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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo July./Dec. 2017

 

LITERÁRIAS

 

"A balada do Velho Marinheiro" do poeta S. Coleridge. Uma leitura crítica de Arthur Hyatt Williams

 

Coleridge's the Rime of the Ancient Mariner. A critical reading by Arthur H. Williams

 

 

Marisa Pelella Mélega

Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se de um texto extraído do capítulo 12 do livro Nevrosi e delinquenza, de Arthur H. Williams. Na leitura do mencionado poema, A. H. Williams depara-se com um criminoso, o Velho Marinheiro, e resolve investigar a biografia de Coleridge. Nessa biografia ele encontra vários elementos que o fazem identificar aspectos do Velho Marinheiro em Coleridge. Segundo A. H. Williams, com a criação desse poema, Coleridge teria elaborado ou sublimado sua tendência homicida.

Palavras-chave: Poema. Coleridge. Tendências criminosas. Elaboração. Sublimação.


SUMMARY

This is a text from chapter twelve of Nevrosi e delinquenza, a book by Arthur H. Williams. When reading Coleridge's poem, A. H. Williams found a criminal, the ancient mariner; he then decides to investigate Coleridge's biography. In it he finds many an element leading him to identify some aspects of the ancient mariner in Coleridge. According to Williams, with the creation of this poem, Coleridge would have elaborated or sublimzed his homicide tendency.

Keywords: Poem. Coleridge. Criminal tendency. Working through. Sublimation.


 

 

Este texto resulta de uma tradução de Marisa Pelella Mélega do capítulo 12 de Nevrosi e delinquenza, de autoria do dr. Arthur Hyatt Williams.

Nesse poema, o dr. Williams depara-se com um criminoso, o Velho Marinheiro, e partindo desse texto resolve investigar a biografia do poeta. Ele encontrou nessa biografia vários elementos que o fizeram identificar aspectos do Velho Marinheiro em Coleridge. Com a criação do poema, Coleridge teria transformado ou sublimado sua tendência homicida.

A seguir, vamos acompanhar o trabalho de crítica literária do dr. Williams.

"A balada do Velho Marinheiro"1 sempre despertou meu interesse. Trata-se de um poema de comunicação imediata e, ao mesmo tempo, uma narrativa muito aguda do crime, do castigo, da inveja, do rancor, da maldade e da expiação. Em minha experiência, alguns assassinos alcançam, durante o tratamento psicoterápico, essa condição, que parece ter estado no mais profundo da alma de Coleridge, o qual, à medida que compunha o poema, cujo tom inicial devia ser alegre, tornou-se cada vez mais absorto e, paralelamente, seu escrito cada vez mais lúgubre.

Colerigde, que não tinha o hábito de terminar suas obras, dessa vez levou a termo um poema de notável importância.

O tema é a culpa e a expiação que se seguem ao assassinato criminoso do "objeto bom", morto sem nenhum motivo plausível, a não ser o de estar em uma atmosfera persecutória e ser interpretado como "objeto mau".

O "objeto bom", no caso do poema em questão, é o Albatroz, que representa a mãe ou os dois seios - conforme seja considerado como objeto total ou parcial. Os homens da tripulação - que num certo nível simbolizavam os irmãos e, num nível mais profundo, partes do Velho Marinheiro - morrem após declararem estar de acordo com o fato de que a tal ave era de mau agouro e trazia azar.

Bravo disseram-me matar tais aves.
Que trazem a neblina e a bruma
2.

Até o momento em que discordaram dele e o expulsaram do grupo, tudo esteve bem e nada de grave aconteceu. O remorso e a expiação permitiram ao Velho Marinheiro elaborar, em parte, seu terrível crime, que conduzira à morte a tripulação inteira, enquanto a culpa e o remorso não elaborados provocaram-lhe distúrbios obsessivos e compulsivos acompanhados por crises de angústia, durante as quais ele tinha de encontrar uma pessoa adequada que lhe servisse de depósito de suas projeções e a quem pudesse contar sua história. A catarse subsequente mitigava o sofrimento do Velho Marinheiro, mas somente por um breve período: de fato, o que ocorria era simplesmente uma maciça projeção, no interlocutor, de seus sentimentos. Algo semelhante é encontrado nos homicidas: uma vez que conseguem elaborar grande parte do remorso e da culpa, eles começam a vivenciar uma situação extremamente difícil, porque a tentativa de reparar a representação interna de um objeto externo e concreto, que em realidade destruíram (ou seja, foi morto), é de uma dificuldade insuperável; o luto, por isso, não pode nunca ser completado, e uma verdadeira mudança, no sentido positivo, nunca se processa.

