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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.63 São Paulo jan./jun 2017

 

LITERÁRIAS

 

Corpos e mistérios

 

 

Noemia Davidovich Fryszman

Professora titular (aposentada) de literatura inglesa e norte-americana, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, e de história da arte, nas Faculdades Integradas Rio Branco. Mestre em letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e doutora em artes pela Escola de Comunicações e Artes (USP). Participante do Grupo de Estudos Estética-Arte-Psicanálise, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Clarinha olhou-se no espelho novamente, estava de pé diante da penteadeira. Aquele vago mal-estar que a acometia ultimamente pareceu intensificar-se. Era uma sensação de desassossego, que quase lhe roía a alma. Ajeitou o conjunto vermelho, meio descorado, e teve dificuldade em abotoá-lo no peito - será que havia engordado? A perspectiva de mais um dia pela frente deixava-a tensa. Tudo começou muito de repente, ou não seria tão de repente? A vida que levava, cuidando da casa, dos filhos - agora já adolescentes - e do marido que, sem ela saber como, fora afastando-a de seu mundo, parecia-lhe sem muito sentido. Um dia inteiro era uma eternidade! Mentalmente ela agendara as ações que seriam executadas - supermercado, lavanderia, visita à mãe esclerosada, almoço numa lanchonete e ida ao clube, onde sentiria as horas se esticarem até o final da tarde, quando seria tempo de voltar para casa e servir o jantar para os dois filhos e o marido. Como ela ansiava por se agarrar a algo que fosse somente dela! Qualquer coisa - mas só sua!

Naquele momento o telefone tocou e, sempre que isso acontecia, Clarinha deixava a campainha estridente prolongar-se por algum tempo e imaginava as mais estranhas situações que poderiam mudar sua vida ao atendê-lo. Por fim, tirou o fone do gancho e, com o coração batendo rápido, quase em um murmúrio, pronunciou um alô carregado de ansiedade. Mas o encanto logo foi quebrado quando uma voz fininha do outro lado da linha insistia em repetir:

- "Quem fala? Quem fala?"

Clarinha achou a voz familiar e lhe custou um pouco reconhecê-la.

- "Mas que surpresa! Há quanto tempo! Não consigo acreditar que estou falando com a D. Elvira!"

- "Clarinha! Clarinha!" - era tudo que a mulher conseguia pronunciar do outro lado da linha.

Em um redemoinho de ideias e emoções, a figura de D. Elvira surgiu rediviva da memória do tempo. Era a mãe do Serginho, seu amiguinho de infância. Moravam na mesma rua do bairro pobre, até que uma melhoria de vida os levou para uma vizinhança um pouco mais abastada e uns tempos depois a família de Clarinha seguiu o mesmo caminho. No começo foi terrível a separação, mas, com o passar do tempo, saudades foram se transformando em lembranças esfumaçadas.

Sons de uma música, trazida pela magia das lembranças, começaram a soar na memória - era a "Valsa do Minuto", de Chopin. D. Elvira tinha um piano, que carregava pelas andanças da vida, presente talvez de algum amor pecaminoso da juventude, e ela aprendera a tocar a "Valsa do Minuto" de Chopin. Às vezes, Clarinha e Serginho se aconchegavam perto do piano, enquanto

D. Elvira se sentava no banquinho, ajeitava-o, pousava os dedos no teclado, fechava os olhos, dava um grande suspiro, e dizia:

- "Vocês vão ouvir Chopin. Nunca se esqueçam, ele é o maior músico de todos os tempos. Quem consegue tocar esta valsa em exatamente um minuto é um verdadeiro gênio."

Abria os olhos e lá se iam seus dedos correndo pelo teclado. Ao acabar dava um suspiro ainda mais prolongado, olhava o relógio e murmurava:

- "Ainda não foi desta vez."

Clarinha parecia ouvir a música com mais intensidade, quando voltou à realidade.

