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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.63 São Paulo jan./jun 2017

 

EM PAUTA | PENSAMENTO CLÍNICO E CULTURA DO ESPETÁCULO

 

Humano in vivo

 

Human in vivo

 

 

Marizilda C. LourençoI; Yusaku SoussumiII

IJornalista e editora especializada em ciências da vida e ciências humanas, membro do Centro de Educação Transdisciplinar (Cetrans)
IIMédico, psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, membro honorário da Sociedade Psicanalítica de Mato Grosso do Sul, membro do Núcleo Psicanalítico de Aracaju e membro fundador da Sociedade Internacional de Neuropsicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo aborda a questão do íntimo e da cultura do espetáculo no contexto da sociedade contemporânea pela análise do que significa ser (verbo) humano no século XXI, em função das mudanças ocorridas nos modos de ser e estar no mundo a partir da segunda metade do século XX.

Palavras-chave: Vida. Instintos. Sensibilidade/afetos. Sobrevivência. Relação ser/ meio.


SUMMARY

The article addresses the question of the intimate and the culture of spectacle in contemporary society by the analysis of what it means to be human in the XXI century, due to changes in the ways of being and being in the world from the second half of the twentieth century.

Keywords: Life. Instincts. Sensibility/affections. Survival. Relationship living being/environment.


 

 

Sou um homem: nada do que é humano me é estranho.

Terêncio (185 a.C.-159 a.C.)

Para entendermos como se expressa a questão do íntimo no contexto da sociedade do espetáculo ou, em outras palavras, do que a expressão do íntimo e a própria cultura do espetáculo são sintomas na sociedade contemporânea, e como repercutem na clínica, é preciso, em primeiro lugar, atentarmos para as evidências que nos indicam de que humano estamos falando, matéria-prima fundamental da psicanálise, e que mudanças e transformações o humano vem enfrentando no seu modo de ser e estar no mundo desde a segunda metade do século XX, fruto da sua relação com o meio.

Quando se trata de pensar o humano, é preciso lembrar que o homem é, ao mesmo tempo, produtor e produto de si mesmo, autor e ator de si mesmo, dessa forma estamos visceralmente imbricados na relação com o meio que nos deu origem e nos sustenta e com os produtos que dessa relação nasceram, com o objetivo primeiro de assegurar cada vez mais e melhor nossa sobrevivência como indivíduos e como espécie.

Por isso, ao tratar do humano, temos de nos orientar por determinadas chaves que nos ajudam a pensar a complexidade em que ele se transformou - vida, instintos, sensibilidade/afetos, sobrevivência, relação ser/meio, experiência (percepção e ação), conhecimento (significado), regulação, adaptação/transformação, evolução - e que nos remetem a pelo menos duas dimensões por que transita o humano no seu percurso de autorreproduzir-se como ser vivo: a dimensão do inconsciente (instintos, afetos, inteligência corporal para a homeostase e a sobrevivência) e a dimensão da consciência/psiquismo (regulação, adaptação, evolução).

É obrigatório observar que essas duas dimensões, situadas em diferentes níveis de realidade, cada uma com sua lógica própria, interpenetram-se o tempo todo para resultar na complexidade do humano. Para ser apreendido na riqueza de sua expressão - contraditória, multidimensional, multirreferencial, inquietante, surpreendente, imprevisível -, esse humano necessita, além da referência às diferentes áreas do saber, representadas pelas diferentes disciplinas estabelecidas, do concurso da literatura, da poesia, das artes, da música, da dança, das antigas tradições sapienciais, entre outras manifestações humanas, de modo a não ser reduzido nem desconsiderado na sua complexidade.

Ao se considerar o humano nessa perspectiva transdisciplinar, importa ter presentes os momentos estelares de sua constituição e as características que o definem em sua essência porque poderão nos dar a dimensão das alterações e mudanças pelas quais esse humano vem passando no seu processo evolutivo e onde se situa o ponto nodal, o turning point, a partir do qual esse humano foi adquirindo a configuração que apresenta hoje.

Em outras palavras, compreender como se dá a constituição do humano possibilitará entender melhor o que significa ser (verbo) humano no século XXI e de que qualidade de humano estamos tratando hoje, situando-nos numa perspectiva evolutiva em relação ao passado que nos permita responder com clareza "onde estamos hoje", e também em relação ao futuro, servindo-nos de orientação para futuras escolhas que definirão para onde vamos e como queremos ir.