Todos os estudiosos de Coleridge concordam que o poeta sofria, desde a infância, de uma notável instabilidade de caráter, e lembram o seu curioso e excêntrico comportamento, que, muitas vezes, foi associado ao do pai - embora este pareça ter sido menos instável emocionalmente.

Coleridge não tolerava críticas nem ataques: não enfrentava o sofrimento causado por suas falhas ou por repreensões e respondia com estranhamento ou afastando-se da situação. Foi com tal estado mental que ele deixou Cambridge e se uniu aos Ussari. Tornou-se um soldado medíocre, quase não treinável, e também um inexpressivo cavaleiro.

Em certos momentos, Coleridge parecia conscientizar-se de sua parte irresponsável, o que o levava a uma melhoria de sua integração e amadurecimento; mas quando essa parte irresponsável voltava a atuar, levava-o a uma recaída.

Notáveis, apesar de tudo, eram seu talento no uso das palavras e certa empatia que encantava e fazia com que, rapidamente, seu comportamento exasperante fosse perdoado.

Desejo examinar "A balada do Velho Marinheiro" do ponto de vista da obra de arte, que ilumina a agitação do mundo interno de Coleridge quando escreveu o poema. É provável que Coleridge, naquele período, estivesse próximo ao limiar da posição depressiva, mas, tendo uma limitada capacidade de suportar a dor psíquica por um período de tempo considerável, sentia-se dilacerado por forças que se opunham com violência à entrada da posição depressiva. O seu estado mental devia oscilar entre aquele dominado por ansiedade persecutória, que poderia explodir a qualquer momento, e aquele dominado por uma prolongada ansiedade depressiva. Quando iniciaram seu caminho num triste dia de novembro de 1977, W. Wordsworth, Dorothy Wordsworth e Samuel Coleridge reagiram à melancolia do ambiente com um desabusado bom humor, e foi então que Coleridge tornou-se profundamente envolvido com as vicissitudes do Velho Marinheiro e

o poema, aos poucos, transformou-se em sua própria história, a história de sucessos e de malogros do seu desenvolvimento afetivo e dos conflitos que naquele período se agitavam dentro dele. O que deveria ter sido - e no início realmente foi - um escrito alegre e não comprometedor, criado apenas para ganhar uma pequena importância, tornou-se uma obra de arte muito importante, que talvez, mais do que qualquer outra, revele a grandeza de Coleridge.

Em 1797, aos 25 anos, Coleridge já havia experimentado a sedução do ópio, mas não estava ainda escravizado pelo vício, e, sem dúvida, flutuava entre dois estados: um em que o ópio era vivido como uma substância sublime, que colocava fim à ansiedade persecutória, e outro em que, infelizmente, desenvolveu-se gradualmente, após ele ter sucumbido ao vício: o de terrores próprios da ansiedade persecutória que, ainda por cima, assumiam uma qualidade demoníaca.

Somente após cinco anos de uso do ópio, Coleridge compreendeu que a substância que deveria dar alívio à ansiedade, em verdade, piorava sensivelmente a situação. No entanto, quando chegou a essa conclusão, ele já estava dominado pela droga.

Cinco anos de vicissitudes, com uma deterioração geral, transcorreram entre a primeira composição de "A balada do Velho Marinheiro" e a definitiva.

Se bem tenha falhado como tentativa, embora promissora, de uma autoterapia, "A balada do Velho Marinheiro" demonstra que Coleridge foi capaz de alcançar, inconscientemente e de modo quase automático, as lembranças e experiências diversas e de ajustá-las num todo coerente que nos conta com precisão a história de sua vida interior.

Lamentavelmente, não consegui obter informações sobre os primeiros anos de vida do poeta.

Era o último de dez filhos que o pai teve com a segunda esposa; tinha, portanto, nove irmãos e, ainda, três meias-irmãs vindas do primeiro casamento do pai. Aos 21 anos, Coleridge já havia perdido seis irmãos e a única irmã, à qual era muito ligado. Tais mortes podem ter feito surgir a ideia onipotente de ele ter sido o responsável pelo prematuro fim dos irmãos, por aquele tremendo fratricídio coletivo, representado com extrema vivacidade no poema "A balada do Velho Marinheiro". É possível que Colerigde tivesse tido tais fantasias pelo fato de após o seu nascimento nenhuma outra criança ter nascido. Não se sabe se mãe ou alguma meia-irmã cuidou de Samuel.