- "Como vão todos, Clarinha?" Nem esperou a resposta e foi logo dizendo:

- "É muito importante que você venha nos visitar com urgência. O Serginho precisa vê-la. Hoje à tarde, está bem? Ótimo." Deu o endereço e desligou.

Clarinha ficou atordoada com a ideia de atravessar a cidade para rever alguém que fora tão querido. O supermercado poderia esperar. Ela tinha que se apressar para estar de volta no final da tarde.

Não conhecia bem o bairro para onde deveria ir, mas pediria informações no ponto de ônibus. Deu uma última olhada no espelho e sentiu-se um pouco envergonhada da sua imagem atual - o Serginho iria notar? Como ele estaria?

Saiu, trancou a casa e dirigiu-se ao ponto.

Felizmente, o ônibus não demorou muito. O veículo parou e ela rapidamente subiu, pagou e acomodou-se em um lugar ao lado da janela. No ponto seguinte, entrou um passageiro vestindo uma camiseta alaranjada, na qual, em letras coloridas, podia-se ler "I love Frisco".

Clarinha ficou imaginando cidades distantes e Frisco coloriu sua imaginação. Lembrou-se de um filme a que havia assistido, sozinha, na matinê de um cinema fuleiro no centro velho de São Paulo. Sim, sim, sabia que Frisco era São Francisco. Como flashes, cenas do filme passaram rapidamente pela sua mente, nas quais um letreiro dominava o cenário: "Livraria City Lights". A cena pareceu criar vida em sua fantasia, pois, apesar de não ter muito estudo, os livros a atraíam particularmente. A maior frustração da sua vida era não ter cursado faculdade, mas na época ela estava tão loucamente apaixonada...

O ônibus deu uma freada violenta e Clarinha voltou dos devaneios. Um tremor percorreu sua espinha, um pensamento cruzou a sua mente e sua visão ficou anuviada: se ela sofresse um acidente, não haveria ninguém capaz de reconhecer seu corpo. Ah!, seu corpo... Ninguém... Ela quase desfaleceu, mas logo se recompôs. Era um mecanismo de defesa, ela aprendera a sufocar suas emoções mais profundas tentando acreditar que não eram verdadeiras.

Tentava pensar em outra coisa, quando avistou, na sacada do primeiro andar de um prediozinho amarelo e sujo, uma bandeirola de fitas com as cores do arco-íris fincada em um vaso com plantas baixas.

Olhou pela janela e viu que o ônibus já estava se aproximando do ponto onde deveria descer. Levantou-se, foi caminhando em direção à porta de saída e olhou os passageiros de relance. Estranho, todos lhe pareceram demasiadamente velhos... Aí se lembrou de que, ao entrar, fitara o motorista e tivera um ligeiro sobressalto: ele parecia tão enrugado, que difícil seria calcular sua idade.

Desceu apressada, atravessou a rua, caminhou um pouco e entrou na primeira travessa, não sem antes certificar-se de que a rua era mesmo aquela. Procurou o número e parou diante de um prédio de poucos andares. Ainda estava olhando para o prédio quando um bando de crianças barulhentas abriu a porta e começou a sair para a rua. Clarinha aproveitou a porta aberta para entrar. Parou um pouco porque a escada estava escura e, ao acomodar a vista, percebeu que não havia elevador. Começou a subir vagarosamente. Era no quarto e último andar.

Parou diante de uma porta ao lado da qual havia um vaso com folhagens viçosas. Tocou a campainha e esperou pacientemente - não havia o mínimo som vindo de dentro. Bateu na porta... E nada! Tentou girar a maçaneta e, para seu espanto, a porta se abriu sem nenhum esforço. Receosa, entrou e um arrepio trespassou seu corpo. Estava silencioso, frio e um forte cheiro de desinfetante impregnava tudo. Por fim, conseguiu enxergar um quarto no fim do corredor. Aproximou-se, a porta estava aberta e, numa cama ao lado da janela, vislumbrava-se uma trouxinha que parecia ser de roupas de cama.

- "Quem está aí?" - perguntou uma vozinha que parecia sair das entranhas da terra.

