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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo jul./dez. 2017

 

EDITORIAL

 

Interpretações da cultura

 

 

João A. Frayze-Pereira

Editor

 

 

Em resposta à proposição da ide 63 - Pensamento clínico e cultura do espetáculo: a questão do íntimo -, recebemos uma grande quantidade de artigos, o que nos surpreendeu positivamente. Mais do que surpresos, ficamos felizes, pois, ao ler os trabalhos, percebemos que, por certa força de atração, eles se distribuíam em dois conjuntos tematicamente coerentes: o primeiro deu margem à produção do volume anterior e o segundo norteou a presente edição. Mais ainda, os artigos aqui publicados, muito distintos entre si, vão além da reflexão iniciada na ide 63. Assim, quer realizem leituras ou interpretações de temas e objetos culturais específicos, selecionados por seus autores no campo da literatura, da clínica e das artes (plásticas e gráficas, dança, cinema e música ), quer se voltem para a análise de problemáticas culturais ou existenciais mais amplas, o conjunto expressa múltiplas perspectivas psicanalíticas, envolvidas com diferentes concepções cujas referências também abarcam vários autores, desde Freud até os contemporâneos. Com essa diversidade de objetos, questões e abordagens, inadvertidamente os artigos instigaram-nos a associá-los a um tema abrangente - a interpretação -, relativo a uma operação essencial à prática de qualquer psicanalista, uma vez que todo psicanalista interpreta. Mas, o que seria interpretar?

No campo da literatura, Alfredo Bosi (1988) observa que interpretar não é o mesmo que ler, embora a literatura exista para ser lida. Escreve Bosi (1988, p. 275): "ler é colher tudo quanto vem escrito. Mas interpretar é eleger (isto é, ex-legere: escolher), na massa das possibilidades semânticas, apenas aquelas que se movem no encalço da questão crucial: o que o texto quer dizer"? Nesse sentido, ao intérprete de um texto, literário ou não, cabe pesquisar a relação que a palavra escrita mantém com o não escrito. Ou seja, o intérprete é um mediador que trabalha rente ao texto, mas com a atenção posta em um processo formativo que transcende a letra. E, considerando a etimologia do termo, se o intérprete é um mediador cuja linguagem lembra a do tradutor, lembra também a de um músico que domina a arte de transpor melodias de um instrumento para outro (Bosi, 1988, p. 286). Mas, aqui, é bom lembrar que literatura não é psicanálise, embora ela possa, assim como a arte, contribuir para ampliar a nossa percepção de como opera a interpretação no campo psicanalítico. Porém, como os psicanalistas procedem para interpretar manifestações culturais, fazendo uso da psicanálise?

Essa questão, de ordem metodológica, sugere outras perguntas, mais básicas. Afinal, como os psicanalistas se relacionam com a cultura? Como a cultura se faz presente nos escritos psicanalíticos? Mobilizados por tais interrogações, logo na abertura deste número, na sessão Memória, decidimos reeditar o artigo de Fabio Herrmann, publicado na ide, em 1984 - A cultura do psicanalista - , seguido de uma entrevista recente com o psicanalista japonês Osamu Kitayama, realizada por colegas que coordenam a AMF - Associação de Membros Filiados da SBPSP. Intitulada A psicanálise no Japão, essa conversa interessante nos conduz à formulação de mais perguntas, entre elas, a seguinte: é preciso cultura para fazer uma interpretação da cultura? Acreditamos que, cada um à sua maneira, Herrmann e Kitayama, assim como os diferentes artigos aqui reunidos, embora não intencionalmente, constituem respostas possíveis a essa questão crítica.