Entre os cinco e oito anos, provavelmente mais perto dos oito anos, houve um incidente em sua vida. Samuel pediu à mãe um pedaço do queijo do qual ele gostava muito; ela cortou uma fatia e a entregou ao filho Frank, para que a passasse a Samuel. Frank, feliz com a oportunidade de atormentar aquele que considerava o filho predileto, em vez de entregá-la, jogou a fatia na direção de Samuel, e o queijo caiu no chão. Furioso, o jovem Samuel partiu para cima do irmão, bem maior que ele, e o derrubou. Frank fingiu estar gravemente ferido e Samuel ficou preocupado e sentiu pena do irmão. Frank, então, levantou-se e riu de Samuel. Sua raiva explodiu: ele pegou uma faca e agrediu Frank. Quando os pais se lançaram sobre ele para contê-lo, ele fugiu e se escondeu em um bosque ao longo do rio Otter, que corria em frente de sua residência. Os barulhos dos pássaros e dos animais noturnos o assustaram muito, mas ele esperou, em vão, que alguém o procurasse. Somente nas primeiras luzes da aurora, o senhor Stafford Worthecoot o encontrou e o reconduziu à sua casa.

Samuel ficou assombrado quando os pais, com os olhos cheios de lágrimas, acolheram-no com carinho e trataram-no como filho pródigo, demonstrando-lhe muito explicitamente que era querido e amado. Nesse momento, Frank desapareceu.

Pegar a faca para atacar Frank expressa, sem dúvida, um impulso homicida de Samuel, e fugir representa sua incapacidade de enfrentar esse fato.

Nesse episódio, portanto, além do tema do jovem Caim - Caim vegetariano, ou seja, Samuel que se alimenta de queijo -, encontramos o do "Hebreu errante". Ambos os temas estão presentes na história do Velho Marinheiro, no trecho em que se conta que a tripulação - ou seja, os irmãos inocentes ou relativamente inocentes - morre, enquanto o verdadeiro culpado, aquele que destruiu o "objeto bom", sobrevive às custas da morte dos companheiros. Samuel, o rapazinho que tivera o impulso homicida, após ter passado a noite fora de casa, ao relento, foi tratado com afeto, enquanto Frank foi punido por ter provocado a violência no irmão.

Coleridge fez de "A balada do Velho Marinheiro" o seu poema e o tornou a expressão do próprio mundo interno. A essa maravilha, Wordsworth deu contribuições essenciais, como a ideia do albatroz, do crime, da nave que avança com a tripulação morta.

A meu ver, a elaboração do poema serviu, entre tantas coisas, para fazer emergir os problemas mais profundos do próprio Coleridge. Sua personagem principal, o Velho Marinheiro, usa exatamente o mesmo mecanismo do poeta, tornando-se, assim, seu porta-voz. Além disso, fica claro que Coleridge, assim como o Velho Marinheiro, havia conseguido obter somente um alívio temporário da angústia. A composição de "A balada do Velho Marinheiro" não marcou o início da libertação da escravidão do ópio, mas uma etapa no caminho para uma maior dependência.

A imagem do espectro feminino, de face branca e cabelos amarelos como o ouro, que avança sobre a nave fantasma, lembra, em alguns trechos, o poema "La belle dame sans merci", de John Keats. Quando apareceu nas versões iniciais do poema, a figura feminina não personificava nem o pesadelo nem as imagens da "Vida em Morte": esses foram desenvolvimentos sucessivos. Ela se tornou, então, a distribuidora de castigos e de tormentos, mesmo conservando, como em "La belle dame sans merci", a capacidade de dar alívio, de fazer renascer esperanças e expectativas e de provocar grande excitação.

Creio que a figura que representa o pesadelo da "Vida em Morte" se refira a uma constelação psíquica de relações objetais infantis do tipo já acenado e que, de tempos em tempos, reaparece na vida adulta. A representação interna dessas relações objetais seria depois projetada para o exterior e transformada em objetos fantásticos ou em construções fantásticas. No que diz respeito a Coleridge, a figura representa quase que certamente, entre outras, o ópio, este é o pesadelo da "Vida em Morte" que, de início, enche de esperanças seus devotados adeptos e dá sensações prazerosas, mas posteriormente não satisfaz as expectativas iniciais e os abandona em estado de terror, de perseguição e de sensação de morte.

