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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.63 São Paulo jan./jun 2017

 

RESENHA

 

Meias verdades: um romance de tirar o fôlego!

 

 

Mirian Malzyner

Endereço para correspondência

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

 

 

Ogden, Thomas. Meias verdades: um romance (E. H. Sandler, trad.). Londres: Karnac, 2016. 208 p.

Desde sempre, os psicanalistas buscam nutrição em todas as formas de expressão artística e o diálogo entre psicanálise e literatura é particularmente fértil. A boa literatura é uma forma privilegiada de abordar a problemática humana e a escrita sensível alcança sutilezas e meandros do psiquismo que ampliam e trazem frescor para a visão psicanalítica.

Quando um psicanalista renomado e reconhecido, um pensador profundo com uma obra consistente em psicanálise nos brinda com um romance, a curiosidade é inevitável. E foi assim, movida por curiosidade, que fui em busca de ler Meias verdades: um romance, escrito por Thomas Ogden, com tradução impecável para o português pela também psicanalista Ester Sandler.

Leitura atraente e de tirar o fôlego. Uma trama que envolve suspense e drama, um relato implacável, que certamente nasce de um profundo contato com as dores do Ser. As personagens são muito bem construídas e o universo emocional apresentado é de relações em que a busca por laços amorosos sucumbe a um vazio de sentidos. Ao final da leitura, a vivência é de um soco no estômago. Lembro-me de uma frase atribuída a Franz Kafka: "Um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós".

O livro inicia com uma morte trágica e violenta, ocorrida no seio de uma família simples de fazendeiros de grãos, no Kansas. Numa narrativa ágil que salta de um tempo para outro, acompanhamos a construção de uma história familiar, dos laços que vão sendo formados e cujo drama se concentra na relação da mãe com seu filho caçula, marcada por um abismo afetivo. Somos levados a conhecer o tempo em que o casal - Marta e Earl - namorou e casou, como eram suas famílias de origem, o nascimento dos dois filhos - Melody e Warren - e a importante presença da irmã de Marta, Anne.

O clima afetivo da família aparece já na descrição da casa: "[...] paredes nuas: não havia um único retrato de família, fotografia ou desenho de criança, nem mesmo um calendário ou relógio que quebrasse a desolação das paredes" (p. 37).

As personagens parecem destinadas ao desencontro e à impossibilidade de criar sentidos que pudessem legitimar suas escolhas. Mas o leitor pode ver o sentido à medida que vai conhecendo mais e mais como os acontecimentos se sucederam, e os planos das diferentes subjetividades vão se delineando. O leitor intui esse sentido e testemunha aquilo que uma das personagens, uma psiquiatra, diz: "alguma coisa ou alguém pode roubar das pessoas as próprias vidas" (p. 173).

O leitor também percebe o porquê de Warren desejar "ser qualquer pessoa, exceto ele mesmo" (p. 185).

Assim, o leitor é capturado pela trama e vive aquilo que o próprio Ogden coloca em Leituras criativas: ensaios sobre obras analíticas seminais (Ogden, 2014, p. 22): "[...] entregar-se à experiência de ler, em hipótese alguma pode ser um evento imparcial ou passivo".

Não vou resumir o livro, descrevendo a trama que merece ser lida da forma como o autor tão bem a conduz, da primeira à ultima linha. Vou apenas destacar aquilo que na minha leitura repercutiu com intensidade.

Penso que o título do livro em português, Meias verdades..., e literalmente o título em inglês, As partes deixadas de fora (The parts left out), apontam para o vértice a partir do qual o autor se posiciona: um relato é sempre parcial. Nossas escolhas acontecem a partir do pouco que sabemos.

Diz a personagem Earl: "Eu sei que lhe contei duas histórias - a história de um garoto de fazenda solitário intercalada com a história de um lar. Ambas as histórias são verdadeiras e ambas são mentirosas" (p. 62). Em outro momento, Anne: "Nós duas mentimos - eu minto inventando histórias, você mente omitindo fatos" (p. 76). E, ainda, sobre Anne: "Suas histórias, particularmente as mais difíceis de acreditar, eram como os sonhos mais estranhos, continham as verdades mais importantes da sua vida" (p. 78).

