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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo jul./dez. 2017

 

RESENHAS

 

Perdendo a cabeça com Civitarese

 

 

Alda R. D. de OliveiraI; Juarez Guedes CruzII; Luísa RizzoI; Nina Rosa FurtadoI; Rosane S. PoziomczykI; Tula Bisol BrumI

IPsicanalista, membro associado da SPPA
IIPsicanalista, membro efetivo e didata da SPPA

 

 

Civitarese, Giuseppe. Losing your head. Abjection, aesthetic conflict, and psychoanalytic criticism. Lanham; Boulder; Nova York; Londres: Rowman & Littlefield, 2015. 121 p.

Motivado pela quantidade de obras de arte que retratam episódios históricos e mitológicos de decapitação e a par de outras inúmeras representações pictóricas de cenas de amamentação, Civitarese e colegas propõem-se a analisar o tema da decapitação como um símbolo da destruição da mente. Dessa maneira, o livro interessa tanto à teoria psicanalítica quanto à crítica da arte. Ao aproximar teoria psicanalítica e manifestações artísticas, os auto-res abordam a "[...] experiência estética como um paradigma daquilo que é mais verdadeiro e mais profundo na análise" (p. vii).

O primeiro capítulo, "Toward a (new) psychoanalytic criticism", é uma avaliação da crítica psicanalítica da estética. O autor reconhece a contribuição freudiana como valiosa, mas advoga a necessidade de utilizar guias psicanalíticos mais atualizados, tais como as teorias de Bion e dos pós-bionianos. Isso porque, em seu início, a psicanálise, ao colocar autor e personagens no divã, investigando supostas intenções inconscientes, enfrentou a justificada acusação de reducionismo. A principal crítica refere-se ao desprezo das circunstâncias sociopolíticas específicas que cercaram a produção da obra de arte, causando um empobrecimento quanto à sua capacidade para significação. Partindo dessas críticas, os autores do livro recomendam "[...] deixar para trás a 'aplicação' de esquemas interpretativos rígidos e adotar, no lugar disso, [a] paixão pelo significado" (p. 4).

No capítulo "Abjection and aesthetic conflict in Boccaccio's (L) Isabetta", inspirado em Kristeva, Meltzer e na literatura como ferramenta interpretativa, o autor explora profundas verdades existenciais estéticas vivenciadas no relacionamento fusional com a mãe. Ao tomar como base o conflito estético, pressupõe a personagem Lisabetta um bebê apaixonado e duplamente condenado à morte pela falta de rêverie materna, que impossibilita a elaboração desse conflito e do sentido da transitoriedade das coisas. Com os estudos de Kristeva sobre a experiência estética, vai mais além: considera essa experiência enraizada no obscuro sentimento de abjeção vivido nesse relacionamento com a mãe por um corpo separado com violência, numa etapa do desenvolvimento que ainda não é sujeito, é apenas um corpo fundido ao outro do qual está começando a se separar. Kristeva correlaciona abjeção a essa experiência traumática. Para Civitarese, a literatura, como arte, suaviza a abjeção. Dessa forma, o poder cativante do texto nos mobiliza diante da impossibilidade do enigma da morte, assim como a continência da linguagem oferta, de forma poética, a recuperação do corpo e da rêverie materna para acolher as cabeças-pensamentos.

Com a ideia de "[...] transformar em pensamentos as emoções perturbadoras desencadeadas por um sentido de perda [...]" (p. 32), resumimos o olhar do autor sobre as transformações sociais e culturais historicizadas no início do capítulo três, "Changing styles, affective continuities, and psychic containers". Destacam as transformações na passagem do século XIX para o XX, especialmente na literatura e nas artes, observando uma redefinição traumática da subjetividade e dos valores formais. O capítulo desconstrói a obra de Corrado Govoni (1884-1965), autor representante da mudança e decadência cultural daquele momento. Refere-se Bion, comparando essa situação à falta da função continente/contido, que, em momentos de crise, grupos sociais com vida mental própria estabelecem premissas básicas equivalentes às fantasias sociais inconscientes dos indivíduos. Do ponto de vista cultural e psicológico, a sociedade reage às ideias e transformações, vistas como subversivas. Surge a literatura e a arte futurista, automática, vazia de sentimentos e memória, mas livre de sentimentos e dúvidas. Quando a literatura e a poesia tentam um mergulho na interioridade, há ausência de objetos e fracasso emocional das separações e do autolimite. Cultura e arte refletem isso.

