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versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo jul./dic. 2017

 

EM PAUTA | INTERPRETAÇÕES DA CULTURA

 

As contradições da sobrevivência humana1

 

Contradictions of human survival

 

 

Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho

Membro efetivo e analista didata da SBPSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tendo como base as investigações psicanalíticas sobre a fase oral canibalística, este artigo procura abordar as contradições antropológicas, psicopatológicas e estéticas do canibalismo. Para tanto, discute o filme de Peter Greenaway, O cozinheiro, o ladrão, sua esposa e seu amante, o drama de Ugolino della Gherasdesca, no Canto XXXIII do Inferno, na Divina Comédia, e o "canibalismo olfativo" de Jean Baptiste Grenouille no livro O perfume, de Patrick Suskind. Apresenta, finalmente, um resumo das teorias do psicanalista Volfgango Lusetti sobre a ideação predatória-persecutória como modelo básico do comportamento humano.

Palavras-chave: Fase oral canibalística. Canibalismo. Ideação predatório-persecutória.


SUMMARY

Taking as background psychoanalytical investigations about the oral-cannibalistic phase, the article aim is to stress the contradictions of cannibalism in anthropological, psychopathological and aesthetic terms. It discusses Peter Greenaway's film The cook, the thief, his wife and her lover, Ugolino's drama in XXXIII Canto of Hell in Dante's Divine comedy and the "olfactory cannibalism" in the book The perfume of Patrick Suskind. It mentions, finally, a summary of psychoanalytical theories of Volfgango Lusetti about predatory-persecutory ideation as a basic model for human behavior.

Keywords: Oral-cannibalistic phase. Cannibalism. Predatory-persecutory ideation.


 

 

1. Introdução

Por "sobrevivência humana", quero me referir a qualquer postura, procedimento ou artifício que vise defender, proteger ou preservar a vida. A sabedoria popular está cheia de enunciados voltados para essa questão. Quando se diz "Entregue os anéis para preservar os dedos", estamos fazendo uma advertência de que é preferível perder uma batalha a perder a guerra; quando ponderamos que "quem pode manda e quem é sensato obedece", estamos reconhecendo que a consciência dos próprios recursos, ou melhor, das próprias limitações, é uma arma modesta, porém, poderosa.

Uma das maiores lições que aprendi em minha vida de psicanalista foi que o medo é uma emoção essencial e natural, tão essencial quanto se alimentar ou respirar. Qual seria, então, o corolário prático dessa lição? O de que o benéfico é estarmos em contato constante com nossos medos, pois, afinal, eles são a bússola imprescindível que possuímos para nos proteger dos perigos: o que é prejudicial, e às vezes até desastroso, é "ter medo de ter medo".

Em nossas vidas cotidianas estamos submetidos a uma enxurrada de normas e regras, estamos vulneráveis a doenças e a desastres das mais variadas naturezas, emocionais, financeiros, sociais, profissionais e assim por diante. E, ainda por cima, last but not the least, desde que nascemos, estamos assombrados por um personagem desconhecido que mora em nossas entranhas: a morte. O grande dramaturgo, Samuel Beckett, dizia que o destino humano podia ser resumido por um neologismo implacável: womb-tomb, ou seja, útero-tumba.

Diante dessas perspectivas, como nos posicionar? Não pretendo dizer que a única solução é a psicanálise. Mas, também, não podemos desconsiderar sugestões práticas como aquela do psicanalista Wilfred Bion, que nos alertava sobre o quanto podemos aprender a partir de nossas experiências de vida. Talvez, um dos aprendizados mais singelos e úteis, que a vida nos oferece, tenha sido posto em palavras por Sêneca, um notável pensador latino: "O destino arrasta quem se opõe e guia quem consente".