Althea Hayter diz que quanto mais Coleridge se tornava dependente do ópio, mais a figura da "Vida em Morte" tornava obsessivos seus pesadelos.

Como assinalei, essa figura tem outros significados além de aquele do ópio. Hayter afirmou que "Vida em Morte" poderia ser a chave de toda interpretação psicanalítica do estado mental de Coleridge no momento da escrita do poema. No entanto, penso que a imagem do fantasma feminino que gela o sangue do homem e cujo terror parece fazer fugir o sangue do coração do Velho Marinheiro se fundiu à imagem do amado e odiado ópio que seduz e paralisa.

Retomemos em exame o poema. Os primeiros versos falam do impacto entre quem projeta e quem recebe a projeção, ou seja, entre o poeta e o leitor; os versos seguintes mostram que, no início da viagem, os navegantes estavam de bom humor e que, durante certo período, tudo caminhou bem:

Navio contente, porto sem gente,
Zarpamos, alegremente
Ao som da igreja, por sob a colina,
À luz do farol lá em cima

Simbolicamente, o início da viagem pode representar a exploração do sono e referir-se às várias experiências da vida nos sonhos. Tudo vai bem até que, durante a viagem, nas profundezas do sono que chegam até o inconsciente, acontecem contatos em um certo nível em que devemos enfrentar desejos e gratificações primitivas que dizem respeito a alimentos, receber cuidados, ser objeto de atenções, com os intercâmbios recíprocos entre mãe e bebê. Além disso, no que diz respeito a Coleridge, nesse nível ainda haveria o ensinamento religioso ministrado pelo pai, que era pastor protestante. O albatroz é sem dúvida uma ave que tem um significado religioso.

O que estaria se agitando na mente do Velho Marinheiro não é nada claro, mas ele parece descobrir dentro de si impulsos ferozes, malévolos e invejosos e, sem alguma razão aparente, projeta-os, com toda a sua destrutividade e violência, no "obje-to bom", o albatroz, que naquele particular momento é vivido como "objeto mau", ave de mau agouro.

Antes de ser dominado pela crueldade e ódio e resolver matar o albatroz, o Velho Marinheiro tinha dentro de si uma constelação paranoica. Em Coleridge, essa talvez tivesse tido origem na infância.

Deus salve você, seu Velho Marinheiro,
Dos inimigos, por esse caminho
Por que você olha? Com minha besta
Eu atirei no albatroz.

Como no episódio da infância ocorrido com o irmão, o castigo ao Velho Marinheiro não se seguiu imediatamente. De fato não aconteceu até que a tripulação - isto é, as partes cindidas do Velho Marinheiro não tivessem desaprovado a ação realizada pela outra parte dele, profundamente invejosa, maldosa e hostil; tudo procedeu em absoluta tranquilidade. Da mesma forma, Coleridge continuou a crescer de modo satisfatório, pelo menos aparentemente, embora saibamos que, de tempos em tempos, tivera alguns pequenos problemas.

É possível que a negação maníaca da realidade interna e externa tenha estimulado de tal modo sua parte narcísica, onipotente e invejosa, que, continuamente, ele sentisse que corria o perigo de ser subjugado e completamente dominado, da mesma forma como ocorre aos homicidas nas crises catatímicas. Quando, por fim, essa parte conseguiu a submissão do restante do self, aconteceu o desastre. Enquanto durava o conflito entre partes boas e más, o desenvolvimento podia prosseguir, ainda que dentro de certos limites. No entanto, assim que as partes boas sofreram o processo de corrupção, morreram todas em nível simbólico. Somente quando percebeu a enormidade do crime e foi atormentado por uma sede que não conseguia aplacar (pen-so que essa represente o desmame vivido pelo poeta de modo traumático), o Velho Marinheiro recorreu ao sobrenatural na tentativa de fugir à situação por demais angustiante:

Água, água em toda parte,
E todas as tábuas a encolher;
Água, água em toda parte,
E nem uma gota para beber

Por temer fortemente pela sua vida, ele invoca o sobrenatural: surge a nave fantasma. O impulso de morder-se como um vampiro parece se voltar contra ele mesmo - ao ter saciado a sede com

o próprio sangue, ele consegue pronunciar palavras e berrar uma saudação ao navio que se aproxima. Tudo é muito semelhante aos ataques contra si mesmo e às frequentes automutilações dos assassinos e das pessoas com forte tendência ao assassínio:

Mordi meu braço, suguei o sangue,
E: vela, berrei! Uma vela!

