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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.63 São Paulo jan./jun 2017

 

EM PAUTA | PENSAMENTO CLÍNICO E CULTURA DO ESPETÁCULO

 

Obesidade mórbida na contemporaneidade: entre o excesso do corpo e o silêncio das palavras1

 

Morbid obesity in contemporaneity: between the excess of the body and the silence of words

 

 

Maria Goretti Machado

Candidata da Sociedade Psicanalítica de Minas Gerais, mestre em psicologia (PUC/MG). Pós-graduada em psicologia médica (UFMG) e psicóloga

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No presente trabalho, pretendemos desenvolver uma reflexão sobre o lugar do corpo obeso mórbido desde a antiguidade até a contemporaneidade. Na tentativa de compreensão das movimentações psíquicas do obeso, abordaremos a finalidade da obesidade e sua relação com o comer compulsivo. Pensamos que o corpo é lugar de escritura: na ausência da palavra surge a atuação. O comer compulsivo e excessivo cria uma grande massa que protege o sujeito da energia livre, que percorre o corpo sem significação.

Palavras-chave: Obesidade mórbida. Contemporaneidade. Defesa. Pulsão de morte.


SUMMARY

In this paper we aim to develop a reflexion about the place of the body of a morbid obese since antiquity till contemporaneity. In try to understand the obese's psychic movement, we will discuss what is the finality of obesity and its relationship with the compulsive eating. Compulsive and excessive eating creates a big mass that protects the subject form free energy, which runs the body without signification.

Keywords: Morbid obesity. Contemporaneity. Defense. Death drive.


 

 

O crescente aumento dos casos de obesidade mórbida no mundo contemporâneo vem chamando a atenção de diversos profissionais da área da saúde, da sociologia e da filosofia, numa tentativa de entender a questão. A obesidade se tornou um problema de saúde pública mundial, e, hoje, existem vários centros multidisciplinares na rede pública e privada que objetivam o tratamento.

As causas da obesidade são multifatoriais e complexas, que englobam questões orgânicas, psíquicas e sociais, não podendo a patologia ser resumida a apenas uma área do conhecimento. Assim, vários profissionais se encontram envolvidos com as práticas terapêuticas para a obesidade. Entretanto, a terapêutica idealizada entre os obesos é a cirurgia de redução de estômago. Atualmente, com a facilidade de acesso a essas cirurgias, é possível pensar em uma verdadeira epidemia do emagrecimento fácil, fantasia que impera no imaginário dos obesos mórbidos, garantia da felicidade perfeita e plena, com a resolução de todos os problemas orgânicos e psíquicos, a partir do ato cirúrgico sem implicações subjetivas. Mas, apesar de todos os esforços tanto por parte dos profissionais quanto dos pacientes, são também frequentes e constantes os fracassos, mesmo após as cirurgias de redução de estômago. Essas cirurgias aparecem em uma cultura pós-moderna na qual a técnica apresenta pseudossoluções em que o sujeito não precisa se implicar subjetivamente (Le Breton, 1992/2003). As soluções são externas e não demandam energia psíquica.

O presente contexto surge aos nossos olhos como um desafio: quais as contribuições do "saber psi" para pensar as dinâmicas psíquicas do sujeito no quadro de obesidade mórbida? Haverá algum elemento na cultura atual que contribua para o aumento de casos de obesidade mórbida? Assim, pensamos em desenvolver essa reflexão sobre o obeso mórbido na contemporaneidade partindo de dois momentos: primeiro, articular as possíveis características da contemporaneidade com o aumento de casos de obesidade; em seguida, buscar na teoria freudiana subsídios para pensar a economia pulsional na obesidade, pois, seguindo a trilha de Birman (1999), pensamos que "o sujeito do inconsciente é uma produção simbólica e desejante que se delineia entre os polos da pulsão e da cultura" (Birman, 1999, p. 10).

A obesidade não é recente na história da humanidade. Ela existe desde a Antiguidade, tendo-se notícia por meio dos achados arqueológicos, da literatura e das obras de arte. Já foi enaltecida pela nobreza como símbolo de poder, de riqueza, de elevação social. A arte já cultuou a obesidade como símbolo de beleza, de admiração. Por outro lado, a busca pelo emagrecimento também tem uma história tão antiga quanto a do próprio homem, pois Hipócrates já aconselhava a prática de exercícios físicos e de dieta para obtenção de um corpo saudável (Loli, 2000).