Foi assim que, após ter sido duas vezes assaltado em minha casa, aprendi o óbvio: nós humanos somos espécimes comuns do reino animal, apesar de pretensiosamente nos autodenominar homo sapiens. Como tal, temos de admitir, mesmo a contragosto, que em nosso DNA estamos fadados a funcionar como presas e/ ou predadores. Freud já dizia: homo homini lupus, o homem é o lobo do homem. Dei-me conta, então, de que o único jeito de me proteger, na condição de presa, seria sendo uma presa competente, aquela que não se escandaliza com a presença do predador, ao contrário, procura conhecê-lo melhor para, se necessário, induzi-lo a me causar o menor dano possível. Como fazer isso? Agradando-o, em vez de hostilizá-lo, mostrando que eu já estava preparado para sua chegada, convencendo-o de que a melhor solução para o nosso caso seria ele obter algum lucro material e eu ser reconduzido, sem maiores danos, à minha rotina de vida.

O assunto é vasto e polifacetado, por isso, para evitar dispersões, proponho levá-lo adiante focando uma condição instigante do ponto de vista psicanalítico, o canibalismo: seria prático se a presa, como defesa, pudesse engolir o predador, principalmente, se fosse um predador da sua própria espécie. Mas seria vantajoso? E se, como resultado dessa alelofagia, ela se transformasse num predador implacável?

 

2. A luta pela sobrevivência

Há quem considere o canibalismo como a mais obscena das ações que um ser humano possa praticar em relação a um semelhante. A palavra canibal é uma variante do espanhol caríbal, termo do idioma arawan, falado pela tribo dos caraíbas, descoberta por Colombo em 1492: estima-se que, ao lerem sua carta, teriam trocado o r por n. O termo caraíba significa selvagem, corajoso ou audacioso, e canibalismo designa a prática animal ou o costume humano (aí chamado de antropofagia) de ingerir partes do corpo de indivíduos da mesma espécie.

Sabemos que machos de alguns insetos, como os mantódea e os aracnídeos, são mortos e ingeridos pelas fêmeas após a cópula, prática também de serial killers que se aproveitam sexualmente das vítimas, comendo-as após matá-las (assunto explorado em 1991 por Jonathan Demme em seu filme O silêncio dos inocentes). O fato é que, transcendendo o universo animal, selvagem e psicopatológico, a relação entre alimentação e sexualidade persiste no mundo dito civilizado. Em termos concretos, a propalada prática de selvagens ingerirem a carne dos inimigos mortos para incorporar sua coragem ou habilidades contribuiu para a instalação de procedimentos alegóricos, como a Eucaristia, na teologia cristã, ou mesmo o Manifesto antropofágico, de Oswald de Andrade.

Do lado da psicanálise, Karl Abraham, talvez o mais importante colaborador de Freud, ao estudar a melancolia demonstrou que, em alguns casos em que o paciente recusa-se a se alimentar, ele estaria se punindo por seus impulsos canibalísticos, os quais, no entanto, comportam um aspecto positivo, já que sua base operacional seria o processo de incorporação, protótipo da identificação. Na fase oral canibalística, por ele descrita, há um desejo inconsciente de amar o objeto amoroso devorando-o, o que acabaria o destruindo em vida. Ouçamo-lo:

Na etapa da atividade bucal de mordida, o objeto é incorporado e sofre a destruição. Basta olhar uma criança para avaliarmos como é intensa sua necessidade de morder e perceber como a necessidade de alimentar e a libido se acham misturadas. Esse é o estágio das pulsões canibais. Caso a criança sucumba aos encantos do objeto, ela sofre o risco ou mesmo se sente obrigada a destruí-lo. A partir deste ponto, reina a ambivalência na relação do eu com o objeto. (Abraham, 1927)

De qualquer modo, é preciso diferenciar a antropofagia de contingência2 da antropofagia ritualística ou alegórica3 e mesmo da antropofagia psicopatológica. Jean de Léry, referindo-se à antropofagia dos nossos tupinambás, faz, por exemplo, uma interessante ressalva: "Mas não comem a carne, como poderíamos pensar, por simples gulodice, pois embora confessem ser a carne humana saborosíssima, seu principal intuito é causar temor aos vivos"4 (Almeida, 2002). Outros autores associam o exocanibalismo, ou seja, a ingestão dos inimigos feitos prisioneiros, a um ato de apoderamento das qualidades de coragem ou bravura: era o caso da Polinésia, onde os vencidos eram comidos, após serem cozidos em grandes fornos de barro, para absorver sua energia vital ou mana (Edwards & Edwards, 2013).