Distinguimos três momentos decisivos na constituição do humano:

1. quando surgem, nos seres vivos, os sistemas neuronais com a lógica do acoplamento sensório-motor com o ambiente, o ciclo de percepções e ações, guiado pelo instinto de sobrevivência;

2. quando o sistema biológico cria enorme capacidade plástica e conectiva que se inscreve na própria fisiologia do sistema neuronal, presente sobretudo no grupo dos mamíferos, e permite a modificação estrutural desse sistema ao longo da história;

3. quando surge a linguagem, porque, além do acoplamento com o ambiente, é possível o acoplamento entre os indivíduos da espécie para a coordenação de uma ação, instalando-se a partir daí, para os humanos, pela comunicação, uma capacidade de expansão sem precedentes na história de qualquer espécie terrestre.

A partir daí, além de um meio natural, cria-se a cultura (fruto do acoplamento entre os indivíduos da espécie para a coordenação de uma ação) pela linguagem e pela comunicação, um meio humano e social no qual o bebê irá completar o desenvolvimento de suas estruturas, as cerebrais principalmente, sob a mediação da mãe ou do cuidador, para se tornar um legítimo representante da espécie.

Por isso dizemos que somos seres de relação: de relação com o meio, de relação com nossos pares e de relação com nosso próprio eu. Quem se relaciona, comunica-se de alguma forma, e para tanto usa de algum tipo de linguagem, o que nos define como se-res de linguagem, de comunicação, de relação, de conhecimento.

O ser humano é a única espécie que impacta o ambiente e é diretamente impactada por tudo aquilo que faz e produz na relação com o meio, num processo circular permanente de retroalimentação, que expande as capacidades de seu organismo e altera sua configuração, alterando inclusive sua percepção do entorno, dos outros e de si mesmo, e a própria subjetividade.

São esses aspectos que definem a constituição do humano primordialmente e que ainda hoje nos constituem, embora talvez tenhamos deslocado o foco de atenção da interlocução entre o eu e o tu, inaugurado na díade exemplar mãe/bebê, para a interlocução do eu consigo próprio. É o que vamos investigar.

E, para os nossos propósitos, vamos investigar partindo das mudanças profundas do contexto em que se insere o ser humano, principalmente a partir da Segunda Guerra Mundial, que nos deixou um legado de devastação e vivências terroríficas indeléveis, no plano individual, familiar e coletivo, sem precedente. Depois da guerra, o mundo era outro, dilacerado pelo conflito; o ser humano era outro, e o humano nele também. Nunca se tivera tão claramente delineada a vitória, ainda que transitória, de Tânatos sobre Eros, em resposta à indagação de Freud ao final de O mal-estar na civilização, vitória que ele não pôde testemunhar e na qual se recusava a acreditar, apesar de todas as evidências que se desenhavam no cenário europeu à sua frente.

A psicanálise sofreu na pele as vicissitudes e os horrores da guerra diante da escalada do nazismo e teve, ela mesma, de colaborar para sobreviver, reunindo os poucos fragmentos remanescentes do freudismo original para reconstruir-se em novas bases no exílio em mundo anglófono, sob a batuta de Ernest Jones.

Passada a vivência terrorífica, individual e coletiva, do horror da guerra, principalmente na Europa, e a vivência de mais privações, inerentes ao custoso processo de reconstrução de uma terra devastada patrocinado pelos Estados Unidos, importantes acontecimentos históricos, políticos e sociais, em consequência da própria guerra e do processo de reconstrução, vivenciados já em escala global, alguns de forma traumática, embasaram os novos modos de ser e estar no mundo, muitos deles capitaneados pelos jovens, principalmente a partir da segunda metade do século XX, que promoveram uma revolução nos costumes e mudaram definitivamente a face do mundo.

(Também não podemos nos esquecer de que foi a partir desse momento que inauguramos o Antropoceno, a Era do Homem, quando nos transformamos, pelo desenvolvimento da ciência, da técnica e da tecnologia, em agentes de transformação geológica do planeta e nos configuramos, a partir dos novos modos de ser e estar no mundo, como nossa maior ameaça.)