No século XIX, na literatura francesa, a obesidade mórbida é citada como resultado de um grande estresse emocional. "Nesta época, era comum observar a utilização de uma palavra do vernáculo germânico, Kummerspeck, que queria dizer 'gordo de tristeza'" (Loli, 2000, p. 20). A Primeira e a Segunda Guerra Mundial colaboraram muito com as primeiras hipóteses sobre o papel de aspectos emocionais no desenvolvimento da obesidade. Pesquisadores observaram casos de obesidade em mulheres após um longo período de incertezas sobre os destinos dos familiares que serviam na guerra ou, principalmente, pela certeza da morte deles. Nos campos de concentração, foram observados casos de obesidade severa e de desenvolvimento rápido em pessoas expostas a períodos longos de inanição (Loli, 2000). Com o surgimento e o avanço da tecnologia, da ampliação da medicina preventiva e do capitalismo como agenciador dos bens de consumo, a obesidade vai, aos poucos, transformando-se em um problema, até se tornar uma doença e, finalmente no século XX, torna-se uma epidemia mundial.

De acordo com Enriques (1991), a cultura acentua certos modos de funcionamento psíquico que são adequados ao sujeito, cria um espaço favorável às manifestações estereotipadas do desejo que cada sujeito engendra em seu desenvolvimento libidinal, fornece os elementos de base que legitimam certos modos de expressão do sujeito.

Segundo Jurandir Freire Costa (2003), a partir do século XIX, desenvolveram-se novas formas de constituição da identidade, trazendo para o primeiro plano o corpo. A virada somática se deu em função de um remapeamento cognitivo e, sobretudo, em função da invasão da nossa cultura pela moral do espetáculo (Debord, 1967/1997), pois vivemos em uma cultura do narcisismo patológico, o mundo estaria centrado no eu da individualidade, é autorreferente e não constituinte da identidade (Lasch, 1983). No século XX, o corpo é o lugar por meio do qual a pessoa deve fazer todo o esforço para parecer que vai bem (Courtine, Courbine & Vigarello, 2008).

Gilles Lipovetsky (2007) denomina a sociedade contemporânea como sociedade da era do hiperconsumo, em que a alegria foi redescoberta pelo homem atual por meio do culto às sensações imediatas, aos prazeres do corpo e dos sentidos, às volúpias do presente; a felicidade transforma-se em paradoxal. Torna-se necessário ofertar vários objetos que tentam tamponar a angústia, mas, paradoxalmente, esse aumento de objetos denuncia ainda mais a condição de falta, de carência, de finitude.

Assim, o sujeito busca sempre a estetização de si mesmo, transformada na finalidade crucial de sua existência. O desejo sucumbe diante da exaltação dos emblemas narcísicos do eu, na demanda de autocentramento e espetáculo. O obeso usa as terapias do corpo e da alma como meio de evasão de si mesmo. Centrado no corpo ideal, afasta-se de sua história, de sua construção subjetiva e se perde na objetividade do consumo cujo movimento é incessante.

Bauman (1998) nos diz que cada época constrói suas impurezas. Na atualidade, a obesidade e os obesos seriam a sujeira da sociedade pós-moderna, aquele que não sabe escolher o que consumir satisfatoriamente. Os obesos são o incômodo social, sendo atacados por um julgamento moral perverso dos "lipofóbicos" (Fischler, 1995), aqueles que têm obsessão pela magreza e horror à obesidade e que usam o escudo de defensores da saúde e da qualidade de vida. Uma vez que a sociedade não consegue a remoção da impureza, então a exclusão se torna a solução. Desse modo, é comum não encontrarmos obesos em academias, nos espaços públicos, mas, sim, trancados em casa de frente a uma televisão, consumindo programas sobre saúde e sobre obesos nos canais pagos, com uma garrafa de Coca-Cola zero e muita pipoca de micro-ondas.

Nossa sociedade, ao criar formas de combate à obesidade, oferecendo soluções mágicas e rápidas, contribui para o seu crescimento. Parece-nos que os objetos ofertados encontram ressonância subjetiva à medida que tocam as ilusões de completude e podem apresentar-se como objetos para pulsão. O corpo transformou-se em um empreendimento a ser administrado pelas normas do consumismo, não permitindo o questionamento sobre esse "sintoma" - obesidade - que vai além do excesso de gordura. O corpo deixa de ser o lugar do sujeito e torna-se um objeto de seu ambiente, um acessório que pode ser modificado pela medicina sem restrições (Le Breton, 1992).