 

3. Visões artísticas

O canibalismo, para nós essencialmente repugnante, não passou desapercebido aos artistas, como Jonathan Swift, que, em sua obra satírica A modest proposal, sugeriu que essa prática poderia ser uma solução para a fome dos pobres irlandeses. O filme de Peter Greenaway (1989), O cozinheiro, o ladrão, sua esposa e seu amante, entrelaça de forma magnífica a oralidade com a sexualidade, culminando com a cena dramática do ladrão sendo obrigado, sob ameaça de um revólver, a comer o amante da mulher que ele tinha assassinado e que o cozinheiro preparara como uma iguaria macabra.

Neste melodrama contemporâneo, centrado no tabu de mais difícil digestão para a mentalidade humanística, que é o canibalismo, a ação central captura o expectador visceralmente, obrigando-o a se pronunciar a respeito de sua reação gustativa: apreciação ou repugnância. As cenas mais chocantes da história são a inicial e a final, quando nos confrontamos com dois exemplos de deglutição forçada: seres humanos são obrigados a ingerir excrementos e carne humana, sem qualquer escapatória além da morte.

Para Melanie Klein, o núcleo do superego deve ser rastreado na incorporação parcial que ocorre durante a fase canibalística do desenvolvimento: as primeiras imagos da criança recebem o imprinting desses impulsos pré-genitais. A própria criança deseja destruir o objeto libidinal mordendo-o, devorando-o e estraçalhando-o, o que gera ansiedade, já que o despertar das tendências edípicas é seguido pela introjeção do objeto, sentido como uma fonte de retaliação. A criança teme, então, uma punição correspondente à ofensa, o superego vira algo que morde, devora e estraçalha.

 

4. grenouille, o canibal olfativo

A ficção nos oferece peças mais sutis em que a estética funciona como disparador de vivências e emoções contraditórias. É o caso do excelente livro de Patrick Süskind, O perfume, que fez grande sucesso na década de 1980, tendo sido, inclusive, transformado em filme.

Trata-se da história de um pária social, Jean Baptiste Grenouille, nascido em meio à imundície de um mercado parisiense, em 17.07.1738, entre enxames de moscas e vísceras de peixe. Sua mãe, uma jovem tísica e sifilítica, já fizera quatro abortos e, por isso, foi condenada e executada, deixando como herança maldita este quinto filho que teimara em sobreviver. Ele, no entanto, logo revelou-se um ser revoltado e insuportável, gerando em todos aqueles encarregados de acolhê-lo, como amas de leite, religiosos beneficentes e mães de aluguel, sentimentos de repulsa e rejeição. Em contrapartida, mostrou-se incrivelmente resistente às intempéries da vida, às doenças, aos alimentos deteriorados e à falta de amor, a ponto de ser comparado a uma bactéria resistente ou a um carrapato apto a viver com uma gotinha de sangue sugado no ano anterior.

Desde cedo, essa aberração da natureza demonstrou-se um exímio "farejador do mundo", seu narizinho insolente, investigando tudo através dos cheiros, inclusive os cantos mais ocultos das almas das pessoas: com seis anos, ele já formara um formidável vocabulário de odores que ultrapassava enormemente a pobreza da linguagem. Ao longo da história, nosso personagem foi se aproximando humildemente de alguns mestres perfumistas, impondo a todos eles a excepcional qualidade de sua sensibilidade olfativa.

Aos poucos, Grenouille transformou-se num ser grotesco: um nariz possuidor de um apurado senso estético, porém, implantado num corpo deformado e manipulado por uma alma desprovida dos sentimentos de amor e de ódio. Um dia, passeando distraidamente ao cair da noite pela cidade, em busca de novos cheiros, foi atraído por um odor que o puxou hipnoticamente até um jardim onde uma jovem de incrível beleza descascava nectarinas: o cheiro de seu suor era tão fresco quanto a brisa do mar, a oleosidade dos seus cabelos tão doce quanto a resina de amêndoas e o seu sexo rescendia a lírios-d'água. A conjunção desses componentes resultava num perfume divino, fazendo-o sentir que, sem a posse desse aroma, sua vida perderia todo o sentido.