Como psicanalistas, buscamos ampliar o conhecimento e a apreensão das verdades íntimas, acreditando que com isso ajudamos a estabelecer uma subjetividade mais competente para administrar a condição vulnerável e precária de nosso caminho no mundo.

Mas, contrariando nossos esforços, Anne sintetiza: "Não conseguimos explicar a nós mesmos, mesmo para nós mesmos. Inventamos explicações a posteriori e tudo parece se encaixar; mas, se acreditarmos nessas explicações, de por que fizemos o que fizemos, nós estaremos nos engabelando" (p. 196).

Earl, de uma família de agricultores, tivera uma infância ligada à natureza: "As forças da natureza tinham um poder imenso [...]. essas ameaças pairavam silenciosamente sobre as crianças do campo dando-lhes a noção de que a natureza era imparcial, não tinha inimigos ou favoritos; as crianças viviam aterrorizadas, pois sabiam que os pais não podiam controlar o próprio destino e nem proteger os filhos das incertezas" (p. 10).

Somente os laços amorosos e o olhar humano, que compreende empaticamente, podem oferecer condições para acolher o desamparo da condição humana e gerar crescimento. E Ogden descreve com maestria o desolamento de uma vida que mingua na falta do olhar amoroso.

Sobre Marta, diz o autor: "Ela não escolhera viver uma vida sem amor. Ninguém ia querer isso, se houvesse escolha" (p. 107). Marta pode até enlouquecer como uma forma radical de tentar manter-se viva, mas "Marta não era mais Marta; era uma mulher que não parecia mais, de forma alguma, ser gente" (p. 153).

Há uma personagem, a mãe de Earl, que aparece como representante de um olhar amoroso, capaz de respeitar o outro na sua singularidade: "Quando ela morreu, Earl, Paul e Leslie, conversando sobre a mãe, descobriram surpresos que cada um deles acreditava, secretamente, ter sido o filho favorito; mas esse sentimento era correto, já que cada um deles era uma pessoa diferente e, nessa condição, o mais amado e de modo especial" (p. 68).

Mas é o vazio gelado da personagem Marta que se impõe à narrativa, fazendo da morte a única solução possível. Na relação com Warren, filho indesejado e não amado, um vínculo de recusa se estabelece. Cada um tentando fazer valer a recusa de ser extinto pela vontade do outro. "Ele tinha deixado de ser o filho dela e ela cessara de ser a mãe dele; ele era um animal que ela tinha de amansar, e ela o tipo de mulher que não descansava até terminar uma tarefa" (p. 25).

As alternativas não existem. Ogden descreve o exílio, o desterro, a condição de não pertencer à raça humana, advindos do horror de ser tratado como nada ou ninguém.

Em O ouvido do analista e o olho do crítico, os autores afirmam que "um escritor não consegue criar em sua escrita algo que é incapaz de vivenciar em sua própria vida. [...] não pode escrever sobre experiências emocionais, ele deve escrever a partir delas: elas precisam estar vivas no autor" (Ogden & Ogden, 2014, p. 39 - grifo nosso).

Na minha leitura, o livro Meias verdades: um romance alcança uma linguagem capaz de expressar dimensões da realidade de maneira clara e viva; boa literatura sempre indispensável ao psicanalista e à linguagem psicanalítica.

 

REFERÊNCIAS

Ogden, T. H. & Ogden, B. H. (2014). O ouvido do analista e o olho do crítico - Repensando psicanálise e literatura. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Ogden, T. H. (2014). Leituras criativas: ensaios sobre obras analíticas seminais. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Purpurina, 155/67
05435-030 – São Paulo – SP
tel.: 11 3815-8115
mimalzyner@gmail.com

Recebido 04.07.2016
Aceito 10.09.2016

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