E, como último recurso mágico, surge a cirurgia bariátrica, operando primeiro no imaginário uma promessa de modificar o olhar sobre si e o olhar dos outros, a fim de poder existir plenamente. A esperança é de que, mudando o corpo, se possa mudar a vida e seu sentimento de identidade, porém o psiquismo constitui-se a partir do simbólico e do registro da lei e, assim, os obesos permanecem vagando pelo mundo, consumindo novas patologias quando também fracassam as cirurgias bariátricas. No imaginário, a cirurgia parece funcionar como uma tentativa de separação, mas o que promove é a anorexização da obesidade. A desilusão torna-se insuportável quando engordam novamente e o corpo, mais concreto; as palavras perdem totalmente seu valor de vínculo.

Podemos comparar o modo como o corpo da histérica foi tratado antes de Freud, como o corpo obeso é tratado, precisando ser excluído, eliminado, muitas vezes, em nome do bem-estar, queimado em fogueira, mas não em praça pública. A insistência e a recorrência do sofrimento psíquico nos auxiliam a considerar que a obesidade, assim como a histeria, destaca como a relação do sujeito com seu corpo está para além da noção de corpo biológico. Lembrando que o corpo da histérica é lugar de representação e o do obeso não.

Segundo Ceccarelli (2007), a especificidade de cada sintoma, o que o particulariza, são as representações e as significações por meio das quais e nas quais o sujeito se manifesta, não havendo possibilidade de generalizações. Segundo Freud (1926), quando há uma falha na possibilidade de representação, é grande a chance de um sintoma se manifestar no corpo como um sinal de que algo não vai bem, sendo a forma como cada sujeito tem para mostrar que existe um problema a ser ouvido. Assim, poderíamos pensar a obesidade mórbida como um sintoma singular em resposta a conflitos, posições subjetivas assumidas pelo sujeito, uma defesa, um escudo protetor contra os estímulos internos, uma doença para evitar algo mais grave (Marty, 1993). Mas como não existe defesa suficiente e eficiente que possa conter os estímulos internos, o sofrimento se faz presente.

Seguindo essa ideia da obesidade como um sintoma, Recalcati (2002) nos mostra que a obesidade é uma doença própria da infância, pois o sujeito permaneceu fixado em seu status de objeto da mãe, das chamadas "mães de extremos", que não cedem lugar à separação. Mães que favorecem sentimentos de profundo desamparo, que impedem que ocorra uma distância necessária e adequada ao processo de individuação, não permitindo que ocorra o desmame psíquico. Jeament (1999) nos fala de uma "apetência objetal", própria de vivências primitivas, em que a relação com a mãe é caracterizada pela voracidade e fusão. Completando essa ideia, utilizaremos as palavras de Brusset: "tudo se passa como se o ajuste conveniente sujeito/objeto não tivesse sido feito, deixando persistir uma dependência que priva o sujeito de si mesmo" (1999, p. 55).

É interessante pensarmos que a obesidade mórbida não se trata de uma estrutura ou de um novo sintoma, mas de um processo defensivo de fuga contra um perigo, uma maneira particular de não se colocar diante da vivência de separação/ castração, de não permitir a entrada da função paterna como instituinte da lei, do limite ao gozo pulsional com a mãe e que pode percorrer e perpassar todas as estruturas e psicopatologias. Conflitos cujas falhas ocorreram nas bases da constituição da subjetividade, que caracterizam a "clínica do agir" (Gurfinkel, 2006). MacDougall (2000) denomina pacientes cujos gritos de aflição procuram chamar mais a atenção para o perigo de morte do que para o perigo da vivência da castração, sendo o corpo inteiro oferecido como lugar de conflito.