Clarinha espantou-se. Aproximou-se mais e notou um corpo embrulhado na trouxa. Não! Não podia ser! Era uma sombra, mas com esforço conseguiu reconhecer o Serginho. Nada no mundo poderia tê-la preparado para o choque. Ficou sem fala por alguns momentos, mas logo se recuperou e, aproximando-se mais, beijou aquele rosto cadavérico.

- "Clarinha! Você veio!"

Em seu semblante, havia um olhar que ela nunca iria esquecer - parecia fixado além, muito além, e seus olhos estavam tão lindos, transparentes. Ela sentia-se impregnada pelo facho de luz que eles irradiavam.

Serginho falava com uma voz infantil, como se a infância tivesse se cristalizado em algum lugar mágico, para uma dimensão além do tempo. Foi então que ela notou uma correntezinha enrolada no seu pulso - tão fino - com uma medalhinha de santo. O espanto foi enorme! Sentiu uma vertigem, um turbilhão de memórias convulsionou seus sentidos.

- "Serginho, você se lembra?"

- "O quê? Quem está aí?"

Clarinha olhou fixamente para ele, seus olhos olhavam além. Ela percebeu que ele delirava.

- "Quem está aí?" - ele insistia. Começou a falar como criança.

- "Ah! É você, Clarinha? Contou para alguém?" Ela estremeceu - sabia bem ao que ele se referia.

- "Não, não contei."

Ela entrou no jogo dele e começou a falar como criança também. Lembranças perdidas na bruma do tempo encontraram o seu caminho de volta, percorrendo meandros sombrios e atalhos nebulosos. Clarinha, como em transe, começou a rememorar. Eles estavam brincando de procurar tesouros. Na rua sem calçamento onde moravam, às vezes brotavam do barro, como que por encanto, caquinhos coloridos de vidro ou pedacinhos de objetos fantásticos descartados, esperando pacientemente a hora de fazer a alegria de crianças despojadas de quase tudo que o dinheiro pode comprar. Aquele tinha sido um dia particularmente feliz. O tesouro encontrado era uma asa de xícara toda enfeitada de flores azuis. Iriam tirar a sorte para ver a quem pertencia, quando uma gritaria ecoou pela rua. Eram gritos frenéticos, angustiantes, e eles ficaram tremendamente assustados. Correram em direção à casa de onde partiam os gritos e conseguiram escutar a voz de D. Amélia entrecortada de soluços, agora sussurrando:

- "O Darcy se matou!"

Serginho e Clarinha ficaram confusos. Para eles a morte não fazia sentido. Nas brincadeiras infantis nada era irreversível - era só desmorrer.

Foram espiar por uma fresta da janela. O Darcy estava estendido na cama e tudo o que puderam perceber foi uma espécie de buraco na sua testa, de onde escorria um líquido vermelho escuro. D. Amélia viu as crianças espiando e apressou-se em fechar a veneziana. Daí para frente eles apenas puderam ouvir uns gemidos entrecortados de choro e uma pergunta obsedante: "Por quê? Por quê? Por quê?".

Chegaram em casa na hora do jantar. Os adultos pararam repentinamente de cochichar quando as crianças se aproximaram.

Na manhã seguinte, Serginho e Clarinha se encontraram para brincar. A vida era boa!

- "O que sua mãe disse do Darcy?" - perguntou Clarinha.

"Nada. Que ele morreu."

"Morreu, como?"

"Só que morreu."

"Só isso?"

- "Não. Ela falou também que ele ia pra um lugar chamado cemitério e que lá fariam um buraco bem grande no chão, jogariam ele dentro e cobririam de terra para ele nunca mais sair."

Clarinha ficou pensativa por um momento e muito impressionada com aquilo, mas logo se recompôs e falou:

"Vamos brincar?"

- "Clarinha, Clarinha, você mostrou o papel para alguém?"