Uma onda de repúdio, por parte dos jovens, ao modelo vigente de sociedade organizada centrado nas noções de autoridade, hierarquia, repressão, verdades absolutas, inclusive na ética e na moral, varreu não só o continente europeu, mas a própria América, e James Dean encarnava esse espírito à perfeição no cinema e na vida real: a rebeldia, a angústia e a desesperança diante da vida de toda uma geração de jovens do pós-guerra que se negava a compactuar com o establishment falido.

"Abaixo a repressão", "É proibido proibir", o rádio, o cinema, a TV, novos modelos de organização social, a vida em comunidade e o novo modelo de família, a pílula anticoncepcional, a Guerra do Vietnã, "faça amor, não faça guerra", a geração beat, os hippies, maio de 68, Woodstock, os estados alterados de consciência, o ácido lisérgico, e toda a sucessão de transformações por que passou a vida em sociedade em termos de comportamento e de comunicação nos anos 1950 e 1960, com a liberalização dos costumes, prepararam os alicerces para a emergência de uma nova configuração do papel do homem e da mulher na sociedade e um novo modelo de família, à qual continuou a caber, como até hoje, o papel primordial de cuidar do bebê para que se transforme num legítimo representante da espécie humana.

Senão, vejamos.

Acostumamo-nos a entender a gestação do bebê humano em dois tempos: o primeiro, de nove meses, corresponde à gestação do bebê no útero materno, enquanto o segundo tempo ocorre com o bebê imerso no meio humano e social, em contato com outros seres, principalmente com a mãe ou cuidador, de cujos cuidados dependerá fundamentalmente para sobreviver. Pela atenção e pelos cuidados que a mãe dispensa diuturnamente a seu bebê, ela mediatiza sua inserção no meio humano e social, ensaiando os primeiros passos para sua humanização e socialização.

O bebê humano é o mais imaturo de todos os bebês e o que demanda por mais tempo cuidados permanentes até poder alcançar autonomia. Assim, esse segundo tempo de gestação é decisivo para que ele possa desenvolver-se organicamente, inclusive desenvolver suas estruturas cerebrais, já que é nesses momentos precoces, a partir das experiências que vai vivenciando na sua relação com a mãe ou o cuidador, que se darão a formação morfológica do cérebro e o registro das funções psíquicas. É em função da qualidade dessa relação que se darão as experiências de concepção, misconcepção e não concepção, com repercussão profunda sobre a vida futura do indivíduo e sua constituição psíquica.

Já na década de 1940, na imprensa, Clarice Lispector, sob o pseudônimo de Helen Palmer, advertia-nos com sabedoria do significado cultural da maternidade:

Ser mãe é coisa que mudou bastante através dos tempos. [...] Uma verdadeira mulher e mãe sabe que seus deveres vão além de alimentar, enfeitar e agasalhar seu filho. Antes de tudo, deve dar-lhe amor. Amor que é devoção, cuidado, orientação e, sobretudo, participação em seus problemas e suas dificuldades. [...] Não seja o monstro responsável pelas futuras falhas de seu filho, deixando-o levianamente crescer longe de seus olhos e de seus carinhos. (Lispector, 2006, p. 33)

Mesmo antes das investigações a respeito do psiquismo peri e pré-natal e da descoberta pela neurociência da memória procedural ou implícita, Clarice, com sua lucidez e sensibilidade de artista, "a antena da raça", já insistia na importância decisiva dessa fase no desenvolvimento futuro do ser humano.

Se, quando a criança nasce, a mãe, para poder preservar seu tempo livre e poder cuidar de si própria, entrega o bebê aos cuidados de uma terceira pessoa, é evidente que esse bebê poderá até desenvolver uma relação vincular com ela, mas certamente a qualidade desse vínculo não será a mesma que a daquele bebê que foi cuidado amorosamente pela mãe biológica.