Recalcati (2002) nos traz algumas formas de expressão da obesidade. A obesidade pode nos falar sobre um sintoma neurótico, em especial do sintoma histérico, um modo de questionamento do sujeito quanto a seu valor no desejo do outro. Maria passa a duvidar de seu lugar de objeto de amor para o namorado e começa, aos poucos, a engordar. "Ele me ama ou amava meu corpo?" A obesidade também pode funcionar como uma defesa contra a psicose. Nesse caso, o sujeito se torna literalmente um objeto-devorado. A pulsão de devoração aparece como completamente desregulada, a ponto de se confundir, na realidade, o sujeito com o objeto: o sujeito come, mas não sabe se come ou se é comido. Roberto, após o surto, para de fazer dieta, pois estava muito fraco, virara um pé de alface, e volta a engordar para ficar forte. O autor ainda nos traz a ideia da obesidade como indicadora de um traço perverso, à medida que promove certa angústia, um horror em quem olha o corpo gordo, e a percepção desse olhar promove um prazer no obeso. Acreditamos que possamos pensar a obesidade como um fetiche, um substituto para o pênis, mas não um pênis qualquer e sim "um substituto do pênis da mulher (da mãe)" (Freud, 1927/1976, p. 180). Ao perder a obesidade, inconscientemente o obeso se dá conta de que possuía o falo/poder e o perdeu, ou melhor, de que o corpo era o falo/poder, sendo este o que garantia seu "triunfo sobre a ameaça de castração e uma proteção contra ela" (Freud, 1927, p. 181). Esses pacientes não podem emagrecer e usam a obesidade como um troféu, uma forma de poder para seduzir o outro, seja expondo seus corpos em concursos de beleza, seja na comercialização do sexo. Joana desiste do emagrecimento, pois por meio deste perderá sua sexualidade e sua vivacidade. Segundo Recalcati (2002), o obeso luta a todo tempo para se manter preso ao desejo do Outro, evitando a separação, mesmo que pague com o preço da vivência de uma angústia de sufocamento pelo excesso de objeto/comida e pela falta que faz esse sujeito.

Bruch (1973) explica que na obesidade o corpo é percebido como distorcido na sua forma, na sua função, pois o indivíduo tem dificuldade de avaliar a quantidade de comida que ingere, consumindo quantidades exageradas que nunca parece saciar por completo ou mesmo discernir o desejo da fome. A comida se destaca como objeto da compulsão imposto, de modo fascinante e mortífero, pela voracidade. É estabelecido um gozo sobre a comida e instaurada uma obediência ao comando do laço-comida. Além do sofrimento psíquico causado por esse corpo fora de controle e entregue à voracidade, o sujeito vive concomitantemente intensa culpabilidade social. A compulsão alimentar dificulta e até mesmo impede o tratamento, mesmo após a cirurgia bariátrica, e preserva a obesidade.

Podemos perceber como nos obesos mórbidos a pulsão de morte se faz muito presente, o excesso de alimento ataca o próprio organismo: "comida é veneno que faz adoecer" (Freud, 1933/1976, p. 151). Como nos mostra Recalcati (2002), o comer compulsivo do obeso mostra sua incapacidade de recusa à demanda do outro, do corpo obeso, e se torna fixo no objeto, na comida, como forma de compensação.

A alimentação, que poderia estar a serviço da vida, nos mostra no comer excessivo, ao ultrapassar a necessidade orgânica e indo além do prazer, sua submissão à pulsão de morte. Mas a ação da pulsão de morte não se limita ao comer e, muitas vezes, estende seu poder na forma buscada nos tratamentos. Ocorre uma compulsão nas constantes trocas de tratamento, na contagem de calorias dos alimentos, ou seja, mesmo quando não se come, a comida continua compulsivamente a ocupar a mente do obeso, impedindo seu pensar. Falhando a dieta, vem a ideia da cirurgia como único recurso possível para barrar o comer excessivo, mas como o que precisa ser barrado é esse poder destruidor da pulsão, tal tentativa pode redundar em novos e irrecuperáveis sofrimentos, tanto físicos como psíquicos.

Nesse comer compulsivo, assim como ocorre nas toxicomanias, a autodestruição se faz presente com um aumento considerável da força do id e, ao mesmo tempo, ocorre a diminuição da força do ego. A compulsão alimentar pode se manifestar apropriando-se do lado social da comida, numa monótona repetição de fatos: a reunião com os amigos, o beber, conversar, comer, rir do próprio peso, ser censurado pelo excesso de comida e, por fim, dar boas gargalhadas. O comer excessivo do obeso passa a ser um prazer que lhe custa muito caro, "o instinto de autopreservação na realidade foi invertido. Eles parecem visar a nada mais que a autolesão e a destruição" (Freud, 1940, p. 208).

