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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.63 São Paulo jan./jun 2017

 

CONTRAPONTO: PRIVAÇÃO, DELINQUÊNCIA, DESIGUALDADE

 

Direitos humanos e desigualdade social

 

Human rights and social inequality

 

 

Maria Helena Souza Patto

Professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em sociedades atuais marcadas por profundas desigualdades econômicas e sociais, como a brasileira, é preciso levá-las em conta se quisermos en-tender o aumento inquestionável, nas últimas décadas, da chamada "delinquência juvenil" nas camadas mais pauperizadas da população, expressão polissêmica e geralmente definida em termos negativos em sua versão oficial. O psicanalista Winnicott se valeu da expressão "privação e delinquência" para definir sintomas presentes em crianças e jovens que, durante a Segunda Guerra Mundial, foram separadas de seus pais para protegê-las dos bombardeios nas cidades inglesas maiores. Hoje, no entanto, é preciso refletir sobre a natureza da privação vivida por grande parte dos jovens brasileiros que, cada vez mais privada de seus direitos individuais, sociais e políticos, e impedida de possuir os bens materiais valorizados em uma sociedade individualista, competitiva e consumista, quer possuí-los a qualquer preço.

Palavras-chave: Desigualdade social. Consumismo. Privação. Criminalização.


SUMMARY

In today's societies marked by deep economic and social inequality, such as Brazil's, this characteristic must be taken into account if we are to understand the undeniable increase in "juvenile delinquency" that took place amongst the most impoverished strata of the population in recent decades. "Juvenile delinquency" is a polysemous expression, which, in its original version, is defined in negative terms, criminalizing its subjects and ignoring their condition of exploited people. D. W. Winnicott made use of the expression "deprivation and delinquency" to define symptoms presented by children and youngsters who were taken away from their parents during World War II so that they could be protected from the bombings in England's largest cities. Today, however, one must reflect upon the nature of the deprivation experienced by a large part of the Brazilian youth. Increasingly deprived of their individual, social and political rights, and prevented from having access to material goods that are highly valued in an individualistic, competitive and consumeristic society, these youngsters strive to conquer them at all costs.

Keywords: Social inequality. Consumerism. Deprivation. Criminalization.


 

 

[temos] o dever de lutar para a transformação das bases de uma sociedade iníqua, na qual vivemos ao ritmo de uma das desigualdades econômicas mais revoltantes do mundo.

(Antonio Candido de Mello e Souza, 1995)

O Brasil é rústico de alto a baixo: os de cima só reconhecem nominalmente o direito à igualdade das oportunidades educacionais. Temem a educação do povo e suas consequências.

(Florestan Fernandes, 1992)

 

1. Privação e delinquência: a contribuição de Winnicott

Durante a Segunda Guerra Mundial a atenção de Winnicott voltou-se para a relação entre privação e delinquência. Em tempos de guerra, uma modalidade de privação generalizou-se na Inglaterra por decisão de autoridades governamentais: a evacuação de cidades mais sujeitas a bombardeios.

Winnicott participou ativamente desse plano e dessa medida como consultor e coordenador de atividades de proteção às crianças que, por conta da desocupação, foram separadas de suas famílias e entregues temporariamente a famílias substitutas enquanto durasse aquele conflito mundial. Crianças que, desde antes da guerra, já apresentavam perturbações, que se manifestavam em forma de atos antissociais, foram instaladas em cinco "lares", instituições governamentais nas quais trabalharam equipes especializadas supervisionadas por Winnicott.

