende são os símbolos empregados na construção da identidade - a expressão supostamente pública do self que coloca a representação no lugar daquilo que ela deveria representar (Bauman, 2008, p. 23).

Segundo Bauman, nessa sociedade, notória por eliminar as fronteiras entre o privado e o público, o ato de expor publicamente o privado tornou-se uma virtude, de maneira que a vida interior de cada pessoa, que antes era invisível, agora deve ser exposta ao público. Mas não nos enganemos, alerta o autor, pois a exposição de situações ou fatos, que até outro dia eram considerados impróprios para serem expostos publicamente, não constitui exatamente um relacionamento íntimo, pois os dispositivos, como computadores, celulares e outros, funcionam para os indivíduos contemporâneos como a areia na qual o avestruz enterra sua cabeça, já que o interlocutor pode ser desconectado ou deletado com o simples toque de um botão. Nesse ambiente, as relações humanas são reconstruídas à semelhança das relações entre os consumidores e os objetos de consumo, de modo que o impacto da diferença entre o relacionamento dos parceiros e o ato de adquirir bens de con-sumo comuns é minimizado pela cláusula que torna a decisão de um dos parceiros suficiente para encerrá-la. Nesse tipo de relação, tal como no mercado de bens, os parceiros têm o direito de tratar um ao outro como tratam os objetos de consumo (Bauman, 2008, p. 32). (Tal como ocorre, exemplifico, quando uma pessoa termina uma relação amorosa por email.)

A contrapartida dessa posição resulta na dor solipsista, porque na cultura do narcisismo triunfante "pega mal" expor suas falhas ao outro, já que a subjetividade deve ser, antes de tudo, autossuficiente (Birman, 2012, p. 141).

 

Desafios para a clínica psicanalítica

O que a psicanálise, que "foi uma tentativa de resposta e de solução para o mal-estar existente na modernidade" (Birman, 2012, p. 60), tem a dizer sobre a subjetividade que vem sendo construída na sociedade contemporânea e sobre os males que a acometem?

Vários autores vêm se debruçando sobre o tema, dos quais citamos o artigo de Mendes, Viana e Bara (2014, p. 423), que consideram a melancolia e a depressão patologias relacionadas à posição do sujeito diante das demandas da sociedade do narcisismo e do espetáculo.

A esses quadros poderíamos acrescentar o que Christopher Bollas definiu como doença normótica:

O aspecto fundamental que identifica esse indivíduo é a aversão em nutrir o elemento subjetivo da vida, existente dentro de si próprio ou no outro. A capacidade instrospectiva foi raramente usada. Essa pessoa revela-se verdadeiramente ingênua quando é instada a comentar questões que exigem um olhar para o seu interior ou para o outro, com alguma profundidade. (1992, p. 171)

Para Bollas, esse tipo de pessoa neutralizou os elementos subjetivos e criativos de sua personalidade, desenvolvendo uma mente que procura ser objetiva e se caracteriza menos pelo psíquico (simbolização representacional dos sentimentos, sensações e percepções intrassubjetivas) do que pelo objetivo. Essa mentalidade é dirigida não para representar o objeto, mas para ser "o eco da concretude inerente aos objetos materiais, para ser um objeto bem-de-consumo no mundo da produção humana" (Bollas, 1992, p. 170).

Bollas descreve os desafios que este tipo de personalidade, que, ao que tudo indica, parece estar perfeitamente adaptado à sociedade contemporânea, representa para a psicanálise, não apenas por sua dificuldade de olhar para seu mundo interno, como por sua dificuldade de reconhecer e integrar o trabalho do analista.

 

REFERÊNCIAS

Bauman, Z. (2008). Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Belloni, M. L. (2003). A formação na sociedade do espetáculo: gênese e atualidade do conceito. Revista Brasileira de Educação, n. 22, 121-136.         [ Links ]

Birman, J. (2012). O sujeito na contemporaneidade: espaço, dor e desalento na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Bollas, C. (1992). A sombra do objeto. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Debord, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1967).         [ Links ]

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Harvey, D. (2002). Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola. (Trabalho original publicado em 1989).         [ Links ]

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Lasch, C. (1983). A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1979).         [ Links ]

Marcuse, H. (1968). L'homme unidimensionnel: essai sur l'idéologie de la societé industrielle avancée. Paris: Les Editions de Minuit. (Trabalho original publicado em 1963).         [ Links ]

Mendes, E. D., Viana, T. C. & Bara, O. (2014). Melancolia e depressão: um estudo psicanalítico. Psicologia: Teoria e Pesquisa, vol. 30, n. 4, 423-431.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
LAURA BELLUZZO DE CAMPOS SILVA
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Recebido 30.04.2017
Aceito 27.05.2017

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