Da mesma forma, entregar o bebê aos cuidados de uma terceira pessoa significa que essa pessoa será responsável pelos primeiros passos do processo de humanização e socialização daquele indivíduo, ficando sob sua responsabilidade, sem que ela o saiba, determinar a qualidade das vivências precoces do bebê, decisivas para sua vida futura - será a partir da Weltanschauung dessa pessoa e não da mãe que esse bebê adentrará o meio humano. Claro, nada assegura que a mãe desempenhe melhor essa função - os exemplos se acumulam nessa direção, apesar de haver todo um preparo no nível do organismo para que ela a exerça amorosamente e de forma adequada. O ser humano, contudo, para sobreviver, tem uma alta capacidade de adaptação, desde que nesses momentos precoces receba a atenção de que necessita para não sucumbir, visto que é completamente imaturo para prover a própria sobrevivência.

Freud já tinha se dado conta dessa característica do ser humano: nele essa força do instinto se enfraquece; essa relação entre a força libidinal e o objeto que vai cumprir a realização dessa força se enfraquece, de tal forma que essa libido pode ser derivada para outros objetos. É justamente o enfraquecimento dessa libido em relação ao objeto que possibilita a interferência da cultura nessa relação, e que o cuidador seja a pessoa com a qual o bebê se vincule, dependendo do grau e da qualidade do atendimento de suas necessidades precoces. Nesse percurso o ser humano pode se desviar e podem aparecer as patologias vinculares, surgidas em virtude de falhas ou traumas no desenvolvimento dessa relação.

Essa conexão exemplar entre mãe e filho resultará num modelo fortemente incorporado pelo bebê como paradigma de relação com o outro para o futuro. Aos poucos entra o pai, mais tarde entra a família, formando-se o grupo a partir do qual a criança aprende como funciona a vida no âmbito social. Embora o psiquismo ainda não tenha se desenvolvido, nesse momento precoce todas as vivências, as traumáticas inclusive, ficam marcadas no corpo com profunda repercussão na vida futura do indivíduo. Daí a importância dessa segunda fase da gravidez humana com a presença da oxitocina e de todos os demais hormônios que salvaguardam essa relação.

O que dizer, então, do nosso modelo atual de cuidados familiares, que vem passando por profunda transformação? Aliás, aí está um tema que merece reflexão cuidadosa: se o nosso modelo de configuração familiar vem passando por transformações importantes desde as últimas décadas do século XX, o que esperar daqui para frente, com a expansão acelerada das biotecnologias, as diversas formas de participação biológica dos genitores, as "barrigas de aluguel", encomendadas mundo afora, as novas parcerias conjugais e familiares, as novas identidades sexuais, exigindo uma redefinição dos conceitos de paternidade, maternidade, parentesco e filiação? O impacto das novas tecnologias sobre a experiência da paternidade e da maternidade e os diferentes desenhos de modelo familiar sugerem que estamos apenas no começo de mudanças essenciais, que tornarão o tema ainda mais complexo.

Da nossa experiência, observamos que a figura do pai talvez tenha sido a mais afetada nesse universo de mudanças comportamentais, à medida que a mulher se lançava decididamente no mercado de trabalho e assumia sozinha papéis e responsabilidades que antes compartilhava com a figura masculina. O homem parece ter se encolhido diante dessa investida feminina, não reconhecendo em si próprio a legitimidade de que antes se achava investido para fazer valer sua figura de autoridade no universo familiar. Houve um esvaziamento das funções da paternidade, em torno da qual se criou um vácuo afetivo e um vácuo de paradigma, deixando como herança para as gerações mais jovens um modelo vazio de sentido em termos do que é ser homem e do que é ser pai nessa sociedade e como esses papéis se concretizam em termos do fazer no cotidiano da vida da família. As gerações mais jovens não vivenciaram a presença do pai no cotidiano de suas vidas e, porque não tiveram essa experiência, têm muita dificuldade em construir um modelo de homem e de pai para o qual não dispõem de referências.

Neste momento, pai e mãe estão ocupados com suas atividades profissionais e interessados em se manter jovens e saudáveis pelo maior tempo possível, o que de si é salutar, não ocupassem as atividades relativas a esses cuidados o espaço e o tempo antes dedicados à família e aos filhos. Incapazes de praticar a renúncia, que era o cimento da vida familiar do tempo de nossos pais e avós, obedecem às demandas do próprio desejo e do princípio do prazer quando se trata de programar a agenda para atividades não profissionais.