Embora em circunstâncias incomuns, essa experiência o levou a aprofundar seus estudos a respeito das consequências da ausência da mãe durante o processo de desenvolvimento nos primeiros anos da infância e a escrever artigos que versaram não só sobre os efeitos positivos que os resultados do atendimento a crianças com tendência antissocial tiveram na construção de sua teoria, mas também sobre o trabalho de supervisão por ele desenvolvido com profissionais que atuavam nos "lares", de modo a ajudá-los a dialogar e refletir sobre situações vividas naquelas instituições e a conviver com os internos por meio de relações mais compreensivas e acolhedoras. Segundo Clare Winnicott, os escritos produzidos por seu marido nesse período versam sobre as origens da tendência antissocial e os dispositivos sociais necessários ao tratamento de crianças delinquentes. Mesmo que escritos em tempos de guerra, ou seja, historicamente situados, esses textos se referem à natureza e às origens desses distúrbios psicológicos e às formas de tratamento, que ela define como "um encontro onipresente entre os elementos antissociais na sociedade e as forças da saúde e da sanidade que se organizam para corrigir e recuperar o que se perdeu". Dizendo de outro modo, tratava-se do atendimento de crianças sob estresse, evacuadas devido à ameaça de bombardeios e separadas de suas famílias, o que não impediu Winnicott de se valer daquela situação para aprofundar seus conhecimentos sobre a relação entre privação e atos antissociais.

Uma carta escrita por ele e colegas psiquiatras e enviada aos responsáveis pela evacuação e ao British Medical Journal, em 1939 - antes, portanto, do início do processo de remoção de crianças para cidades menores -, advertia para os males que o deslocamento programado lhes causaria. Como prova, apresentaram dados de uma pesquisa afirmando que "um importante fator externo na causação de delinquência persistente é a separação prolongada de uma criança pequena de sua mãe" e do ambiente familiar por um período de seis meses ou mais, durante os cinco primeiros anos de vida. Em suma, perturbações no meio ambiente da criança seriam um fator etiológico relevante da tendência antissocial. Isto porque, nessa faixa etária, a vivência dessa perda vai muito além da tristeza manifestada por crianças maiores e causa distúrbios graves no desenvolvimento da personalidade. Diante desse quadro, "a evacuação de crianças pequenas sem suas mães pode conduzir a distúrbio psicológico [...] que pode levar a um aumento da delinquência juvenil" (Winnicott, 2016, pp. 9-10) em um futuro próximo.

Daí a persistência de Winnicott no aprofundamento da abordagem teórica dos problemas causados pela evacuação que contribuíram para o seu entendimento da relação da criança com a mãe e comprovaram as consequências danosas da separação. Uma pesquisa sobre a evacuação de uma das cidades inglesas teve como objeto a reflexão de questões voltadas ao bem-estar e à educação. O ponto de partida dessa reflexão é a definição da evacuação como uma "história de tragédias", o que o levou a afirmar que "o único êxito que este plano pode reivindicar é o poder de fracassar". Importante destacar que seu contato com crianças "desapossadas durante a guerra" (Winnicott, 2016, p. 3) foi também fundamental à ampliação e ao aprofundamento de sua teoria do desenvolvimento psíquico. Na década de 1920, a teoria psicanalítica foi referência de suas reflexões sobre a origem de distúrbios comportamentais na infância, que ele atribuiu a conflitos inconscientes. No entanto, naquela década ele já considerava decisivo o fator ambiental, que ele entendia como situações objetivas na vida familiar, como a internação da mãe por problemas de saúde, a separação dos pais, a depressão materna etc. A atenção a esses fatores o levou a valorizar um ambiente infantil seguro e estável como fundamental durante a infância, dimensão essa que resultou também na valorização positiva do comportamento antissocial de crianças, porque tanto as reações à perda de pessoas amadas quanto a perda de segurança devem ser consideradas.

Para Winnicott, "o indivíduo que sofre é o que mais facilmente pode ser ajudado", o que resultou na defesa de um princípio fundamental: "não se pode desprezar os sentimentos envolvidos em separações dolorosas" (Winnicott, 2016, p. 6), tanto no acompanhamento de casos individuais como nos "lares" ou alojamentos, nos quais crianças e jovens com problemas maiores foram acompanhados por especialistas orientados por Winnicott, de modo a serem bem-sucedidos em suas relações com crianças difíceis em períodos de guerra. Nessa direção, um livro de sua autoria - A criança e o mundo externo - reúne palestras feitas por ele entre 1939 e 1948 sobre suas experiências com crianças com estresse em tempos de guerra, republicadas em Privação e delinquência, que valem também, segundo ele, para crianças em tempos de paz. Entre essas experiências, ele analisa criticamente características do ambiente escolar, então orientado por uma pedagogia progressista.