Aproximou-se, então, sorrateiramente pelas costas da jovem e a estrangulou mecanicamente com o intuito alucinado de apossar-se daquela fragrância mágica: deitou-a no chão, rasgou seu vestido, mergulhou seu rosto na sua pele, farejando cada palmo do seu corpo, e, em êxtase, após sugar todo seu cheiro, sentiu-se como um recém-nascido. Deixara de ser um animal repugnante e encontrara o rumo de sua vida futura, a de ser o maior perfumista de todos os tempos graças a um dote que poderíamos chamar de "canibalismo olfativo".

A partir desse momento, duas dúzias de virgens angelicais foram mortas misteriosamente na cidade, até que, finalmente, Grenouille foi descoberto e condenado à morte em praça pública. Acontece que, ao longo de seus experimentos, ele foi depurando uma essência para uso próprio com alto teor afrodisíaco, algo que penetrava no íntimo das pessoas, atraindo-as de modo inapelável. Em resumo, ele criara uma espécie de "sedução canibalística". Como último desejo, pediu para se perfumar com essa essência e vestir-se como um lorde, de modo que, ao assomar no cenário da execução trazido por uma carroça, um milagre apoderou-se das milhares de pessoas ali presentes.

Todos passaram a considerar o homem de jaquetão azul o ser mais bonito, atraente e perfeito que se pudesse imaginar: às freiras ele aparecia como a salvação em pessoa; aos adeptos de Satã, como o luminoso senhor das trevas; aos esclarecidos, como um ser supremo; às mocinhas, como um príncipe encantado; aos homens, como a cópia ideal de si próprios. Mas, além disso, aquele perfume afrodisíaco atingiu perfunctoriamente o centro erótico de todos os circunstantes, inflamando seus desejos.

Apesar de ele ter aprendido a odiar as pessoas, elas agora o adoravam, pois só percebiam sua máscara odorífera, o seu perfume roubado, garantindo suas maiores fantasias narcisistas: embriagada por um êxtase dionisíaco, a multidão passou orgiasticamente a se comprazer com uma sexualidade desenfreada. Mas, ao final, ainda insatisfeitos, aquela turba, qual hienas, lançou-se sobre aquele anjo demoníaco, esquartejando-o e arrastando pedaços de sua carne para devorá-lo e se embeberem de seu mágico poder.

Chegamos, assim, ao infausto fim do canibal olfativo, o infeliz sobrevivente que, após atingir os píncaros da glória, teve o mesmo fim de suas vítimas, sendo punido com a lei de Talião, como as almas sofredoras no inferno de Dante. Pois foi nesse inferno que Dante encenou o drama que acompanharemos a seguir, o de Ugolino della Gherardesca, um nobre gibelino de Pisa.

 

5. O drama de Ugolino

Um dos mais famosos episódios da Divina comédia é o suposto canibalismo de Ugolino della Gherardesca, que praticamente encerra com chave de ouro o Inferno (XXXIII, 1-78). Ugolino (Pisa, 1210-1289), nobre gibelino de Pisa, para manter seu poder, aliou-se a Giovanni Visconti, líder dos guelfos. Exilado por intrigas políticas, associou-se a Charles D'Anjou impondo a Pisa uma humilhante derrota. Após vários episódios de traições, assassinatos e acordos escusos, Ugolino acabou se indispondo com o arcebispo de Pisa, Ruggieri degli Ubaldini, que, em 1288, incitou a população contra Ugolino prendendo-o na Torre della Muda. Junto com ele foram presos seus dois filhos, Gaddo e Uguccione, e dois netos, Nino e Anselmuccio: todos morreram confinados na torre em 1289, já que Ruggieri, então transformado em Podestá, teria os deixado morrer de fome, trancando a porta e jogando a chave no rio Arno.

