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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.63 São Paulo jan./jun 2017

 

RESENHA

 

Escolhas líquidas

 

 

Mania Deweik

Membro do Departamento de Psicanálise, professora do curso de psicopatologia psicanalítica e clínica contemporânea, e membro do Conselho Editorial da Percurso - Revista de Psicanálise, do Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 

Leite, Maria Stella Sampaio. Orientação profissional (Coleção Clínica Psicanalítica). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2015. 248 p.

Quando Everet, em 1758, construiu a primeira máquina de tosar lã movida à agua, na Inglaterra, cem mil pessoas que haviam ficado sem trabalho atearam fogo ao novo engenho. A destruição em massa de máquinas nos distritos manufatureiros ingleses, durante os primeiros anos do século xix, serviu de pretexto para reações violentas.

Em 100 anos, a Europa, de sítios, rendeiros e artesãos, tornou-se uma Europa de cidades industriais. Os utensílios manuais e os dispositivos mecânicos foram substituídos por máquinas; o vapor e a eletricidade suplantaram fontes tradicionais de energia. Os aldeãos migraram para as minas de carvão e para as cidades, e suas antigas ocupações tornaram-se obsoletas.

A grande transformação que trouxe à vida a nova ordem industrial foi a separação dos trabalhadores de suas fontes de existência. A Revolução Industrial colocou em xeque não só o modo de produção, das trocas, de excedente de produtos, do valor do dinheiro, mas também a própria noção de trabalho e de sujeito.

Portanto, torna-se necessário recolocar nosso trabalho de orientação profissional no tear manual da reflexão, fazendo-o fiar novas tramas a fim de, literalmente, recuperarmos o fio da meada, questionando-nos sobre o significado e a função do trabalho na contemporaneidade.

O bem-vindo livro de Maria Stella Sampaio Leite, publicado pela Editora Casa do Psicólogo/Pearson, faz parte da consagrada Coleção Clínica Psicanalítica, de Flávio Carvalho Ferraz, cujos temas, desde 2000, têm acolhido obras de diversos autores com a aposta de que é possível fazer a psicanálise alargar seus domínios, questionando fronteiras, despatologizando novas práticas e contribuindo para uma abertura de nossa escuta clínica.

É exatamente a isso que a autora se dispõe ao, generosamente, expor sua experiência de 27 anos na Instituição Colmeia no atendimento a adolescentes confrontados com a escolha de um futuro profissional, bem como sua experiência didática na formação de orientadores profissionais.

O instrumento do qual se vale para suas pesquisas, para suas críticas e sua metodologia de trabalho, advém principalmente dos conceitos metapsicológico construídos por Freud no decorrer de sua obra como analista, assim como de suas incursões no campo da cultura como crítico contundente da modernidade e de suas vicissitudes.

Fica claro desde o início da leitura que trabalhar e falar de orientação profissional conduz inevitavelmente à articulação entre o individual e o social, à análise da possibilidade de escolha, ao exame das restrições da liberdade e a encarar as relações entre vocação e alienação. Parece-me que é disso que trata a autora quando se refere ao alcance político da OV/OP, logo na apresentação de sua obra.

A sigla OV/OP (Orientação Vocacional/Orientação Profissional) é usada para se referir tanto à teoria quanto à prática discutidas. A barra entre o Vocacional e o Profissional usada na sigla parece, à primeira vista, denotar uma certa indeterminação ou dúvida da autora; mas a leitura atenta atestará que tanto a Vocação quanto a Profissão, cristalizadas sob a forma de uma ficção ocupacional, constituem o material representacional do superego e do ideal do ego dos sujeitos vocados. Entende-se que a vocação não mais seria um chamado divino, uma inclinação ou um pendor natural, mas um apelo interno a ser lido como a formação de um sintoma.

Aliás, a própria história da OV/OP poderia ser escrita a partir da dialética vocante/vocado: num primeiro momento o vocante é Deus e o vocado a alma a serviço desse chamado. No momento científico, o vocante é a estrutura social e educacional e o vocado é o interesse e a aptidão do sujeito, evidenciados por meio do uso da psicometria. O terceiro, o momento psicanalítico, é justamente a matéria-prima desse livro.

Após debruçar sobre o histórico do trabalho de forma cronológica, a autora, logo no segundo capítulo, pergunta-se sobre o sentido do trabalho para a psicanálise e formula duas questões cruciais: o trabalho pode ser fonte de satisfação? E qual seria o seu papel na dinâmica psíquica do homem?

Como sabemos, já em 1908, no texto "A moral sexual civilizada e a doença moderna", Freud apontava para a relação entre a perda do erotismo do sujeito na modernidade e a difusão da doença nervosa na sociedade.