Serginho disse isso imitando uma voz infantil, como se o tempo fosse ainda o dos seus sete anos. Clarinha percebeu então que o delírio continuava. Demorou um pouco para ela perceber a que papel ele se referia. Sim, ela havia guardado aquele papel por mais de vinte anos, quando um dia, depois de muita hesitação, resolveu rasgá-lo e jogá-lo fora. Não tivera coragem de lê-lo.

- "Ah, sim o papel..." Mas Serginho logo se calou como se já soubesse a resposta.

Era de manhã, ambos haviam saído para procurar tesouros, os mágicos caquinhos de vidro colorido. Uma vez tinham achado um pequeno cavalinho de vidro, quase perfeito - faltava só um pedaço da crina -, ele ficava um pouco na casa de cada um. Naquele dia muito especial eles se aventuraram até um campinho mais distante, local proibido pelas respectivas mães. De repente se deparam com uma caixa um pouco maior jogada atrás dos arbustos. Correram até lá e, num segundo, já estavam abrindo a tampa da caixa. Coisa estranha. Dentro parecia que havia uma bonequinha, com uma camisolinha bem branca. Era tão pequenina! As mãozinhas tão delicadas! Mas, as unhas estavam tremendamente roxas, de um roxo assustador! Houve um momento de silêncio, como se o mundo tivesse parado. Clarinha foi paralisada por um silêncio absoluto, que atemorizava, todos os sons do universo haviam desaparecido. Muitos anos depois, houve momentos em sua vida em que o som do silêncio total voltou a aterrorizá-la, era o som alucinante de uma música interior que se confundia com a eternidade.

Olharam melhor - era um nenê de verdade. Viram a medalhinha no pescocinho dele e o papel escondido do lado. Havia alguma coisa escrita, eles tentaram imaginar, mas ambos não sabiam ler.

- "E se a gente pedisse pra mamãe ler?" - disse Clarinha.

- "Não, não e não", respondeu Serginho. "A mamãe saberia que a gente esteve aqui. Vamos jurar de cruz que não contaremos a ninguém."

Aprenderam a ler, mas nunca tiveram coragem de decifrar o papel esquecido junto com as demais relíquias.

Alguns dias depois, ansiosos e com muito medo resolveram voltar ao lugar do assustador achado. Nada, nada - havia desaparecido como que por encanto! Procuraram por toda parte... E nada! Não pronunciaram palavra. Voltaram desapontados. No caminho de volta fizeram outro juramento de cruz - eles nunca iriam morrer, nunca, tinham certeza disso!

- "Serginho, você está bem?"

Ele não respondeu. Apenas olhou, e era como se ele olhasse além, o seu olhar já estava na eternidade. Clarinha assustou-se. Ele voltou a falar como criança:

- "Clarinha, vamos fazer aquilo?"

"Aquilo" era tirar a roupa e ficar olhando um para o outro, morrendo de medo de serem surpreendidos. Ele estava muito fraco, quase não tinha forças para se mover na cama. Conseguiu com grande esforço levantar o braço até a blusa de Clarinha, mostrando vontade de tirá-la. Nesse momento Clarinha guiou a sua mão e a medalhinha balançou por uns momentos no seu esquelético pulso. Serginho, parecendo de repente ser possuidor de uma força super-humana, apoiou-se nela e sentou-se na cama. Era tudo tão estranho, parecia mais um filme surreal.

- "Quero ver tudo", ele falou com voz de criança, e Clarinha, em um segundo, percebeu que estava completamente nua. Não sentiu acanhamento nem vergonha. Pelo contrário, era como se fosse tudo muito natural. Nem lhe ocorreu que a mãe do Serginho poderia aparecer a qualquer momento. Sentiu uma sensação estranha de um líquido quente e muito vermelho escorrendo coxa abaixo. Num relâmpago, veio-lhe à mente a lembrança da sua primeira menstruação. Eles, já mais crescidos, estavam no quarto de Serginho fingindo estudar geografia quando essa mesma sensação cortou seu ventre e suas coxas e Clarinha, sentindo quase uma vertigem, pensou que fosse desfalecer. A princípio ele pareceu não perceber nada, mas logo um fio de um vermelho cor de tijolo fez-se visível escorrendo pela perna da amiguinha. Clarinha sentiu o que foi a sua primeira cólica de mulher, mas parecia não estar compreendendo nada. Serginho permaneceu mudo, estranho, mas daquele dia em diante alguma coisa incompreensível, cheia de magia, aconteceu na sua relação.