Valendo-se de seus dotes dramatúrgicos, ao chegar à Antenora, o círculo gelado onde penavam os traidores da pátria e de ideologias chorando lágrimas de gelo, Dante vislumbra duas cabeças em que a nuca de uma estava sendo ferozmente mordida pela boca da outra, a qual, em seguida, ainda usava os cabelos do agredido como guardanapo. Impactado por tal fúria, ele indaga a identidade do agressor e o motivo do seu ódio: fica sabendo tratar-se do conde Ugolino, que se apresenta portador de intensa mágoa contra seu desafeto, o arcebispo Ruggieri. Hesita, no entanto, em contar-lhe sua desgraça, temendo não suportar reviver tanta dor. Diz ele: "Queres fazer-me reviver a dor atroz que me oprime, tão grande que antes de narrá-la me tortura! Mas, se minhas palavras forem semente de infâmia para o traidor que procuro consumir, terás reunidas lágrimas e palavras" (Alighieri, 2009, p. 102).

Ugolino, a seguir, informa Dante ter sido vítima de um suplício cruel e inédito, preparando o terreno para proferir uma retórica magistral em defesa de si mesmo. Visando um impacto inicial, conta ter sido encerrado na Torre da Fome, de onde pôde observar "per il suo forame", a passagem de várias luas. A maioria dos tradutores traduz forame por fresta, mas hoje o termo é usado em medicina para designar a abertura óssea dos vertebrados, por onde passam estruturas nobres como a medula espinal, sugerindo que a torre em que ele fora preso seria uma alegoria de sua própria caixa craniana.

Pois foi no interior dessa "caixa" que ele produziu um sonho mau, no qual Ruggieri comandava uma feroz caçada de um lobo e suas crias, perseguidos tanto por uma matilha de cães esfaimados quanto por um bando de seus aliados, sedentos de vingança política. Ao final da perseguição, pais e filhos tombaram exangues, uma vez que os raivosos mastins estraçalharam seus flancos sangrantes. Ao acordar percebeu que seus filhos e netos, ainda adormecidos, clamavam por comida, mas, despertando, todos contaram ter sonhado com a própria morte.

Ao olhar para eles chorando e tomado de intensa dor, Ugolino morde de raiva ambas as mãos, e eles, interpretando aquilo como um gesto de fome, dizem-lhe em uníssono: "Pai, sofreremos dor menor se de nossa carne te nutrires. Dela, fostes tu a nos vestir: agora, tira dela o teu sustento" (Alighieri, 2009, p. 103). Por quatro dias, Ugolino sofreu em silêncio aquela agonia até que Gaddo atirou-se a seus pés, murmurando: "Pai, por que não me socorres?" (Alighieri, 2009, p.103), morrendo em seguida. Mais dois dias e toda a sua prole estava morta e, com eles, morreu também sua visão, já que, percebendo-se cego, só pôde encontrar seus corpos buscando-os com as mãos.

Dante encerra, então, o episódio com o verso lapidar:

 

 

Essa última linha, com seu significado ambíguo, ecoa até hoje no ouvido dos dantólogos, arrancando uma proliferação de interpretações. De fato, a tradução comporta algumas sutilezas semânticas que dão pano pra manga. Senão, vejamos: depois, mais do que a dor (ou a mágoa, a tristeza, o sofrimento, o desespero), prevaleceu (ou se impôs) o jejum (ou a fome).

Ora, a frase ambígua sugere esquematicamente duas interpretações: "Fome, não tristeza,provocou minha morte"; ou então: "Fome, mais poderosa que a tristeza, levou-me a comer suas carnes".

Logo após a morte de Dante, duas correntes se formaram, pró e contra a tese do canibalismo, controvérsia que até hoje agita o mundo acadêmico, como atestado pela extensa bibliografia sobre o tema compilada em 1985 por Robert Hollander. A favor do canibalismo, os estudiosos mencionam seu repasto bestial no Inferno, as auras cristológicas que sugerem uma reencenação paródica da Eucaristia, ou então, referências bíblicas em Jeremias (19:8-9) que propõem o canibalismo como a inversão na Terra do banquete celestial, e a concretude de Ugolino interpretando a oferta filial literal e não espiritualmente.

Por outro lado, os que se opõem à leitura canibalística, argumentam que Dante desejava despertar em seu leitor compaixão e não horror; que o emprego do termo jejum e não fome compromete a interpretação e, finalmente, que ela seria revoltante.