A produção cultural e o trabalho repousam sobre a coerção das pulsões, fruto de um antagonismo irremediável entre as exigências pulsionais e as restrições da civilização, ficando as contradições subjetivas remetidas à dialética do desejo e seu enquadramento no psiquismo mediante os processos de identificação, do ideal do ego e da constituição do próprio ego como introjeção do social.

Maria Stella opta por trilhar pelas diferentes concepções de sublimação - um dos destinos da pulsão -, enfatizando o trabalho e as produções culturais como fruto da transformação da pulsão no que diz respeito ao objeto e à meta sexual. Desviando a energia sexual para uma finalidade não sexual, deslocando-se a objetos socialmente valorizados, a libido escapa ao destino do recalque, da volta contra si mesmo ou na sua transformação no contrário, sendo sublimada em curiosidade intelectual e reforçando a pulsão de investigação.

Acrescenta a autora: "para que o trabalho seja vivido com gratificação, é preciso que à parte dos impulsos sublimados seja acrescida outra parte, aquela referida à satisfação pela via direta sexual" (p. 45). Para complementar, enfatiza que a libido objetal volta-se para o ego como libido narcísica, não sexual, dando origem ao ideal do ego, impulsionador da sublimação.

Seria necessário acrescentar que a pulsão de morte, conceito postulado por Freud na reviravolta teórica dos anos 20, também atua como força que ataca o psiquismo e pode paralisar o trabalho do Eu, mobilizando-o em direção ao desejo de não mais desejar. O supereu, nesse contexto, ao mesmo tempo que possibilita uma aliança psíquica com a cultura, com a civilização, os pactos sociais, as leis e as regras, também é responsável pelas frustrações e exigências que o sujeito impõe a si próprio.

Numa das grandes criações do século XX (1930), Freud apresenta o homem desamparado tendo que lidar com seu corpo, com as exigências do mundo externo e, acima de tudo, com as relações humanas. A sublimação no trabalho, diz o autor, permite uma adaptação à relação hostil com a natureza e com os outros. Mas acrescenta, surpreendentemente, numa nota de rodapé:

A atividade profissional constitui uma fonte de satisfação especial se for livremente escolhida, isto é, se por meio da sublimação tornar possível o uso de inclinações existentes, de impulsos intuitivos persistentes ou constitucionalmente reforçados. No entanto, como caminho para a felicidade trabalho não é prezado pelos homens. Não se esforçam em relação a ele como o fazem em relação a outras possibilidades de satisfação. A grande maioria das pessoas trabalha sob pressão da necessidade e esta natural aversão ao trabalho suscita relações sociais extremamente difíceis.

Essa contradição parece não escapar à autora que, por meio das contribuições de interlocutores como Christophe Dejours, alerta que o sofrimento mental no trabalho está mais associado à organização, às pressões e cobranças do que ao fazer e ao laborar propriamente dito. Cobra-se dos trabalhadores (aos que ainda estão empregados) altos desempenhos, sempre superiores em termos de disponibilidade, produtividade, disciplina, eficácia e abnegação. Entre o trabalho possível e o prescrito pelas normas há uma defasagem, levando os trabalhadores a criar formas coletivas de burlar as normas. Dejours equipara a conjuntura social a uma situação de guerra, com a diferença de que não se trata de um conflito armado, mas de uma "guerra econômica" na qual estaria em jogo a sobrevivência da nação e a garantia de liberdade.

É em nome dessa justa causa que são utilizados métodos, os mais cruéis, a fim de excluir os menos aptos e submeter os demais a condições insuportáveis. Assim, a relação com o trabalho vai se dissociando paulatinamente da promessa de recompensa, realização e segurança compartilhadas. O homem padece no trabalho ao mesmo tempo que busca sua felicidade por meio dele.

Conflito difícil que aparece na clínica cotidiana sob as for-mas mais diversas de sofrimento na escolha e que demandam do orientador uma acolhida e uma escuta bastante diferenciada.

Talvez à guisa de um sopro de possibilidade estratégica no trabalho com adolescentes, Maria Stella inclui um tópico sobre o paralelo entre o brincar e o trabalho, respaldada nas contribuições de Winnicott a partir do conceito de objeto transicional:

[...] o fenômeno transicional é base do brincar individual que evolui para o brincar coletivo. Este, por sua vez, resulta nas experiências culturais. É justamente nesta zona limítrofe dentro/fora do indivíduo que podemos situar todas as vivências da criatividade, da espiritualidade e da engenhosidade próprias das produções culturais, da religião e do trabalho criativo.

Em vez do homo saccer, o homo ludens?

Como não poderia deixar de ser quando se fala em OV/OP, há um capítulo dedicado à obra de Rodolfo Bohoslavsky, psicanalista argentino que, na década de 1970, propôs uma ruptura com a Seleção e Orientação Profissional baseadas nos testes de aptidão e interesses, nas tabelas, medições e perfis com o objetivo de colocar The Right Man in The Right Place, deslocando a questão do que fazer para o quem ser. Nessa mudança há uma dimensão ética e ideológica: considerar o homem sujeito de suas escolhas, por mais que sejam multi e sobredeterminadas.