Aos poucos a criança aprende que a família não é o núcleo central em torno do qual se organiza a vida das pessoas - de pai, mãe e filhos -, e que existem prioridades no mundo externo que afastam pai e mãe do convívio familiar. Aprende que pai e mãe têm uma dinâmica de vida que não comporta a presença afetiva diária na família, o que gera perdas de parte a parte: os pais acabam não conhecendo os filhos, não acompanham seu desenvolvimento nem conhecem suas peculiaridades como seres humanos; do lado dos filhos, a mesma coisa: o contato com os pais deixou de ser formador e educativo, é um contato superficial e esporádico, fragmentado, porque os compromissos dos adultos impedem o exercício cotidiano da convivência familiar, espaço privilegiado, permanente, de humanização e socialização em que se praticava o cultivo de valores culturais e éticos a partir dos quais se organiza a vida social na perspectiva da continuidade do grupo.

Dessa forma, o afeto dos pais e sua presença permanente como referência segura para a criança não servem mais para ancorá-la nesse espaço vivenciado afetivamente como seu lugar seguro no mundo, para enraizá-la nesse locus biopsicossocioespiritual genuíno onde ela se vê situada e de onde ela vai falar para o mundo. As crianças aprendem um modelo de afeto que coloca as necessidades e os desejos de cada um em primeiro lugar em relação aos demais; não existe o outro como prioridade de preocupação e cuidados nesse universo afetivo, mas o eu como centro de interesse e atenção plena, de modo que as crianças acabam desenvolvendo um modo de ser e estar no mundo em que o outro, seja quem for, não conta absolutamente, e que essa é o retrato da forma pela qual foram criados por seus pais: na perspectiva do egoísmo, do egocentrismo, da absoluta desconsideração pelo outro e pelo entorno, e da conquista de posições materiais como forma de assegurar a realização do próprio desejo em primeiro lugar.

Em consequência incorpora-se o modelo de um vínculo frágil, tênue, sem compromisso, que se projeta para todos os relacionamentos, em que o sujeito não investe se não lhe for vantajoso por algum motivo, resultado de uma cultura centrada no sujeito que usa o outro numa perspectiva absolutamente utilitarista, enquanto durar o seu desejo. Satisfeito este, ou seja, consumado o desejo e consumido o objeto dele, mudamos o foco de interesse porque estamos no mundo das conexões facilmente interrompíveis, diferentemente dos relacionamentos, que deixam um rastro de sofrimento e angústia e dão muito trabalho para serem desfeitos. A lógica que move o sujeito é sempre a mesma, esteja ele no espaço do mercado de produtos ou de relacionamentos: busca-se o produto ou o objeto pronto para desfrute imediato, pagando-se o preço que for preciso para ter satisfação garantida. Quem se lembra do slogan da Sears Roebuck, uma gigante do varejo na década de 1960? "Satisfação garantida ou seu dinheiro de volta."

Entendemos que é nesse espírito que se configura a cultura do espetáculo, como mais um sintoma desse modo de ser e estar no mundo e desse espírito narcísico que sequestrou o humano, orientado pelo desejo e pela busca incansável do princípio do prazer a qualquer custo. O narcisismo deixou de ser visto como patologia para se transformar em modo de ser socialmente assimilado, em que prevalecem o parecer e o ter sobre o ser, mesmo porque não existe interesse, tempo nem disponibilidade para conhecer o ser do outro. Nesse universo, o sujeito se apresenta e se relaciona por meio das mercadorias que consome, que lhe conferem status e reconhecimento social, permitindo-lhe ser identificado como um igual pelos demais membros do grupo ao qual ele sonha pertencer - esse é seu projeto de vida mais imediato. O que conta não é o sujeito, mas os bens que ele pode consumir. Como a lógica que alimenta esse sistema é a do consumo e descarte, há constante reciclagem das mercadorias que representam o sonho de consumo do momento, em torno das quais gravitam inclusive os excluídos, que fazem de tudo para penetrar nesse universo, sempre atentos e vulneráveis às mensagens da mídia e do marketing em relação ao que devem gostar, ao que devem usar, ao que devem consumir, os lugares a frequentar etc.