Borges, no segundo de seus ensaios dantescos, afirma que a controvérsia é um falso problema oriundo da confusão entre realidade e arte, já que, historicamente, nunca saberemos se Ugolino praticou canibalismo, mas que, estética ou literariamente, o problema poderia ser assim enunciado: "Dante não quis que pensássemos que ele o fez, mas somente que suspeitássemos disso com incerteza e temor" (Borges, 1982, p. 34).

Muitos comentaristas antigos, entre eles Chaucer, simplesmente acreditaram que Ugolino morreu de fome junto com sua prole. Outros até chegam a insinuar que Ugolino criou uma mentira para justificar seus crimes anteriores.

 

6. Um modelo predador-persecutório para o comportamento humano

Volfgango Lusetti, psiquiatra e psicanalista italiano, publicou três livros recentemente, nos quais partiu da premissa de que a ideação predatória-persecutória seria um modelo básico do comportamento humano, tanto na saúde quanto na doença5.

Ao longo destas três obras, O canibalismo e o nascimento da consciência (2008), A predação e o conto de fadas (2010) e O circuito do sofrimento: um estudo evolutivo acerca da loucura (2011), ele aprimora uma ideia polemicamente original: a de que a hipotética força biológica primária do funcionamento mental e da evolução humana não estaria, como postulado por Freud, na sexualidade (ou em sua sublimação), mas na sociabilidade, ou seja, na ação propulsora exercida pela forma mais extrema de agressividade predatória que a vida conhece, ou seja, o canibalismo.

Segundo Lusetti, conceitos freudianos como Eros e Tanatos, libido e recalcamento, em função de sua imprecisão biológica, não se prestariam a nenhuma "falsificação", como proposto por Popper. Por exemplo, o instinto de morte, entendido como tendência à entropia, ao caos e ao inorgânico, não encontraria nenhuma correspondência biológica com a agressividade e com a predação, que, na verdade, defendem a vida e até a ajudam fortemente a selecioná-la e a diferenciá-la.

O "motor primário" na defesa da vida estaria localizado na reprodução não sexuada (a mitose) ou na predação-agressividade (apoptose6). Uma reavaliação não freudiana do papel da sexualidade conferiria a ela uma função anticanibalística: de fato, os instintos canibalísticos dos progenitores da espécie humana ficaram atenuados em função da sexualidade humana ser perene, e porque o ciclo sexual foi substituído pelo menstrual.

A sexualidade, baseada na meiose (uma divisão ao meio que, no limite, aproxima-se da morte), assemelha-se também à mitose porque, em parte, conserva o patrimônio genético, mas também se pareceria com a apoptose, por inovar e perturbar os equilíbrios preexistentes. Assim sendo, no lugar do canibalismo ter-se-ia produzido, primeiramente, uma sexualidade predatória, cujos traços se encontrariam nas perversões sexuais, ou seja, uma forma de sexualidade que teria incorporado a predação canibalística para neutralizá-la, mas que acabou por veiculá-la e repropô-la.

No imaginário americano, duas imagens ganharam extraordinária permanência no século XVIII:

a) Montaigne denunciou a aberração de chamar de selvagem tudo aquilo que era diferente dos usos e costumes europeus. Por outro lado, incensou a imagem do bom selvagem que viveria na Idade de Ouro, na qual se desconhecia a virtude e o vício, ou como disse Dom Quixote, onde os homens ignoravam as palavras seu e meu.

b) Já na Tempestade, de Shakespeare, Próspero mantém uma relação de amor e ódio com Calibã7, tratando-o ora como um escravo venenoso, um demônio bastardo ou um ser disforme; mas em outros momentos, reconhece seus préstimos, ajudando-o a sobreviver naquela ilha tropical inóspita, onde ele chegara como náufrago (Mix, 2015).

No seu Elogio da loucura, Erasmo de Roterdã dizia que todas as coisas humanas têm dois aspectos: por isso é que, muitas vezes, aquilo que à primeira vista parece ser a morte, na realidade, observado com atenção, é a vida.

