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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo jul./dez. 2017

 

ENTREVISTA

 

Psicanálise no Japão

 

 

Osamu Kitayama

 

 

AMF - Primeiramente, gostaríamos de agradecê-lo por seu tempo e por nos receber aqui hoje. Nós fazemos parte da Associação de Membros Filiados ao Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), e gostaríamos de saber, como é a formação de analistas no Japão?

Osamu Kitayama - É muito semelhante ao que vocês têm aqui, porque temos que seguir a regulamentação da IPA. Nós temos que fazer algumas concessões porque nossos pacientes não vêm até nós e não se expõem facilmente, são muito reservados. Eles se sentem envergonhados de mostrar suas fragilidades ou sua privacidade para um estranho, de modo que depende daqueles interessados em se tornar psicoterapeutas ou psicanalistas escolher qual tipo de psicoterapia eles vão praticar no Japão. Se que-rem ser psicanalistas qualificados, eles devem fazer uma escolha com o mínimo de concessões e devem saber que é muito difícil receber pacientes, pois a ideia de psicanálise é muito ocidental.

Para vocês terem uma ideia, atualmente nós temos 30 psicanalistas qualificados na Sociedade Psicanalítica Japonesa (JPS) e 25, talvez 30, psicanalistas em formação, de maneira que há, ao todo, 60 pessoas na Sociedade. Existe uma outra organização, a Associação Psicanalítica Japonesa (JPA), que não faz parte da IPA, e que tem 2.600 membros. Embora essas pessoas não recebam um treinamento sistematicamente regulamentado, elas se interessam por psicanálise, leem Freud e algumas praticam psicoterapia, geralmente uma vez por semana.

AMF - A JPS utiliza o modelo Eitingon com análise didática quatro vezes por semana por cinco anos?

OK - Sim.

AMF - E no Japão isso é caro?

OK - Devo dizer que tudo na psicanálise é caro e leva tempo, de forma que se trata realmente de um compromisso. Mas eu aprecio muito esse compromisso, porque não acho que ele seja uma simples questão de adaptação, é uma maneira de viver, como eu sempre insisto.

AMF - E quem são os psicanalistas em formação lá? Aqui no Brasil somos, na maioria, médicos ou psicólogos.

OK - Nós aceitamos apenas médicos e psicólogos clínicos.

AMF - E entre os 60 membros da JPS, quantos são mulheres?

OK - Neste momento, entre os 30 psicanalistas qualificados, há duas mulheres: uma psicóloga e uma psiquiatra. Mas entre os psicanalistas em formação há dez mulheres. O número está crescendo e isso me agrada, porque a heterogeneidade é importante, nós temos que ter um ambiente composto por diferenças, justamente como era o grupo que circundava Freud em Londres - Strachey era jornalista, Melanie Klein era mulher e não era acadêmica, Winnicott era pediatra. Eles eram uma mistura e isso foi muito criativo.

AMF - Por que o número de membros da JPA é tão superior ao da JPS?

OK - Acredito que seja porque a JPA não tem um sistema regulamentado de treinamento psicanalítico. Antropológica ou historicamente falando, nós, psicanalistas, estamos tirando o trabalho dos nossos monges, dos professores, ou dos mais velhos, que costumavam cuidar das pessoas com problemas mentais no Japão. Desde que abrimos nosso país, as pessoas começaram a se mudar de uma cidade para outra - até então, não deixávamos a terra onde nascíamos e crescíamos, éramos camponeses, enquanto vocês, ocidentais, eram caçadores e se deslocavam em busca de algo para comer. Agora estamos nos ocidentalizando e também nos deslocamos e então precisamos de alguém com quem possamos falar sobre os nossos problemas. Trata-se de uma grande mudança e, por isso, de uma mudança lenta. Acredito que venha daí a diferença entre as duas opções - os antigos e os novos.

AMF - Você diria que o contato com o outro, com o estrangeiro, faz as pessoas procurarem a psicanálise?

OK - Sim, a ideia de encontrar o terceiro ou de encontrar o outro é muito nova para nós, queremos algo novo, algo desconhecido a ser descoberto dentro e fora, e isso é bom. Eu particularmente estou acostumado a isso, me considero ocidentalizado - confesso que os japoneses podem me achar um pouco estranho, encontrando com vocês e conversando assim, sem me envergonhar. De maneira geral, os japoneses não conhecem nem se encontram com desconhecidos ou com estrangeiros, já que normalmente nascem e morrem no Japão e só conhecem pessoas da mesma comunidade. Como disse antes, somos camponeses, não temos que sair das nossas terras.