O assassinato, o ato mais destrutivo contra os vínculos, é algo irreparável quando se ataca o vínculo com a própria vida.

A mordida no braço irá cicatrizar: trata-se de um ato simbólico de destruição retrospectiva e representa um primeiro esforço obsessivo de anular o próprio assassinato.

Nesse ponto, cria-se uma confusão entre os impulsos do Velho Marinheiro e sua percepção da realidade interna e externa. Comparecem o fantasma, que ele exaltou como a morte, e a mulher, sua companheira, a "Vida em Morte", assim descrita:

Seus lábios eram vermelhos, seu olhar lascivo,
Seus cabelos loiros como ouro
Mas branca a pele feito leprosa;
O íncubo "Vida em Morte" era
Que regela o sangue dos homens.
A nua carcaça avançava
E os dois lançavam os dados

Por fim, a tremenda figura da "Vida em Morte" vence. Creio que essa tenha levado a melhor após uma batalha entre as partes boas e as partes más, no curso da qual as partes boas haviam manifestado tendências intensamente suicidas. No interesse da autoconservação, as partes más tinham posto em movimento uma ousada tentativa de ganhar o controle da pessoa toda e de garantir, então, a própria salvação em detrimento da qualidade de vida que, com efeito, não era mais vida e, sim, morte. Naturalmente, esse é o tipo de conflito vivenciado por quem é escravo do ópio.

Quando decide não ceder diante da morte, o Velho Marinheiro é tomado por um grande medo; ele está protegido pela "Vida em Morte", enquanto a tripulação (todos os seus irmãos, as suas partes boas) morre. É significativo como ocorre a morte.

As ações do Velho Marinheiro e sua responsabilidade fizeram com que a realidade refletida nos olhos dos homens mortos fosse dirigida contra ele. É dessa maldição que o Velho Marinheiro não consegue se libertar. Uma imagem interna boa foi violentamente danificada e ele sente ter cometido um crime imperdoável. Os olhos são muito importantes para Coleridge. Na parte seguinte do poema, por exemplo, o convidado fala do medo que lhe incute o olho do Velho Marinheiro: é como se, através deste, fosse-lhe transmitida a maldição dos olhos da tripulação morta. Naturalmente trata-se do processo de identificação projetiva.

Tenho medo de ti, ó Velho Marinheiro,
De tua mão escarnada!

O olho demoníaco e a inveja são projetados, mas quem recebe a projeção morre e, por sua vez, reprojeta-a centuplicada e ainda mais letal. Tudo isso chama de volta a degradação dos objetos e a malévola onipotência, própria das estruturas narcísicas, como foi descrito por Rosenfeld e Meltzer.

O Velho Marinheiro agora se sente verdadeiramente sozinho: a solidão, escreve M. Klein, é uma mescla de ansiedade persecutória e de ansiedade depressiva.

Só, só todo só,
Só, só neste imenso mar!
E nunca um santo se apiedou
De minha alma em agonia.

Aqueles muitos homens, assim belos!
E eles todos jazidos mortos:
E milhares e milhares de restos de lodo
Continuavam a viver; e assim eu

O luto, o remorso e as autoacusações indicavam que o conflito entre as partes boas e as partes más do Velho Marinheiro não era favorável às partes más. Na verdade, a presença do conflito demonstrava que as partes más impediam as boas de expressarem sentimentos de amor e, então, de empreender a atividade de reconstrução por meio do trabalho de luto.

Olhei para o céu e tentei rezar,
Mas, ao em vez de uma oração,
Saiu-me um sibilo perverso e tornou
Meu coração seco como um pó.

O Velho Marinheiro é cínico, sente-se perseguido e não pode amar. Sua situação não é diferente daquela - extremamente perigosa - que se apresenta no tratamento dos criminosos, quando eles começam a se reapropriar de suas projeções e percebem que, na realidade, tiveram notáveis vantagens pelos crimes cometidos: é isso exatamente que faz os homicidas sentirem quão enormes é o delito de matar.

No Velho Marinheiro ressurge, do profundo de sua alma, a capacidade de experimentar interesse e de amar, originada, talvez, do difícil luto que, em certa medida, ele foi capaz de elaborar.