As contradições sociais expressam-se através de demandas, apelos ou chamados ao sujeito por meio da família, da estrutura educacional e dos meios de comunicação em massa, que vão cristalizando a ideologia do sistema social pela representação das profissões. A possível liberdade consistiria numa consciência da determinação desses valores, na forma como os indivíduos as mantêm e, principalmente, como as podem transformar.

O problema vocacional não é a-histórico, ele se dá numa estrutura capitalista, ocidental e a partir da modernidade.

O modelo clínico-psicanalítico preconizado por Bohoslavsky no início dos anos 70 se deu num peculiar momento na Argentina em que a psicanálise serviu de linguagem social e política para a sociedade portenha, uma verdadeira Weltanschauung, propiciando a proliferação de estudiosos em psiquiatria e psicologia que foram difusores na expansão da peste freudiana, e que chegou a ser um veículo de consumo generalizado a afetar a tradição cultural de camadas diferentes da trama social.

Rodolfo Bohoslavsky foi fortemente influenciado por autores como Arminda Aberastury, Marie Langer, Arnaldo Rascovsky, Enrique Pichon-Rivière, Jose Bleger, Oscar Masotta e Emilio Rodrigué. Tais autores foram leituras obrigatórias para os psicólogos em formação na Universidade de São Paulo e no então curso de Seleção e Orientação profissional ministrado no quinto ano.

Dessa interlocução adveio em 1974 a ideia de organizar um cur-so ministrado pelo próprio Bohoslavsky, e, em 1975, a convite de Maria Margarida de Carvalho ele desembarcou no Brasil com seus dois livros ainda não traduzidos, marcou toda uma geração de psicólogos e psicanalistas, em sua prática clínica e no que diz respeito às suas concepções teóricas no âmbito da Orientação Profissional.

Maria Stella foi uma das que se imbuiu desses escritos e dessa forma de atuação.

Diz ela: "A identidade vocacional expressa as variáveis de tipo afetivo-emocional, enquanto a identidade profissional ou ocupacional mostra o produto da ação de determinado contexto sociocultural sobre aquela", esclarecendo que "Bohoslavsky dá ênfase ao mecanismo de reparação no qual o sujeito tem a percepção inconsciente de ter danificado seus objetos internos pela ação de sentimentos agressivos", "[...] assim a identidade vocacional se pauta pelos processos reparatórios do sujeito e pela forma como enfrenta lutos".

Dado o caráter sintomático da escolha, a autora dedica um capítulo a elencar e descrever alguns conceitos psicanalíticos da primeira tópica freudiana, tais como a tríade conflito-sintoma-inconsciente, o conceito de identificação e o conceito kleiniano de reparação.

Na segunda parte do livro, denominada "Por uma clínica viva", a autora explicita a matéria bruta de seu trabalho com o relato da condução de processos de orientação profissional, individuais e em grupo, distingue o grupo aberto do fechado, fala-nos de técnicas projetivas possíveis para fins diagnósticos ou facilitadoras do processo, ilustrando de forma muito interessante histórias trazidas pelos pacientes. Arremata essa parte com a descrição da escolha profissional no imaginário familiar por meio de vinhetas que, com uma linguagem simples e corriqueira, facilita a identificação de vários tipos de dinâmicas possíveis.

Para contemplar as condições em que as escolhas se realizam, talvez fosse interessante acrescentar que elas se dão numa vida "líquida", numa sociedade líquido-moderna, em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que o necessário para a consolidação de hábitos e rotinas. As condições de ação e estratégia de reação envelhecem rapidamente e se tornam obsoletas antes de os atores terem uma chance de apreendê-las. A vida líquida é vivida em condições de incerteza permanente, uma sucessão de reinícios.

Como pensar essa liquidez na clínica? Como voltar nossa atenção para os problemas que a atual condição do sistema capitalista suscita no ser humano, entre a necessidade de se adequar ao ritmo destrutivo-criativo dos mercados e o medo de se tornar defasado e dispensável?

Eis o nosso desafio na contemporaneidade.

Por suscitar essas e outras questões, o livro destina-se tanto aos profissionais em atividade quanto a iniciantes que queiram uma âncora para iniciar suas reflexões.

A bibliografia consistente e os conceitos trabalhados com precisão serão para os leitores uma fonte de pesquisa segura e bastante abrangente.

Boa Leitura!

 

 

Endereço para correspondência:
MANIA DEWEIK
Rua Honduras, 587
01428-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 4329-7304
maniad@uol.com.br

Recebido 10.04.2016
Aceito 07.05.2016

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