AMF - Você diria que os psicanalistas em formação pela JPS são ocidentalizados também?

OK - Do ponto de vista intelectual e do discurso, sim. Claro que, como analista didata, eu sei o que acontece por baixo da superfície, mas é muito difícil saber como ou em que medida eles são ocidentalizados, já que por trás das máscaras tudo ainda é muito japonês. Mas na superfície eles são ocidentalizados, eles parecem ocidentalizados.

Se vocês vierem para o Japão, vão notar que todas as meninas nas ruas são americanizadas, mas se entrarem em suas casas verão que elas são muito japonesas. É esse o ponto - na vida privada, a maneira como se vive ou como se dorme nos quartos é muito cultural e muito diferente do que acontece aqui. No Japão, nós dormimos todos juntos, com as crianças no quarto, de tal forma que é sempre um desafio, ou mesmo um milagre, que os pais tenham relações sexuais. Nós temos esse segredo: como ter relações sexuais com as crianças no quarto.

AMF - Até que idade elas ficam no quarto dos pais?

OK - Em média até os sete anos, quando começam a frequentar a escola primária. E, se isso não mudou, então ainda somos muito japoneses.

AMF - Às vezes temos a impressão de que os japoneses têm uma "maneira certa" de fazer as coisas e de que isso garanta alguma felicidade ou contentamento. Isso de fato acontece?

OK - Nós temos dois parâmetros - a superfície e a profundidade. Na verdade, como Freud apontou, nós todos temos dois parâmetros, o social e o privado. Dentro, temos os desejos, o drive, a ansiedade; fora, temos que ser muito realistas. Contanto que vocês vejam os japoneses na superfície, dirão que eles são felizes, que estão adaptados e que não costumam reclamar; mas talvez por dentro sejam altamente inibidos ou envergonhados, como eu disse. Isso é muito importante, sem a psicanálise não podemos entender o povo japonês porque não chegamos às profundidades, e temos que chegar, temos que ver a face por trás da máscara.

AMF - Você diria que há uma psicanálise japonesa?

OK - Esse é outro ponto muito importante, porque a sua sociedade é bastante heterogênea, a diversidade é respeitada, vocês têm até uma comunidade japonesa no Brasil. Essas são características do que acontece aqui e talvez sejam características importantes para a psicanálise também. A psicanálise tenta achar algum tipo de linguagem comum entre nós, porque por baixo da superfície nós somos todos iguais, mas na superfície, que é sintomatológica ou cultural ou geograficamente diferente, somos diferentes, porque temos que nos adaptar à realidade da sociedade para sobreviver, temos que estar de acordo com a natureza e com tudo o que vem de fora. Então devemos começar de fora para dentro, começar pela diferença para então acharmos algo comum.

AMF - Considerando a sua fala sobre vergonha e resistência à Psicanálise, quem são os pacientes que procuram análise no Japão?

OK - Os pacientes gravemente doentes, aqueles (como apresentei ontem em minha conferência na SBPSP) hospitalizados e às vezes muito psicóticos. Pessoas neuróticas comuns não vêm até nós porque geralmente se queixam mais de problemas físicos do que psicológicos. Por isso eu tenho que promover fortemente a psicanálise e por isso estou me defrontando com a resistência cultural. Mas tenho que fazer isso, gosto de fazer porque a psicanálise é muito importante; e é justamente por isso que ela sofre resistência por parte das pessoas comuns.

AMF - Como se deu o seu contato com a Psicanálise?

OK - Esse foi um passo muito significativo para mim. Eu era músico e meu hobby era compor; eu fazia parte do movimento de música folk contemporânea que veio da América e do qual Bob Dylan fazia parte, entre outros. Eu me sentia encorajado pelos heróis folk a fazer as minhas próprias músicas, porque até então a nossa banda tinha que tocar músicas antigas feitas por outras pessoas. Feliz ou infelizmente, nós tivemos vários hits e fizemos bastante sucesso, nos tornamos poderosos porque nossa geração era muito grande, havíamos nascido depois da Guerra Mundial. Apesar dos hits, eu não me sentia confortável na indústria musical, era tudo muito capitalista e, além disso, minha principal razão para desistir daquilo era a falta de liberdade para evitar repetições e tocar o que eu queria. Assim, quando eu me formei médico, decidi ir para o exterior e deixei tudo para trás. Fui para Londres e, chegando lá, comecei meu treinamento. E a história é essa.