Muitos já nem se lembram dos rolezinhos, movimentos que os jovens da periferia ensaiaram em shoppings da cidade de São Paulo em 2014 mobilizados pelo espírito dessa cultura, que tanta polêmica causaram porque dispostos a "agressivar" diante do menor obstáculo à realização do desejo, obrigando os shoppings a um reforço no esquema de segurança e, em casos extremos, a proibir sumariamente a entrada daquela moçada. Estilos musicais também nasceram na esteira desse espírito, como o funk ostentação, e se existe um dentre todos os objetos que essa cultura almeja possuir, esse é sem dúvida o cartão de crédito, símbolo máximo do consumo ilimitado, em si um espetáculo à parte.

É também muito por conta desse espírito narcísico, que recrudesceu enormemente em virtude da explosão da era digital, com o celular, a internet e as novas mídias, que as pessoas fazem questão de tornar públicas suas vivências pessoais, por meio de fotos e textos, mais fotos do que textos, porque estamos imersos numa cultura da imagem - "uma imagem fala mais que mil palavras", aprendemos a lição perfeitamente com a garotinha vietnamita coberta de napalm. O sujeito parte do pressuposto de que suas vivências são de interesse geral, interessam no mínimo a todos os seus amigos das redes sociais, que são muitos, destituído da mais ínfima parcela de espírito crítico, quase sempre confundindo o que é da esfera privada da vida do sujeito e não cabe divulgar, uma vez que ele é o único e exclusivo interessado, com o que é da esfera pública e cabe postar, em vista de algum interesse mais relevante que possa conter.

Essa fronteira crescentemente indiscriminada entre o público e o privado se explica pelo fato de o convívio familiar ter se transformado em prática esporádica, visto que era no interior da vida familiar, cotidianamente, que se aprendia o que era privacidade e a diferença entre o que ficava nos estritos limites do espaço doméstico e não interessava a mais ninguém, e o que podia ser ventilado para fora do lar.

Além disso, nesse mundo de conexões sôfregas, ilimitadas, impulsivas, todo mundo quer ver e principalmente ser visto, narcisicamente em busca de seus 15 minutos de fama, como preconizou Andy Warhol, de modo que nada melhor do que deixar registrados nas redes sociais todos os seus passos ao longo do dia, o que também significa dizer privacidade zero. Alimentado por informações postadas diariamente, nenhum cadastro pode conter perfil mais fiel e completo, abrangente e ao mesmo tempo detalhado de seus usuários do que o das redes sociais. Um rápido levantamento na página de um usuário permite saber quem é ele, o que faz, do que gosta, os lugares que frequenta, suas posições políticas, orientação sexual, preferências estéticas e gastronômicas, preconceitos, deslocamentos geográficos frequentes etc.

Mas as pessoas em geral não se dão conta do que essa exposição permanente pode representar em termos de preservação da sua liberdade, redução da privacidade e controle sobre suas vidas. Tudo isso sem contar informação diretamente relacionada à correspondência pessoal, às movimentações bancárias e financeiras, à documentação de ordem médica etc., que circula livremente pela internet e permitirá compor, em visão panorâmica, de que sujeito se trata.

Mas nem tudo ainda foi dito sobre o que significa ser (verbo) humano no século XXI. Estamos diante de um sujeito medroso, que busca assegurar-se do controle total das condições externas do meio para evitar qualquer instabilidade, qualquer desequilíbrio, qualquer ameaça, por menor que seja, e alimenta modismos baseados em certezas absolutas até que estudos mais recentes provem o contrário, de tal maneira que cada vez ganham mais espaço e mais adeptos o politicamente correto (a nova forma de que se revestem as patrulhas ideológicas autoritárias), a forma correta de viver, de se alimentar, de se exercitar, de cuidar do corpo e da saúde, da beleza, da alma, se existisse lugar para ela nesse mundo, com o objetivo de conservar a juventude e eliminar de forma cada vez mais cabal as marcas do tempo sobre nossos corpos, como se não fôssemos feitos de memórias e de memórias de experiências que deram certo para a sobrevivência. Muito embora a essas sempre se juntem as memórias do trauma.

Essa é a grande questão: o aprisionamento à sobrevivência, que impede de ousar, inovar, fazer diferente, experimentar no sentido de tentar um outro jeito de fazer, e, com isso, em lugar de se expandir, de crescer, desenvolver-se e acumular sabedoria no sentido de saber como fazer de diferentes formas, o ser humano se apequena e se mantém nos limites estreitos do já conhecido. Por isso se sente mal: as respostas que dá aos desafios do meio são inadequadas, impróprias, insatisfatórias, de modo que os afetos, os sensores do seu corpo, continuam a sinalizar a presença de ameaça à manutenção da vida porque é como se ele não tivesse respondido a eles e por isso não se adaptou às novas condições do meio.