Contudo, precisamos indagar e refletir: estaremos hoje em tempos de paz ou em tempos aparentemente, mas só aparentemente, pacíficos, nos quais outras dimensões ambientais produzem efeitos dolorosos em crianças e jovens pertencentes a segmentos sociais "despossuídos"?

 

2. Pobreza e delinquência: a função política de estereótipos e preconceitos sociais em tempos sombrios

Vivemos hoje, na sociedade brasileira, um período de aumento visível do envolvimento de crianças e adolescentes "pobres" em práticas denominadas "antissociais", expressão que pede reflexão. O discurso oficial, tanto em suas versões pretensamente "científicas" como no imaginário social impregnado de mentiras que parecem verdade, culpa as vítimas - negros, mestiços e pobres - pelas condições de vida a que são submetidos em uma sociedade profundamente desigual econômica e socialmente, estado de coisas que vem sendo interpretado de modo a defender uma pretensa "igualdade de oportunidades" em uma sociedade supostamente democrática e que, para manter essa mentira, precisa esconder as origens econômica, social e política da precariedade da vida de grande parcela da população brasileira que luta, a duras penas, pela sobrevivência.

São muitos os trabalhos nacionais e internacionais que denunciam a pseudocientificidade de estereótipos e preconceitos que justificam a desigualdade social sem remetê-la à estrutura da sociedade contemporânea inaugurada pela Revolução Francesa e à promessa de Liberdade, Igualdade e Fraternidade pela burguesia revolucionária. Na sociedade defendida por uma nova classe em ascensão e fundada em um modo de produção no qual a classe trabalhadora é explorada e oprimida, tornou-se urgente explicar a divisão de classes por meio de concepções que justificassem a desigualdade das condições de vida sem pôr em questão os alicerces da nova sociedade. Entre os recursos justificadores, a atribuição da pobreza a incapacidades inerentes aos negros e à chamada "classe baixa" produziu uma infinidade de rótulos que, com diferentes palavras, os classificam como incapazes intelectualmente, carentes de habilidades que lhes permitiriam vencer, ascender socialmente, salvo raras exceções que confirmam a regra. Deficiências inicialmente entendidas como constitucionais e irreversíveis, e, mais tarde, como produto de uma "cultura da pobreza" resultante de deficiências de inteligência e de linguagem, emocionais e de personalidade, que os impediriam de sucesso escolar e social.

O historiador inglês Eric Hobsbawm, entre tantos outros historiadores, filósofos, sociólogos, antropólogos, linguistas, médicos, psicanalistas, psicólogos sociais e geneticistas, é um crítico implacável das ideias ideológicas a respeito da origem individual, familiar ou racial da desigualdade social. Em A era do capital (1845-1875), uma passagem exemplar denuncia uma concepção de desigualdade social fortalecida por teorias raciais criadas e bem recebidas na segunda metade do século XIX:

O racismo impregna o pensamento desse período numa extensão difícil de avaliar hoje, e nem sempre fácil de compreender. (Por que, por exemplo, o horror generalizado pela miscigenação e a crença quase universal entre os brancos de que os mestiços herdavam exatamente as piores características das raças de seus pais?) Além de sua conveniência como legitimação do domínio do branco sobre os não brancos, dos ricos sobre os pobres, ele talvez possa ser mais bem interpretado como um mecanismo por meio do qual uma sociedade fundamentalmente desigual, mas baseada numa ideologia fundamentalmente igualitária, racionalizava suas desigualdades e tentava justificar e defender os privilégios que a democracia implícita em suas instituições não pode deixar de contestar. O liberalismo não tinha nenhuma defesa lógica contra a igualdade e a democracia; por isso, a barreira ilógica da raça foi levantada: a própria ciência, trunfo do liberalismo, podia provar que os homens não eram iguais. (Hobsbawm, 2009, pp. 370-371)