Em nosso caso, poderíamos indagar qual seria o impulso contraposto ao canibalismo. Acho que isso dependerá da intenção canibal: se o intuito for absorver qualidades positivas que enriqueçam o Eu, sua contraposição poderia ser uma doação desinteressada de bondades, bem ao estilo de Dom Quixote; no entanto, se a intenção for pilhar corsariamente o bem alheio, visando ampliar suas posses ou então meramente destruir esse bem por inveja, sua antítese seria uma espécie de bulimia moral, que viveria vomitando o produto espúrio de suas pilhagens.

Em resumo, o desenvolvimento do ser humano, como evocado poeticamente por Ivan Turguêniev, está na dependência do equilíbrio entre as forças centrípetas do egoísmo e as forças centrífugas do altruísmo, ou na formulação psicanalítica de Bion, entre os impulsos narcis-istas e os impulsos socialistas. Estas duas forças de estagnação e movimento, conservadorismo e progresso, são, em essência, as forças fundamentais da vida.

 

REFERÊNCIAS

Abraham, K. (1927). A short study of the development of the libido, viewed in the light of mental disorders. In Selected Papers (pp. 442-53). London: Hogarth Press.         [ Links ]

Alighieri, D. (1998). A divina comédia (I. Mauro, trad.). São Paulo: 34.         [ Links ]

______. (2001). A divina comédia (H. Donato, trad.). São Paulo: Nova Cultural.         [ Links ]

Borges, J. L. (1982). Nove ensaios dantescos. Lisboa: Editorial Presença.         [ Links ]

______. (1999). Nove ensaios dantescos. In J. L. Borges. Obras completas (Vol. 3). São Paulo: Globo.         [ Links ]

Edwards, E. & Edwards, A. (2013). When the Universe was an island: exploring the cultural and spiritual Cosmos of Ancient Rapa Nui. Easter Island: Hangaroa Press.         [ Links ]

Ferreira de Almeida, M. C. (2002). Tornar-se outro: o topos canibal na literatura brasileira. São Paulo: Annablume.         [ Links ]

Khouri, M. G. et al. (Orgs.). (2004). Leituras psicanalíticas da violência. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Lusetti, V. (2008). Il canibalismo e la nascita della coscienza. Roma: Armando Editore.         [ Links ]

Mélega, M. P. (2014). Resenha de Il circuito della soffrensa: uno studio evoluzionistico sulla follia. Revista Brasileira de Psicanálise, 48(1),214-216.         [ Links ]

Mix, M. R. (2015). América imaginária. Santiago: Erdosain; Pehuén.         [ Links ]

Süskind, P. (2015). O perfume. Rio de Janeiro: Best Bolso.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
LUIZ CARLOS UCHÔA JUNQUEIRA FILHO
Rua Helena, 170/123
04552-050 - São Paulo - SP
tel.: 11 3842-3060

Recebido 08.08.2017
Aceito 12.09.2017

 

 

1 Conferência proferida em Maringá, em 25.08.2017, na abertura do X Encontro das Seções Regionais da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).
2 Lembremo-nos do episódio da queda do avião nos Andes, em 1993, onde al-guns somente sobreviveram se alimentando dos que morreram.
3 Guimarães Rosa, assim descreve os pensamentos de vingança de Riobaldo contra Fulorêncio: "Cá pensei, silencioso, silenciozinho: 'Um dia um de nós tem que comer o outro... Ou, se não, fica assunto para os nossos netos, ou para os netos de nossos filhos'".
4 Sugiro que consulte os desenhos feitos por Theodor de Bry em 1592, que ilustram o relato de Hans Staden sobre este procedimento dos tupinambás.
5 Agradeço a Marisa Pelella Mélega pela indicação destas obras, bem como por sua excelente resenha das mesmas (2014).
6 A apoptose, ou morte celular geneticamente programada, é um tipo de autodestruição celular, comandada por estímulos fisiológicos normais ou por condições patológicas: sua função é calibrar o tamanho dos tecidos e órgãos e remover células envelhecidas ou alteradas, dando lugar a células jovens e sadias. Na mitose há uma divisão dos cromossomos, existentes no núcleo da célula, produzindo dois núcleos filhos com o mesmo patrimônio original.
7 Segundo alguns, anagrama de canibal.

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