Dentro da sombra do navio
eu mirava suas ricas vestimentas;
de azul, negro veludo ou verde que rebrilha;
nadam e se enovelam a cada trilha
de áurea chama é um lampejo

Felizes coisas viventes! Língua não há
que possa declarar a beleza!
Uma fonte de amor jorrou do meu peito,
E sem saber os abençoei
Certo meu santo teve piedade de mim.
E eu as abençoei, sem saber.

Naquele mesmo instante orar eu já podia;
E então do meu pescoço liberto
Se desprendeu o albatroz, e caiu
Como chumbo no fundo do mar

Após experimentar a morte das partes boas, a vida torna-se possível com a intervenção do tão esperado sobrenatural.

Coleridge retratou, com extrema vivacidade, o que acontece a um homicida que consegue elaborar, dentro de certos limites, a culpa, o remorso e o luto: trata-se de um processo que, de forma distinta ou em medida diversa, é encontrado em pessoas que cometeram um assassinato em suas mentes.

O trabalho psíquico levado a termo pelo Velho Marinheiro permite-lhe dormir. É possível que a chuva caída durante a noite represente lágrimas de tristeza, extremamente salutares, pois mitigam, ainda que por breve período, sua perseguição.

Ao ser capaz de estar deprimido, ele pode dormir um sono tranquilo e sereno. Esse estado ele pensava ter alcançado graças à mãe, ou seja, à Virgem Maria.

Em seguida acontecem eventos prodigiosos: os homens mortos, vivificados por uma "fileira de beatos espíritos", levantam- se, manobram o navio e o ajudam a salvar-se.

Minha impressão é a de que ter recorrido à Virgem Maria como figura mágica foi uma solução enganadora, pois o pai não reaparece.

Pouco tempo após a fuga de casa e a noite passada no bosque depois da agressão ao irmão Frank, o pai repentinamente morre; e foi Coleridge que teve de informar aos familiares a morte do pai, enquanto todos pensavam que tivesse sido um simples colapso; ele compreendeu de imediato o que realmente havia acontecido.

Na quinta parte do poema aparecem elementos extremamente narcisistas, que lembram as descrições dos usuários de ópio durante o trabalho analítico. São falas que esclarecem os principais modelos de suas relações objetais e em particular aqueles usados durante o período de abstinência; sob o efeito da droga toxicodependente, os usuários estão aparentemente satisfeitos e não sentem necessidade de ninguém.

O parricídio do poema não é evidente a não ser pela falta de uma imagem paterna e pela particular ênfase ao dom do sono que provém da mãe, Maria Virgem.

Parece que o poema trata mesmo é do assassinato da mãe - representado pelo albatroz - e dos irmãos, os outros filhos que a mãe teve.

Os versos seguintes ilustram o horror dos consanguíneos:

Postado frente a mim, puxou a mesma corda
Era-me companhia,
Joelho com joelho, o corpo de um sobrinho;
Mas, nada me dizia.

A intervenção do sobrenatural é importante, sobretudo porque nega a morte. Coleridge, em parte, rejeitou e, em parte, aceitou a responsabilidade em um nível intrapsíquico e interpessoal. Entretanto, o problema, como é típico dos viciados em ópio, não teve resposta definitiva.

Os seguintes versos transcrevem essa negação:

Tu me assustas, Velho Marinheiro!
Fique calmo, Convidado, Fique calmo!
Não foi que as almas sumidas em gran pena
Voltaram dentro de seus corpos,
Mas foi uma mão de espíritos celestes

Os versos "Não foi que as almas sumidas em gran pena/ voltaram dentro de seus corpos" denotam um desafio ao retorno, como perseguidores dos objetos assassinados. Mas a idealização, que é o resultado da negação maníaca da enormidade do crime, teve somente um sucesso parcial.

A sexta parte de "A balada" inicia com vozes que fazem perguntas sobre eventos mágicos, os quais rendem a absolvição incompleta.

Jamais havia passado a angústia de sua morte
A dor, a maldição;
Meus olhos não podiam, de seus olhos tolher-se.
E erguer-me em oração.

Parece que Coleridge experimentou ansiedade depressiva, mas nunca conseguiu elaborá-la. Ele estava sempre à procura de mecanismos que lhe permitissem esquivar-se desse sentimento e, uma vez encontrado, o processo maturativo naturalmente se interrompia.

Logo após, o encanto é quebrado e, mais uma vez, o Velho Marinheiro pode admirar a beleza.