Por um momento, o delírio cessou. Serginho olhou para Clarinha e pareceu não compreender.Tentou se levantar e caiu sentado na cama. Na sua mente um refrão insinuava-se obsessivamente, martelando palavras e retratos de um quadro já longamente esquecido: o homem berrando e puxando a cabra com um sininho infernal tilintado no pescoço - "Olha o leite de cabra, olha o leite de bode, que é um escracho pro menino virar macho!".

Pediu ajuda com os olhos e Clarinha fez com que ele se apoiasse em seus braços.

O quarto estava na penumbra, mas havia uma tênue claridade passando pela janela ao fundo. Andaram em direção a ela. Clarinha completamente nua e Serginho vestindo um camisolão muito folgado e muito alvo. Chegaram e, por um momento, puderam sentir o sopro do vento e ouvir os ruídos da vida lá fora.

Sem nem perceber o que estava fazendo, Serginho, ainda amparado por Clarinha, fez um gesto brusco e o camisolão caiu no chão. Agora estavam ambos nus. Eles se olharam como se ainda tivessem sete anos. Eles se enxergaram crianças.

- "Antes da queda..." - Serginho balbuciou.

Para Clarinha era tudo tão incompreensível, tão inesperado, porém pareceu ter aguardado a vida toda por esse momento mágico.

Aí... Aconteceu! Serginho não estava mais ao seu lado. Foi como se tivesse ouvido o roçar das asas de um anjo e um baque muito suave. Olhou para baixo e temeu estar tendo uma alucinação - era o nenê da infância que estava lá no chão. Parecia um anjinho em uma posição de menina no balé.

Para Clarinha, atordoada, pareceu que a imagem aterradora de uma quimera se desenhava em seu delírio. A janela dava para o pátio interno do prédio, de acesso difícil. E Clarinha sentiu que o voo de Serginho para o infinito, ao mesmo tempo que entristecia sua alma, provocava nela uma sensação de liberdade. Clarinha vestiu-se rapidamente e apressou-se em sair. A mãe do Serginho deveria chegar a qualquer instante. Olhou ao redor para ver se não estava esquecendo nada. A percepção do que acontecera ainda não havia atingido o seu cérebro. Ao sair notou um papelzinho caído ao lado do camisolão. Apanhou-o instintivamente e guardou-o na bolsa.

Só conseguiu respirar quando chegou à rua. Tudo lhe pareceu muito estranho, inexplicável. Um ônibus estava parando no ponto. Correu até ele e conseguiu tomá-lo. Ao sentar percebeu que os botões da sua blusa estavam despareados. Tentou acertá-los. Ajeitou-se no banco. Respirou fundo. Lembrou-se do papel que Serginho deixara cair ao tentar se livrar do camisolão. Desta vez não ficaria guardado por 20 anos para depois destruí-lo sem ler. Abriu a bolsa e leu de um só fôlego o que se encontrava escrito em letras de um vermelho vivo que chegava a ferir a retina:

"De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Aí a dor de ser-quase, dor sem fim...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém..."

...Querida, meu bem, você entenderá.

Chegou ao seu destino. Estranho - todos os passageiros do ônibus lhe pareceram extremamente jovens. Ao saltar olhou para o motorista e ele parecia uma criança.

Desceu, olhou para o céu. Devia ter chovido enquanto estava lá, pois no céu se desenhava um belíssimo arco-íris.

 

 

Endereço para correspondência:
NOEMIA DAVIDOVICH FRYSZMAN
Rua Ceará, 101
01243-000 – São Paulo – SP
noemia.david@outlook.com

Recebido 08.04.2017
Aceito 29.04.2017

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