Não por acaso, a maioria de crianças, adolescentes e jovens assassinados pelas forças policiais no Brasil é negra e mestiça. Não por acaso, o preconceito racial predomina nas classes média e alta brasileiras. Não por acaso, escolas públicas enviam milhares de crianças e adolescentes brasileiros a especialistas que diagnosticam as causas de sua "incapacidade de aprender". Laudos médicos enviados a escolas confirmam incapacidades e medicam os avaliados; avaliações psicológicas confirmam a deficiência mental ou a presença de distúrbios de personalidade que, diante do crescimento vertiginoso de faculdades particulares que pouco ensinam e se limitam a emitir diplomas, porque criadas por empresários interessados na lucratividade, podem resultar em conclusões absurdas como "criança com personalidade primitiva".

Nessas condições, vale perguntar se a rede de escolas públicas e até mesmo algumas escolas privadas de ensino fundamental e médio, frequentadas por crianças e jovens pertencentes a segmentos de classe mais empobrecidos, não fazem parte de um tempo de guerra, de uma guerra antiga e permanente feita de estratégias de controle social em defesa dos interesses da classe dominante. Uma guerra que, em tempos de capitalismo financeiro e de inclusões sociais que não passam de uma nova forma de exclusão, ignora os direitos individuais, sociais e políticos de milhões de indivíduos. Direitos cada vez mais descumpridos à medida que, não sem protestos das classes mais altas, o acesso à educação escolar de crianças e adolescentes das chamadas "classes pobres" foi democratizado. Diante de slogans criados por políticos e repetidos para fins eleitorais - "Todas as crianças na escola", "A pátria educadora" etc. -, antes de tudo é necessário perguntar em alto e bom som: qual a qualidade do ensino de que se valem professores nas escolas públicas brasileiras, eles também na maioria são malformados e mal pagos?

São muitos os estudos e pesquisas que revelam que, no cotidiano dessas instituições, as relações de professores com seus alunos são marcadas por preconceitos e estereótipos extensivos às famílias. A visão negativa dos que habitam bairros pobres, favelas e cortiços está presente não só entre professores e diretores de escolas públicas de ensino fundamental e médio (são raras as exceções), mas também, explícita ou implicitamente, nos próprios princípios da política educacional. Segundo uma orientadora educacional de uma escola municipal situada em um bairro pobre de periferia paulistana, orientada pela crença, frequente nas escolas, na "falta de bagagem" da criança pobre e na desestruturação familiar como causas das dificuldades de aprendizagem, "é muito difícil para a criança da periferia. Põe aí: pe-ri-fe-ri-a, porque a gente já sabe a bagagem que a criança traz de casa. Mas na periferia sempre tem uma classe de nível bom, com família estruturada". Em sua visão da clientela escolar, são comuns estereótipos e preconceitos que se manifestam de várias formas, como na seguinte passagem: "é pai bêbado, irmão internado na Febem e mãe cheia de amantes... como é que eu posso ensinar?".

Estudos em que pesquisadores conviveram longamente com famílias que moram em bairros pobres e periféricos das grandes cidades não podem ser ignorados. Entre eles, Trabalho e sobrevivência: mulheres do campo e da periferia de São Paulo, de autoria da filósofa e psicóloga social Sylvia Leser de Mello, que teve como objetivo conhecer os modos de vida e as formas de organização familiar nesse segmento social para que seja possível superar concepções estereotipadas a respeito da estrutura e das relações familiares, dos cuidados maternos com os filhos e dos objetivos que as mães querem alcançar em benefício de um futuro melhor para os filhos, entre os quais a garantia de uma educação escolar. Trata-se de uma pesquisa que põe em xeque a idealização da família nuclear burguesa, que historicamente se limitou a pais e filhos como estratégia de proteção e de acúmulo de bens materiais e de ascensão econômica e social, e desvela a pluralidade de estruturas familiares em regiões da cidade de São Paulo em que se aglomeram os explorados, estruturas que são verdadeiras táticas que se contrapõem a estratégias construídas pelos que se beneficiam da desigualdade social, definidas por Michel de Certeau nos seguintes termos: "a tática é a arte do fraco. [...] Sem lugar próprio, sem visão globalizante, cega e perspicaz como se fica no corpo a corpo sem distância, comandada pelos acasos do tempo, a tática é determinada pela ausência de poder, assim como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder" (Certeau, 1988, p. 101).