Evidentemente, ele oscila entre tolerar a ansiedade depressiva e recair na ansiedade persecutória ou em um estado onipotente mágico e maníaco. Por um momento, ele encontra alívio da ansiedade persecutória mesmo sem tê-la expulsado, pois a representa de modo extremamente vívido.

Era como quem vai numa estrada deserta
Caminhando com medo e terror,
E tendo olhado às pressas para trás prossegue
Sem nunca mais olhar
Porque bem sabe que um demônio assustador
O alcança a poucos passos.

Após o ingresso da nave no porto, os espíritos abandonam os corpos que jazem inanimados e enrijecidos. Depois disso, acontecem outras coisas mágicas: "O Piloto e o moço (grumete) do Piloto", junto com o eremita, vão buscar os passageiros do navio, o qual, nesse meio tempo, havia se transformado em uma espécie de navio fantasma, de algum modo semelhante àquele que levava a imagem da morte e da "Vida em Morte". O eremita afirma nunca ter visto navio e nem velas tão delgados como teia de aranhas:

Aos espectros das folhas mortas, essa turba Que o leito do regato entope e rouba,
Quando na moita de hera a neve se demora
E o mocho pia para o lobo
Que devora os filhotes da loba.

O verso "Os escuros esqueletos das folhas", que vem na sequência, é de mau agouro. Ele representa algo de anal que bloqueia o riacho do bosque, ou seja, o fluxo do curso da vida, que se enregela talvez reprimido. Depois, um pequeno mocho e um lobo se destroem reciprocamente. Não fica claro no texto quem come os pequerruchos da loba: se é o menino, o pequeno mocho ou seu pai ou sua mãe, porém vários elementos indicariam que o lobo-pai era o devorador dos lobinhos.

Há, então, uma cisão de enormes proporções, uma mudança catastrófica, segundo Bion, uma sorte de explosão que afunda o navio, arrastando consigo o Velho Marinheiro que, apesar disso, se salva. É possível que essa imagem represente a fuga ao suicídio do ópio. Ele é salvo, mas é como se houvesse algo de quase demoníaco sob o efeito do ópio, pois o diabo sabe bem como se rema.

Em seguida, quando pede para ser absolvido, o Velho Marinheiro encontra-se, em certo sentido, em uma situação semelhante à do Hebreu Errante e à de Caim e, como eles, vaga de terra em terra. Ele parece carregar consigo, junto com a maldição daqueles que matou, um impulso homicida. Além disso, parece possuir - cindido da constelação homicida - um misterioso poder que lhe confere extraordinária capacidade de expressar-se verbalmente e, de modo específico, de criar situações em que possa fazer uso da identificação projetiva com pessoas que, apenas ao olhar, ele reconhece como adequadas.

O poema tem, ainda, uma função didática que, creio eu, se ancora na relação que Coleridge teve com o pai: o pequeno Samuel frequentava a igreja para ouvir as pregações e sermões paternos. O Velho Marinheiro, identificado, de certa forma, com

o pai do poeta, que era pastor protestante, termina a narrativa com uma admoestação, que é também uma ordem:

Ora melhor aquele que melhor ama
Todas as coisas grandes e pequenas;
Que o bom Deus que nos ama,
Todas as fez e todas as ama.

Trata-se de um epigrama com conteúdo moral e com objetivo didático, próprio de sermão.

Desejo discutir por que o poema marcou uma etapa de extrema importância na vida de Coleridge: ele representa a tentativa de cumprir uma viagem mental que permitisse ao poeta passar da ansiedade persecutória à depressiva e, além disso, de se aventurar na posição depressiva para dela sair fortalecido. No entanto, os terríveis eventos vivenciados no inconsciente estavam muito próximos da inveja; são exemplos o assassinato parcial e total do "objeto bom" e a constelação fratricida que não lhe dava um momento de trégua.

As ações do Velho Marinheiro, de certa forma condenadas por ele, vinham da necessidade de salvar-se, mas revelavam também falta de amor verdadeiro e incapacidade de preocupar-se com o crime e todas as suas terríveis consequências.

Acredito que o "sibilo perverso" - que deixou seu coração seco como pó - constitua a chave interpretativa tanto do insucesso do poema quanto da profecia da vida futura de Coleridge. Inserido no contexto de outros acontecimentos, o "sibilo per-verso" permite realizar uma interpretação acurada: avisa que o Velho Marinheiro não pode realmente elaborar suas ansiedades depressivas por causa da constante tendência a esquivar-se delas para preservar certa serenidade de ânimo.