Em 95% dos casos dos pacientes que se sentam à nossa frente no consultório, a questão é justamente essa: não percebem que, por algum motivo que é preciso investigar, não estão fazendo a configuração adequada do meio e respondendo de forma adequada às suas demandas; por isso não conseguem fazer a regulação corporal e muito menos se adaptar. Afetados permanentemente, carregam sinais e sintomas da desequilibração interna, que se traduz em desadaptação constante ao entorno.

Esse sujeito, além de medroso, presa de afetos que não se expressam conscientemente, é cheio de amigos nas redes sociais, mas vítima de solidão e solitude, anônimo na massa. É um sujeito que envelhece e se desespera, lutando para cristalizar em si a pouca juventude que lhe escapa, porque vê um futuro de obsolescência e da mais profunda solidão à sua frente, a que estão socialmente condenados os mais velhos e os economicamente improdutivos no narcísico mundo da imagem feito para os jovens. Esse sujeito que envelhece sabe intuitivamente que seu corpo é diferente do dos jovens, que seu cérebro e seus afetos respondem diferentemente ao meio, visto que o meio em que cresceu e se tornou humano era de outra natureza. Escapam desse destino os que mantêm Eros presente e atuante em suas vidas, alimentando o impulso de aprendência, o prazer de conhecer, "patrimônio do vivente", prazeres genuínos que são vivenciados com o corpo todo, de corpo presente.

É evidente que o espírito dessa cultura, que tende à paralisia da insegurança diante do medo do desconhecido, terá repercussão no modo pelo qual o indivíduo afeta seus semelhantes e se deixa afetar por eles e pelas experiências que vivencia. Existe uma forma ou fórmula que permite ao indivíduo "não se perder nem se deixar perder" nos afetos, poupando-se de saída de boa dose de angústia, sofrimento, tristeza, dor da perda, sentimento de pesar, típicos das relações afetivas e amorosas. Por trás destas, a persegui-lo, a ideia do amor intenso, pleno, eterno, que um dia lhe foi incutida, promessa de felicidade infinita, ignorante da advertência de Freud: a felicidade só pode ser fruída como fenômeno episódico, fruto de necessidades altamente represadas, em virtude de nossa constituição (orgânica). É como se hoje a construção do vínculo afetivo seguisse uma lógica particular, destinada a evitar todo o pathos e toda a desordem e desorganização internas do sujeito que intrinsecamente o vínculo acarreta e dos quais ele foge como o diabo da cruz.

A relação intersubjetiva, constitutiva do humano por excelência, cede lugar à relação intrassubjetiva, que o sujeito privilegia por acreditar que pode controlar o que se passa consigo próprio; por isso a tentativa desesperada de controlar os afetos, que o indivíduo de fato não controla, mas acha que controla, e que se traduz em sinais e sintomas de desadaptação ao entorno. Estamos caminhando para um humano de outra qualidade, que luta por se deixar afetar cada vez menos por aquilo sobre o que tem menos controle - o outro e o entorno. Por isso também os vínculos são frouxos. Essa é sua forma de lidar com a impermanência. O sentido que se constrói para a experiência é unidimensional, à medida que cada vez mais eu abro mão da relação interpsíquica para privilegiar a relação intrapsíquica, que se traduz para o mundo num narcisismo exacerbado e redunda em empobrecimento e estreitamento do meu referencial de sentido para as experiências no meio.

Não é por acaso que o homem de hoje tem fixação por robôs, buscando humanizá-los cada vez mais, visto que gradativamente o humano se adultera, degrada-se, perdendo o que tem de mais propriamente humano e precioso a seus próprios olhos. Ele projeta no robô as qualidades que valorizava em si e que gostaria de alimentar, mas sente que no atual estado das artes está impedido de conservar, produtor e produto de uma cultura que o enreda num labirinto cuja saída teima em lhe escapar. Talvez a questão crucial não esteja exatamente em encontrar a saída, mas no percurso que é preciso escolher para o resgate desse humano num outro patamar, entendendo que é preciso, sim, escolher hoje a direção a seguir para que esse resgate possa acontecer amanhã. Sabendo onde estamos hoje, podemos escolher o destino e como alcançá-lo amanhã.