A partir do texto "O ego e o id" (Freud, 1923/1976), podemos pensar como a severidade do superego pode dificultar o processo de emagrecimento, apesar e além do emagrecimento, pois encontramos, frequentemente, pacientes que reagem aos progressos da cura de uma forma paradoxal, pois toda melhora de seu estado os leva a um novo agravamento, fenômeno que Freud (1923) denominou como "reação terapêutica negativa". "Não há dúvida de que existe algo nessas pessoas que se coloca contra o seu restabelecimento, e a aproximação deste é temida como se fosse um perigo" (Freud, 1923, p. 65). Há nesses pacientes uma necessidade de estar doente, pois eles se sentem culpados inconscientemente e não podem renunciar à punição pelo sofrimento. Ainda no referido texto, Freud (1923) explica que, enquanto o instinto destrutivo estiver fusionado com Eros, este controlará o primeiro de forma a não se exceder em suas manifestações. Entretanto, ao ocorrer a desfusão entre os dois, Eros não tem mais como controlar seu opositor e este passa a agir livremente, devido ao "surgimento pronunciado do instinto de morte" (Freud, 1923, p. 57), que se transforma em um grande vilão a ser vencido, pois o que reina é "uma cultura pura do instinto de morte" (Freud, 1923, p. 70). Nos casos extremos, satisfazer o sentimento de culpa inconsciente constitui o benefício secundário de permanecer doente em vez de se curar, o que faz disso uma das formas mais graves e resistentes ao tratamento, pois o "instinto destrutivo se voltou novamente para dentro e agora se enfurece contra o eu" (Freud, 1924/1976, p. 207), fator que traduz sua tendência masoquista.

Podemos, então, notar a presença e a força destrutiva de pulsão de morte em muitos pacientes, nos quais, pela compulsão alimentar, se mantêm como uma rocha de difícil penetração. Com relação à obesidade, Recalcati (2002) nos mostra como o impulso à incorporação do objeto manifesta sua ligação profunda com a pulsão de morte. Assim, a falta de limite de hiperfagia fornece ao sujeito recursos para lidar com a frustração resultante da impossibilidade de preenchimento e satisfação de desejo. O ato compulsivo de comer substitui o pensamento e recai sobre o corpo. Nesse excesso de corpo ocorre o silêncio das palavras, uma desafetação, a incapacidade quase total de manter contato com suas próprias emoções, o obeso fica psiquicamente separado de suas emoções ou de suas realidades psíquicas. Vivem aprisionados em seus corpos, mas é nessa prisão que estão protegidos e podem sobreviver pela incapacidade de conter um excesso da experiência afetiva (MacDougall, 2000). A ação, operando sobre o pensamento e sobre a capacidade de fantasiar, leva o sujeito a regredir a estágios bem primitivos, que impedem a elaboração e, com isso, garantem que nada penetre no ego, ocorre apenas uma descarga motora, impera a atuação. O corpo obeso mórbido é um corpo que sufoca, que vela e desvela o sofrimento, sem poder contar com as palavras que o signifiquem.

De acordo com Rañna (1997), tratando-se da estruturação do aparelho psíquico, inicialmente, diante das urgências somáticas, ainda não há espaço para as representações, mas sim um vazio representacional, e as urgências somáticas retornam ao corpo. A formação do psiquismo, na concepção desse mesmo autor, acontece da seguinte forma: primeiro há o vazio, que passa a ser subjetivado com a ausência e, então, é nomeado como falta. Nos extremos dessa série, estão o impensável, que vai além do imaginário, e o simbólico. No plano do impensável, estão as somatizações. Na pobreza simbólica, o obeso mórbido, não suportando a angústia, trata de encher o estômago como se não houvesse lugar para a ausência, que é condição da inscrição da falta.

 

Considerações finais

Assim, podemos pensar a obesidade mórbida na atualidade como uma interseção entre a história do sujeito e as ofertas da sociedade de consumo. Na ausência de amor, vale a devoração de alimentos como tentativa de tamponar a ausência, inviabilizando a inscrição da falta, elemento decisivo para a construção do desejo, e mantendo o obeso à margem do campo do desejo e à margem de uma cultura da magreza.

As mudanças na sociedade contemporânea impulsionaram um novo estilo de vida, sobretudo uma excessiva valorização da imagem influenciada pelo consumismo, pautado pela "cultura do espetáculo", oferecendo infinitas possibilidades de objetos a serem consumidos. Na leitura de Lasch (1983), vivemos em uma cultura do narcisismo, em que o mundo estaria centrado no eu da individualidade, sendo sempre autorreferente. E, de acordo com Debord (1967), soma-se ao narcisismo a exigência do espetáculo como catalisador dos laços. Assim, o sujeito busca sempre a estetização de si mesmo, transformada na finalidade crucial de sua existência. A cultura do narcisismo e a sociedade do espetáculo contribuíram para a construção de um modelo de subjetividade no qual se silenciam as possibilidades de encontro com o outro e consigo. O desejo sucumbe diante da exaltação dos emblemas narcísicos do eu, na demanda de autocentramento e espetáculo.