Apesar de, no campo e na periferia das cidades, mães de família lutarem para garantir a escolarização de seus filhos, a realidade da maior parte das escolas públicas brasileiras de ensino fundamental desmente que a educação seja um direito de todos e um dever do Estado, direito e dever garantidos por princípios inscritos na Constituição brasileira:

[...] igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; valorização dos profissionais do ensino, garantindo, na forma da lei, plano de carreira para o magistério público, com piso salarial pro-fissional e ingresso exclusivamente por concurso público [...]; gestão democrática do ensino público, na forma da lei; garantia de padrão de qualidade. (Constituição Federal, 1988, Artigo 206)

Princípios quase todos inexistentes no cotidiano das escolas públicas brasileiras de ensino fundamental porque desrespeitados pelos responsáveis por sua garantia, e tanto mais quanto mais a escolarização dos cidadãos não é mais necessária ao capital. Para "domesticá-los" não é mais preciso um ensino que, em sua forma e conteúdo, submeta-os a uma realidade inquestionada; para dominá-los, hoje, basta a ação policial, que dizima anualmente milhares de jovens brasileiros imersos na pobreza, ou interná-los em instituições ditas reeducativas, mas que, na verdade, são estabelecimentos prisionais nos quais, como regra, impera a violência.

Em um momento histórico em que a exclusão social predomina e assume a forma de "inclusões" que se limitam, segundo o sociólogo José de Souza Martins, a pseudoinclusões instáveis ou perversas; em um período da história contemporânea em que os direitos humanos são cada vez mais negligenciados e surge uma nova desigualdade, o ensino vem sendo pautado por necessidades e desnecessidades impostas pelo horror econômico que domina o planeta, é urgente perguntar: o simples ingresso de todas as crianças na escola é garantia de democratização? Ou seria necessário lutar pela adoção e implantação de novas concepções de escola e de ensino, por meio de transformações radicais em sua forma e conteúdo? Transformações que há muito vêm sendo defendidas por psicanalistas, como Maud Mannoni, e por filósofos que, como Hannah Arendt, influenciam pesquisadores brasileiros, entre os quais o filósofo e pedagogo José Sérgio Carvalho em sua recente defesa de uma pedagogia da dignidade, na qual professores e alunos reduzidos a coisas se transformem em sujeitos ativos no processo educacional, de modo a fazer da escola um lugar de paz, de diálogo, de respeito mútuo e, acima de tudo, de garantia do direito à educação escolar a todas as crianças, para que supere o campo de guerra em que se transformou a vida cotidiana na maioria das escolas públicas de ensino fundamental e médio brasileiras. Panorama descrito em detalhes em uma pesquisa realizada pela Rede de Observatórios de Direitos Humanos e que teve como organizadores responsáveis o Instituto São Paulo contra a Violência, em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo, na qual equipes de pesquisa entrevistaram moradores, colheram informações sobre a situação dos direitos humanos em instituições escolares situadas em cidades e comunidades de vários estados brasileiros e publicaram os resultados em Os jovens e os direitos humanos.