AMF - Por meio da música?

OK - Sim, acho que sim. Eu estava em conflito entre a música e a medicina, tocar repetições ou ser criativo e trabalhar. Havia esse grande conflito, um dilema. Eu estava dividido e cheguei a essa solução - comecei a ler Winnicott e suas ideias pareceram muito boas para mim porque enfatizavam o brincar e a criatividade, e [ensinavam a] viver por meio do dilema. Eu gostei muito desse conceito, pensei que tinha achado uma resposta: você deve viver por meio do dilema para estar integrado ao futuro. O dilema está sempre aqui, dentro de mim. Por exemplo, eu tenho sempre meu "tradutor interno" funcionando, fazendo interpretações, meu lado superficial falando inglês e o lado mais profundo da minha personalidade falando japonês. E meu "tradutor" está sempre trabalhando arduamente, experimentando muitas coisas que se perdem na tradução.

AMF - E provavelmente você não está somente traduzindo a língua, mas também a cultura.

OK - É isso mesmo. Mas é isso que me interessa, sem esse esforço eu não sobrevivo. É doloroso e exaustivo, mas eu tenho que fazer isso, eu tenho que viver isso porque tudo isso começou na minha infância. Eu cresci diante da estação de Kioto, onde os soldados americanos mantinham seu hotel. Nosso país estava completamente derrotado. A primeira frase que eu falei em inglês foi "give me chocolate", enquanto eu corria atrás do jipe dos soldados. Eu lembro claramente. O dilema estava ali - meus pais ficavam muito chateados por eu fazer aquilo, falar inglês, e eu entendo como eles se sentiam, pois dentro de mim há esse lado japonês, que pertence a algo muito japonês. Mas a minha superfície parece ainda estar correndo atrás de algo muito americano ou ocidental.

Porque a cultura que os soldados trouxeram, inclusive a música, era tão viva, e a cultura japonesa estava quase morrendo depois da derrota. Então vocês veem, esse é o meu destino.

AMF - Ou seja, trata-se de quem você é, mais do que do que você faz.

OK - Exato, é uma questão de ser, mais do que de fazer. E eu preciso disso constantemente.

AMF - Você considera importante um psicanalista em treinamento ter contato com outras culturas ou viajar pelo mundo?

OK - Ah, sim. O fato de vocês me encontrarem aqui faz parte desse contato e é isso que eu pessoalmente quero: estar diante da estação de Kioto e encontrar soldados americanos e também viver com meus pais - esse tipo de mistura. Para ter algo novo precisamos de uma troca psicológica entre nós, temos que nos encontrar e nos misturar e produzir alguma coisa nova no final. É uma repetição produtiva e é por isso que queremos encontrar outras pessoas. É disso que eu gosto, é o que eu tenho feito desde a minha infância, tenho conhecido pessoas de outros lugares e produzido algo criativo. E apesar de não saber se tenho tido sucesso nessa empreitada, certamente tenho gostado muito dela.

AMF - Sobre o objetivo da psicanálise no Japão... Geralmente dizemos que nosso objetivo aqui é algum tipo de emancipação. Na cultura da vergonha, a vergonha deve ser "curada"? Esse seria um objetivo?

OK - Ótima questão. Talvez eu possa definir como liberdade de pensamento. E, para ter essa liberdade, temos que falar. Há tantos tabus na cultura da vergonha, é uma vergonha conversar, é esse o ponto, então a vergonha continua se não podemos conversar na frente do outro ou do estranho, que aqui significa o intruso. Talvez falando possamos dar mais um passo em direção à liberdade de pensamento.

AMF - E o divã ajuda nisso?

OK - Sim. Para ser franco, o divã funciona porque, ao usá-lo, nós não temos que sentir tanta vergonha, talvez não tenhamos que sentir tanto medo das pessoas lá fora. Podemos ficar isolados com uma outra pessoa em quem confiamos. Nesse sentido, poderíamos nos libertar da vergonha em relação ao outro, poderíamos esquecer os olhos perscrutadores voltados para nós. No divã, olhar o espaço vazio na nossa frente, ouvir as palavras do analista - eu sinto que essa experiência é única para o povo japonês também, porque no Japão estamos sempre rodeados por muitas pessoas, não há espaços vazios.