A questão do obeso reflete bem a ausência de sentido que caracteriza a sociedade contemporânea na qual sua imagem perde o vínculo com a própria identidade, com sua referência, ou seja, com sua própria posição subjetiva.

Para Lasch (1983), o narcisismo moderno é patológico, pois tem como alicerce o consumismo como constituinte da identidade. O Narciso da atualidade não é mais o descrito por Freud, pois hoje não se ama mais a própria imagem, não se tem coragem para contemplá-la; mas, antes, odeia-se a própria imagem, e o corpo precisa ser construído em função do ideal ditado pela moda.

O Narciso moderno não é um Narciso, é uma prosaica Moura-Torta. Como a Moura-Torta, ele não ama a imagem de si mesmo, pelo contrário, a odeia. Como a Moura-Torta, ele está obsessivamente fascinado pela inveja e odiado pela imagem do corpo da princesinha. Esta relação de ódio ao corpo-próprio e ódio e inveja do corpo desejado é motor do interesse narcísico, presente na sociedade de consumo (Costa, 2003, p. 248).

Diante dessa situação de exigência de performance de um corpo perfeito, o obeso usa as terapias do corpo e da alma como meios de evasão de si mesmo; centrado no corpo ideal, afasta-se de sua história, de sua construção subjetiva e se perde na objetividade da moda cujo movimento é incessante.

A cirurgia bariátrica surge ao obeso como uma promessa de modificar o olhar sobre si e o olhar dos outros, a fim de poder existir plenamente. A esperança é de que, mudando o corpo, se possa alterar a vida e seu sentimento de identidade. A cirurgia opera, em primeiro lugar, o imaginário e exerce uma incidência na relação do sujeito com o mundo. Porém, o psiquismo se constitui a partir do simbólico e do registro da lei e, assim, os obesos permanecem vagando pelo mundo, consumindo novas patologias quando fracassam as cirurgias bariátricas, empurrados pelo vazio e desamparo que lhes fizeram buscar respostas e formas na sociedade contemporânea de consumo.

Nesse cenário, surge o psicanalista, que, para lutar contra essa força demoníaca presente na obesidade mórbida, tem de estar bem afiado em sua fé. Fé na psicanálise, em sua capacidade empática de estar diante de um ser humano que nos chega sem esperança e de podermos tentar resgatar a criança desamparada e perdida no meio desse labirinto adiposo. Lembrando que o obeso tem um corpo que dele necessita e não é apenas um corpo. É um corpo demasiado cheio junto ao qual o sujeito vive um vazio infinito.

A prática clínica nos confronta cotidianamente com limites, com entraves de alguns pacientes marcados por dificuldades na associação livre, falas esvaziadas de sentido, emudecimentos, vazios, angústias indizíveis, momentos melancólicos, atuações ou sintomas orgânicos. Lidamos com um sujeito que traz, via seu excesso de corpo, a dor do desamparo que não pode ser superada e sim foi reforçada ao longo de sua vida. O psicanalista precisa incluir o corpo, como elemento simbólico, no setting analítico, apesar do convite a olhar para o excesso, para o que não tem forma nem contorno e necessita construir sua história. Termino com os versos do poema "Desilusão", de Patativa do Assaré, que ilustra a dor que vive o obeso mórbido:

Eu sinto o coração aqui no peito,
De ilusão e de sonho já desfeito,
A bater e a pulsar com embaraço.

Se é de dia, vou indo passo a passo
Se é de noite, me estendo sobre o leito,
Para o mal incurável não há jeito,
É sem cura que eu vejo o meu fracasso.

Minha estrela brilhante no horizonte
Me negou o seu raio de esperança,

Tudo triste em meu ser se manifesta,
Nesta vida cansada só me resta
As saudades do tempo de criança.

(Assaré citado por Silva, 2001)

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
MARIA GORETTI MACHADO
Rua Juiz de Fora, 284/506
30180060 – Belo Horizonte – MG
tel.: 31 98874-1038
mgmachad@yahoo.com.br

Recebido 29.07.2016
Aceito 10.09.2016

 

 

1 Artigo proveniente da dissertação de mestrado em psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - A obesidade para o obeso: uma leitura psicanalítica (2011). Trabalho apresentado na Jornada Interna de Candidatos na SBPMG/2015.

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