Talvez pudéssemos repetir a indagação de Freud ao final de O mal-estar na civilização: que lugar pode existir para Eros num mundo dominado por esse espírito e por esse modo de ser e estar no mundo?

É curioso constatar que, para além do amor líquido que sucumbe rapidamente por falta de nutrientes, Eros está presente no século XXI de uma forma ameaçadora à própria vida: a prática erótica levada a extremos ilimitados - o desfrute total, múltiplo e irrestrito dos prazeres sensuais e sensoriais, que desafiam os limites da vida, sob o pressuposto de que se vive hoje a possibilidade do exercício mais cabal da liberdade, sob a total ausência de compromisso, responsabilidade e preocupação com as consequências, aí incluídos sexo, drogas, bebidas, todo tipo de adicção e de perversão. A própria valorização da bissexualidade entre os mais jovens tem esse sentido de exploração de todas as possibilidades de prazer, para além de todas as ações de marketing fortemente implementadas no mundo da música e dos shows, representado pelas bandas e artistas preferidos dessa moçada que, na esfera do público, procuram mostrar que compartilham e incentivam esse entendimento. Nada mais falacioso e equivocado do que esse exercício extremado e permanente de consumo do prazer "total" sob o auspício de uma liberdade irrestrita. Nada mais contingente do que a liberdade humana, nada mais contingente do que a condição humana.

Estamos aqui diante de mais uma forma de aprisionamento do ser humano, que não consegue escapar das malhas da adicção e da compulsão, como se estivesse vivendo uma roleta russa e precisasse dela para manter-se vivo, para manter seus hormônios e neurotransmissores em bons níveis de funcionamento, para que o colorido da vida ainda tenha algum apelo.

É como se Eros tivesse sido cooptado por Tânatos: a exacerbação dos sentidos, em particular dos prazeres do sexo, a serviço de Tânatos. A cultura do narcisismo que nossa sociedade vivencia, assim como essa busca do limite extremo do êxtase sensual e sensorial, tem estreita relação com o resgate do estado nirvânico intrauterino, o estado de plenitude total dominado pelo princípio do prazer permanente e inesgotável. O instinto de vida é levado a tal extremo que se transforma no seu oposto - Eros tanático, ou Eros a serviço de Tânatos -, da mesma forma que no pensamento oriental a vivência de um estado de ying extremo leva naturalmente a seu oposto, a um estado dominado pela energia yang. São duas formas de apreender a tensão entre opostos que equilibra os sistemas complexos, como a vida e o cosmo, dominados todos, na sua intimidade mais profunda, pela impermanência. Talvez em nenhum outro momento da história esse papel de complexio oppositorum estivesse tão evidente quanto agora.

Será que neste mundo às avessas, em que os afetos, em lugar de unir, ligar, avassalar o sujeito na relação, apartam, isolam, previnem, a sugerir uma nova configuração do humano, que se constituiu justamente na relação, na interlocução, a partir da relação dialógica exemplar mãe/filho, Eros adquire um contorno ainda mais particular, mais líquido ainda, mais fluido e insubstancial? Estaremos caminhando para um humano de outra qualidade, condição e natureza? Nosso interesse e fixação por robôs são um sintoma dessa mudança e um alerta para o presente? A clínica pode ser o locus privilegiado dessa investigação para novas e, quem sabe, esclarecedoras descobertas.

Talvez o aprendizado mais caro que possamos extrair destas reflexões seja a confirmação de que o humano é uma obra aberta, em constante vir a ser, um sistema adaptativo complexo aberto, que se constrói no presente na emergência do futuro, um sistema em relação, permanentemente produtor e produto de si mesmo, que emerge na tensão do chiaroscuro dos artistas da Renascença, sem prescindir dos efeitos dramáticos, cujo potencial humanizador os gregos antigos nos puderam ensinar com maestria. Em uma palavra, humano in vivo.

 

REFERÊNCIAS

Bauman, Z. (2004). Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

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Recebido 30.04.2017
Aceito 29.05.2017

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