É urgente pensar se, na era das finanças - que, segundo o filósofo Lipovetsky, gerou uma "era do vazio" e, de acordo com o filósofo Dufour, produziu uma nova servidão que resultou em uma "redução de cabeças" -, o individualismo, a competição, a violência e o consumismo atingem, embora de formas diferentes, crianças e jovens ricos e pobres. Beneficiados pela desigualdade social e tendo no dinheiro a principal mercadoria, jovens das classes dominantes e intermediárias são considerados capazes, porque vencedores, ao passo que jovens pobres são vistos como perdedores, porque supostamente incapazes em uma sociedade na qual a garantia da igualdade de oportunidades não passa de uma mentira cínica.

Os primeiros têm garantidos os seus direitos à educação, à saúde, à moradia confortável etc., o que não os impede de comportamentos antissociais e até mesmo delinquenciais, como é o caso de frequentes atropelamentos cometidos por eles quando, em alta velocidade, dirigem carros caros com os quais se exibem publicamente e se sentem superiores, indiferentes à possibilidade de matar transeuntes. Os segundos, bombardeados pelos meios de comunicação de massa, que atribuem a posse de bens de consumo a méritos pessoais, querem, a qualquer preço, possuí-los. Em um programa policial televisivo, um repórter pergunta a um jovem pobre, de 14 anos, que acabara de ser detido pela polícia: "Você já foi preso doze vezes. Por que você não para de roubar?". A resposta dispensa comentários: "Porque eu sei que vou morrer logo, mas, enquanto eu estou vivo, quero ter tudo que os bacana tem".

A valorização de Winnicott das condições ambientais certamente inspirou-se na obra O futuro de uma ilusão, de Freud, na qual ele está atento às desigualdades sociais e à sua produção pelo trabalho e pela opressão, que não incidem igualmente sobre todos os seres humanos:

Quanto às restrições que concernem apenas a determinadas classes da sociedade, encontramos condições duras e que jamais foram ignoradas. É de esperar que essas classes desfavorecidas invejem as prerrogativas das privilegiadas e tudo façam para livrar-se de suas privações extras. Quando isso não for possível, haverá uma duradoura insatisfação no interior dessa cultura, que poderá conduzir a rebeliões perigosas. Porém, se a cultura não foi além do ponto em que a insatisfação de uma parte de seus membros tem como pressuposto a opressão de outra parte, talvez a maioria - e esse é o caso de todas as culturas atuais -, então é compreensível que esses oprimidos desenvolvam forte hostilidade em relação à cultura que viabilizam mediante seu trabalho, mas de cujos bens participam muito pouco. Assim, não se pode esperar uma internalização das proibições culturais nos oprimidos; pelo contrário, eles não se dispõem a reconhecê-las, empenham-se em destruir a própria cultura, e eventualmente em abolir seus pressupostos. A hostilidade à cultura dessas classes é tão evidente que não se deu atenção à hostilidade mais latente das camadas favorecidas da sociedade. Não é preciso dizer que uma cultura que deixa insatisfeito e induz à revolta um número tão grande de participantes não tem perspectivas de se manter duradouramente, nem o merece. (Freud, 2007, pp. 242-243)

Em O mal-estar na cultura, ele volta a mencionar as diferenças sociais e se refere ao sofrimento evitável na sociedade contemporânea:

Se justificadamente objetamos, em nosso estado atual de civilização, que ele não preenche nossos requisitos de um sistema de viver que faça feliz, que admite muito sofrimento que se poderia provavelmente evitar; se, de modo implacavelmente crítico, buscamos expor as raízes da imperfeição, sem dúvida exercemos o nosso mero direito, não nos mostramos inimigos da cultura. É lícito esperar que pouco a pouco lhe introduziremos mudanças que satisfaçam melhor as necessidades e escapem a essa crítica. Mas talvez nos familiarizemos igualmente com a ideia de que há dificuldades inerentes à cultura, que não cederão a tentativas de reforma. (Freud, 2010, pp. 82-83)

Para compreendermos a origem econômica e social do aumento de comportamentos antissociais em um mundo dominado pelo capitalismo financeiro, comportamentos frequentemente atribuídos a distúrbios de personalidade e de caráter que teriam sido contraídos nas relações familiares, é preciso investigar as relações de continuidade e descontinuidade entre o passado e o presente, pois é somente entendendo as raízes do presente que se pode almejar a construção de um futuro econômico, político e social que humanize a vida na sociedade brasileira, na qual todos venham a ter garantidos os direitos de cidadania que sempre foram privilégio das classes sociais dominantes e que, no século XXI, são cada vez mais negados à maioria da população.