O poema, então, teria produzido, em seu autor, somente alguma melhoria, porque Coleridge não permaneceu o tempo necessário na posição depressiva, mas se colocou no nível da posição paranoica, a qual, por necessidade, comporta a projeção de importantes partes de si mesmo - inclusive as mais sábias e as de tristeza - à pessoa a quem ele conta sua história:

Ele foi como alguém que atordoado
Por um golpe na cabeça fica fora "de si"
No dia seguinte levantou-se
Mais triste e mais sábio.

Em outras palavras, Coleridge mostrou uma escassa capacidade de aprender com a experiência ou, pelo menos, de reter o que havia aprendido. A vida do poeta, após a composição de "A balada do Velho Marinheiro", confirma: o seu matrimônio faliu, pois ele transformou uma moça graciosa, prazerosa e enamorada, em uma mulher que só sabia reclamar.

Nesse ponto, gostaria de deter-me na grandeza de Coleridge, em suas fraquezas e em sua definitiva falência. Segundo Keats, Coleridge era dono de abertura mental e de uma capacidade negativa fora do comum. Dito de outro modo, sua capacidade introjetiva permitia-lhe ter grande empatia. Entretanto, sua psi-que perturbada não tinha condições de enfrentar e muito menos metabolizar o que havia introjetado, o que o enfraquecia em vez de torná-lo forte.

Podemos conjecturar o que possa ter interferido no amadurecimento do poeta se nos detivermos nos versos em que se revela que o luto não havia sido suportado o suficiente e que, neste, se infiltrara uma atividade mágica, a qual, paulatinamente, adquirira uma importância crescente, à medida que se reduzia a intensidade do luto por aquele crime, cometido na mente. Este parece ter consistido na matança de todos os objetos, principalmente o mais importante - o peito que alimenta; e, além disso, os irmãos e o pai, este último vagamente citado.

A primeira consequência da extrema brevidade do processo de luto foi a incompleta recuperação da doença psíquica descrita com tanta vivacidade no poema.

Fica claro que o destino do Velho Marinheiro era o do próprio Coleridge. Mas, infelizmente, para o autor, diferentemente do Velho Marinheiro, não houve a possibilidade de projetar suas penas em um interlocutor apto que lhe trouxesse certo alívio.

Um dos meios encontrados por Coleridge para mitigar seu indizível sofrimento psíquico foi o ópio. A droga, porém, agiu como estímulo sobre as partes destrutivas que derivavam do instinto de morte e ancoravam-se na ansiedade paranoide. Ele se afastou gradualmente da vida e não teve a possibilidade de um ulterior desenvolvimento emocional.

O ópio foi um meio mágico e perigoso de que ele se serviu para fugir da realidade. Contudo, tal qual o navio fantasma que mudara o emblema de esperança e socorro, tornando-se um símbolo de terror e morte ou, pior ainda, de "Vida em Morte", o ópio levou-o ao processo de deterioração e à desilusão.

Não podemos nos esquecer de que Coleridge tentou cumprir uma empresa quase impossível sozinho e sem ter a teimosia e perseverança que permitiram ao seu conhecido, Thomas de Quincey, de finalizar felizmente o projeto de se livrar da letal tirania do ópio.

 

REFERÊNCIAS

Williams, A. H. (1983). Nevrosi e delinquenza. Roma: Borla.         [ Links ]

Coleridge, S. T. (2006). The rime of the Ancient Mariner. In T. S. Coleridge. Lyrical ballads. Londres: Penguin. (Trabalho original publicado em 1798).         [ Links ]

Hayter, A. (1968). Opium and Romantic Imagination. Londres: Faber & Faber.         [ Links ]

Keats, J. (1992). La belle dame sans merci. In J. Keats. Letteresulla poesia. Milão: Feltrinelli. (Trabalho original publicado em 1818).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
MARISA PELELLA MÉLEGA
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pmelega@uol.com.br

Recebido 27.10.2016
Aceito 14.08.2017

 

 

1 "The Rime of the Ancient Mariner", de Samuel Taylor Coleridge.
2 Para esta e todas as outras citações de "A balada do Velho Marinheiro", servi-me da tradução de Aurora Fornoni Bernardini, docente de literatura na Universidade de São Paulo (USP).

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