AMF - Você poderia falar um pouco sobre o conceito de "Amae" e do sentido de interdependência para você?

OK - Nós apreciamos a interdependência, essa expectativa não verbal, essa necessidade a ser suprida por alguém em termos de expectativa, desejos etc. É uma necessidade a ser suprida em muitos aspectos e que não é muito verbalizada, por isso temos o conceito de "Amae" para defini-la. Esse conceito é altamente apreciado, mas é ambíguo, significa duas coisas ao mesmo tempo: doçura e dependência. É aceitável que pessoas consideradas normais se envolvam com essa psicologia Amae porque é agradável e é gostoso estar nesse estado de regressão parcial ou transicional, mas continuar nesse estado para sempre é patológico e pode levar a pessoa a se tornar gananciosa, ciumenta ou invejosa. E esse é um problema no Japão, pois há muitos jovens que estão se retirando da sociedade para permanecer em casa sendo cuidados.

AMF - "Amae" em português soa como "a mãe".

OK - Sim, eu sei. E também soa como "amor","amigo","amante". Na Coreia, mãe é "umma". O som "m" é um tipo de expressão oral da dependência infantil em várias culturas.

AMF - Na sua conferência no congresso da IPA em Buenos Aires, você falou que adultos que permanecem vivendo a psicologia Amae são cuidados por suas mães.

OK - Sim, nós consideramos bastante normal que as mães se sintam responsáveis por esse cuidado enquanto elas puderem. E esse é um ponto interessante, porque nós sentimos que devemos muito às mães que cuidam. Se as mães morrem, nós temos que intervir, mas não podemos dizer a elas para pararem os cuidados.

AMF - Então isso estaria associado a uma diferença no complexo de Édipo? Considerando que a função paterna no Édipo ocidental é fazer um corte, a função paterna na cultura japonesa seria diferente?

OK - Creio que sim, que se pode dizer isso. É diferente. Estamos na linha da interdependência e somos parte disso, enquanto pais também são. Porque tufões, terremotos e tsunamis são mais assustadores para nós do que o pai ou do que Deus ou qualquer outra coisa. Esses fenômenos naturais são invasores que se abatem sobre nós quase todos os anos e esse é um ponto crucial dessa forte dependência interpessoal. Portanto, em muitos aspectos, nós estamos fazendo psicoterapia orientada pela natureza - nos sentimos unidos com a natureza, com a mãe natureza ou com as mães propriamente ditas, mas os tufões estão vindo para fazer o corte; nós, pais, temos que lutar junto com a mãe e a criança contra a natureza, nós somos todos aliados contra a natureza.

AMF - Então o conflito não se dá dentro da família?

OK - Não, nós o projetamos na natureza e, assim, pai-natureza e mãe-natureza fazem um triângulo edípico conosco, o que é muito interessante.

AMF - Mas a metapsicologia é a mesma?

OK - Sim, e o entorno é diferente. Não é interessante? É por isso que eu digo se tratar de psicanálise orientada pela natureza ou antropologicamente.

AMF - Para encerrarmos, você poderia falar um pouco do seu livro sobre tabu, Don't look?

OK - Claro. No Japão, é muito possível que vejamos a relação sexual entre nossos pais, a cena primária, já que dormimos todos no mesmo quarto. Mas, geralmente, desde que se pense nisso com naturalidade, trata-se de motivo de piada. No entanto, se você é exposto a isso de maneira traumática ou muito excludente, pode ser muito assustador, como uma experiência de abandono. De certa forma, as relações sexuais parentais são proibidas de se ver ou olhar, há uma proibição do olhar. A mãe está conectada com o pai e com a criança ao mesmo tempo, então essa imagem deve ser muito difícil de ver - a mãe sente vergonha de manter dois relacionamentos ao mesmo tempo, evitando a triangulação edípica, tentando apaziguar as coisas. Há algumas imagens no Japão que mostram a mãe mantendo relações sexuais com o pai e, ao mesmo tempo, tomando conta do menino ou da menina no mesmo quarto. Trata-se de algo risível quando se olha para isso como adulto maduro, mas para algumas crianças é desastroso e potencialmente destrutivo da psicologia Amae.

 

 

Entrevista realizada em 01/08/2017
Entrevistadores / membros filiados - SBPSP:
EDUARDO DE SÃO THIAGO MARTINS
OLÍVIA PALA FALAVINA
PAULA RAMALHO DA SILVA
RAFAEL PRIVATTO TINELLI

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