Nesse sentido, convidamos os nossos leitores a fazer um exercício de reflexão. Considerando a especificidade do pensar psicanalítico, se comparado ao praticado pelas demais ciências humanas - o pensamento clínico -, a leitura dos artigos pode ser realizada com o propósito de perceber a diversidade de modos de realização daquele tipo de pensamento. Entretanto, é bom lembrar que esse pensar especificamente psicanalítico, como sabem os analistas, é contrário ao que Freud, em 1910, denominou psicanálise silvestre, isto é, uma psicanálise impregnada de realismo ingênuo e também de positivismo, próprio da ciência que manipula as coisas e renuncia a habitá-las, segundo a conhecida tese de Merleau-Ponty. Tal trabalho, quando selvagemente praticado, não apenas por psicanalistas, mas também por críticos de arte, filósofos e outros profissionais que recorrem à psicanálise para a realização dos seus estudos, leva o intérprete a assumir uma atitude intelectualista ao aplicar conceitos sobre os objetos, como uma grade interpretativa, previamente definida - um tipo de operação metodológica que trata cada objeto como objeto em geral cujo sentido, supostamente, surgiria ao ser ele a confirmação dos modelos teóricos pré-concebidos. Ao contrário, seguindo Freud, sabemos que o específico da psicanálise não é essa maneira de trabalhar, dita silvestre, mas um modo de operar, psicanaliticamente cultivado, diríamos, que não funciona por intermédio da verificação do chamado "método psicanalítico" ou de quaisquer teorias e conceitos pré-definidos. É um modo de pensar que não converte os fenômenos estudados em sintomas de alguma teoria e que, ao se aproximar daqueles, respeita a sua singularidade e constrói interpretações para eles, derivando-as deles, na justa medida deles. Trata-se, portanto, de um modo de trabalhar e de pensar que transcende a dicotomia sujeito-objeto do conhecimento, tendo em vista a experiência do outro cujo sentido é desconhecido e, justamente por isso, pede para ser interpretado. É uma operação que exige dos intérpretes um equilíbrio dinâmico entre dois campos - a psicanálise e a cultura - análogo ao do acrobata na corda cuja atividade acontece entre a terra e o céu, no espaço e no tempo abissais, abertos para ele tal como se tornou visível numa obra de Paul Klee, à qual aludimos de modo emblemático na capa deste volume. Pressupondo toda uma tradição construtiva como retaguarda, que de forma alguma substitui as suas proezas, a operação realizada pelo analista-acrobata é criativa e pode ser vista em trabalhos de muitos psicanalistas contemporâneos. Por exemplo, entre os argentinos, considerando-se questões psicossociais, éticas e políticas, cabe lembrar os trabalhos de Silvia Bleichmar em que teoria e clínica se mantêm em permanente diálogo, definindo-se aquela operação como um dispositivo analisador da cultura; paralelamente, entre os franceses, quando a operação se mostra uma perspectiva engajada no tocante às relações entre psicanálise, literatura e artes visuais, há nomes expressivos: André Green, Jean-Bertrand Pontalis e Julia Kristeva; assim como entre ingleses, norte-americanos e italianos, Christopher Bollas e Vicenzo Bonaminio também podem ser considerados importantes referências, quando se trata de pensar clinicamente a cultura e, inversamente, analisar a presença encarnada da cultura na clínica. Mas, antes dessa expansão, em alguns escritos de Freud, pensador da cultura, a presença dessa tendência crítica já pode ser percebida. A propósito, é preciso lembrar que se cabe à psicanálise a possibilidade de construção metapsicológica, essa perspectiva se cumpre a partir do pensamento elaborado num campo ambíguo, não apenas teórico-conceitual, mas também lugar de uma prática - a prática clínica. Então, tendo em vista a ambiguidade desse campo, sugerimos aos leitores o exercício acima mencionado, ou seja, realizar a leitura dos artigos procurando identificar criticamente as tendências presentes nos modos com os quais os autores se aproximam dos temas e objetos por eles escolhidos. Nessa medida, imaginamos que o trabalho do leitor poderá ser agradável, lúdico e produtivo.

 

REFERÊNCIAS

Bosi, A. (1988). Céu, inferno. Ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Ática.         [ Links ]

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