Quanto ao direito à educação, a psicanalista Maud Mannonni, em A educação impossível, denunciou, na década de 1970, a medicalização de crianças e adolescentes que, por não se adaptarem às exigências escolares, eram diagnosticadas como incapazes de aprender:

Em vez de revolucionar o ensino em sua estrutura, o Ocidente prefere, pelo contrário, remediar os efeitos das anomalias geradas por um ensino inadequado à nossa época. Remediar os efeitos significa, neste caso, encarregar a medicina de responder onde o ensino fracassou. (Mannonni, 1977, p. 62)

No caso brasileiro, "remediar efeitos" não passa de uma estratégia de ocultação dos graves problemas - que afetam o cotidiano das escolas públicas de ensino fundamental - e de dissimulação do engodo de um discurso oficial que afirma que a política de educação pública atual garante a igualdade de oportunidades a todas as crianças, independentemente da etnia ou da classe social a que pertencem.

Sem uma política educacional que transforme pela raiz a escola pública de ensino fundamental - objetivo cada vez mais improvável -, teremos a continuidade de atos praticados por jovens "despossuídos" que querem "vencer na vida" em uma sociedade em que estão privados de seus direitos de cidadania. As privações a que estão submetidos desde o nascimento os transformarão em "perdedores". Em uma sociedade cada vez mais individualista, competitiva e consumista, serão "vencedores" os que tiverem garantidos todos os seus direitos, condição que, cada vez mais, é um privilégio dos que têm acesso a instituições educativas particulares, que os preparam para o ingresso em universidades públicas, e possuem condições financeiras de consumir os bens materiais tidos como indicadores de sucesso em uma sociedade "igualitária". Em um momento histórico em que verdadeiras oportunidades de escolarização são cada vez menos oferecidas a uma parcela crescente da população que não mais interessa ao capitalismo financeiro, ela será cada vez mais dominada por uma variedade de agressões subvencionadas pelo Estado, entre as quais a violência policial e carcerária que a dizima.

 

REFERÊNCIAS

Carvalho, J. S. (2016). Por uma pedagogia da dignidade. São Paulo: Summus.         [ Links ]

Certeau, M. de (1998). A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. (3ª ed.). Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Dufour, D.-R. (2005). A arte de reduzir cabeças. Sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

Freud, S. (2016). O futuro de uma ilusão. In S. Freud. Obras completas (Vol. 17). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1927).         [ Links ]

______. (2010). O mal-estar na cultura. In S. Freud. Obras completas (Vol. 18). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930).         [ Links ]

Hobsbawm, E. (2009). A era do capital. 1848-1875. (14ª ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.         [ Links ]

Lipovetsky, G. (1988). A era do vazio. Ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Lisboa: Relógio d'Água.         [ Links ]

Mannoni, M. (1977). Educação impossível. São Paulo: Francisco Alves.         [ Links ]

Mello, S. L. (1988). Trabalho e sobrevivência. Mulheres do campo e da periferia de São Paulo. São Paulo: Ática.         [ Links ]

Martins, J. de S. (1997). Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus.         [ Links ]

Rede de Observatórios de Direitos Humanos. (2002). Relatório de Cidadania III: Os Jovens e os Direitos Humanos.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (2012). Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:

MARIA HELENA SOUZA PATTO
Rua Patápio Silva, 241/123
05436-010 – São Paulo – SP
tel.: 11 3032-0196
spmhelena@gmail.com

Recebido 08.09.2016
Aceito 08.10.2016

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