No quarto capítulo, "Do cyborgs dream?", o autor estabelece um diálogo entre Nightmare Detective, filme do diretor japonês Shynia Tsukamoto, e ideias da psicanálise contemporânea. Questiona o que resta do humano no ciberespaço; observa o tanto que a tecnologia atual entrou em nossas vidas, a ponto de estar redefinindo aspectos da identidade e nos levando a refletir como se dá esse novo processo de construção do psiquismo. No filme, Zero é um personagem que habita um número de celular, nossas próteses atuais: quando contatado por pessoas que carregam em si uma situação traumática que os leva a flertar com a morte, ele se oferece como parceiro para cometer suicídio conjunto durante o sono/sonho/pesadelo. Uma garota aparece morta, depois outros personagens. A detetive Keiko estabelece contato com o mundo demoníaco e busca ajuda de Kagenuma, detetive dos sonhos. Num paralelo entre filme e psicanálise, Civitarese destaca o espaço compartilhado do sonho. Nele, os personagens expõem suas tragédias de desumanização, mostram que perderam a cabeça. Porém, o que define um sonho é a possibilidade de acordar dele, lembra-nos o autor, o que nos dá esperança de que, enfim, a detetive Keiko e Kagenuma possam ter algum sucesso.

No quinto capítulo, "The dream screen and the birth of the psyche in Ingmar Bergman's persona", o autor percorre múltiplos caminhos no trabalho enigmático desse brilhante diretor, em que decapitação é perder a cabeça no sentido de mergulho na loucura. A enfermeira Alma acompanha Elisabet, atriz em tratamento psiquiátrico, há dias de repouso na ilha de Faro. Desenvolve-se grande intimidade, elas assemelham-se cada vez mais, são tomadas de amor e ódio uma pela outra e isso culmina em uma cena em que vemos suas faces se sobreporem. O filho rejeitado por Elisabet observa os rostos da mãe e de Alma e o autor sugere que criança e expectador são colocados na mesma posição emocional - a vivência do conflito estético. O filme pode ser visto como um esforço da criança para lidar com a ambivalência afetiva e suscita reflexão sobre o que envolve construir ou não um significado. O autor finaliza o capítulo lembrando que, para Bergman, o teatro é o único lugar em que a verdade emocional é levada a sério, e, mais ainda, a verdade que podemos atingir é a ficcional, que é estética. O filme reviveu o amadurecimento do personagem, como em uma análise.

O sexto capítulo se baseia no filme Hidden, de Michael Haneke. Uma típica família da burguesia parisiense passa a receber vídeos e desenhos anônimos perturbadores, que levam George (o pai) ao encontro de um personagem da sua infância, Majid, o qual, em sua presença, suicida-se; a decapitação aqui é real. Majid era filho de imigrantes argelinos que trabalhavam para a família de George e morreram tragicamente; a família o adotou, mas, após acusações caluniosas do enciumado George, o mandou embora. Civitarese aponta que a trama pode ser examinada desde uma alegoria sociopolítica até níveis psíquicos profundos. Majid apresenta a George uma metáfora concreta do que este lhe causou e também uma vingança. Pode também ser visto como um duplo de George, o decapitado que compartilha um segredo ou a parte que está escondida e sangrando por não ser amada pela mãe. O autor lembra o poema "What's going to happen to us without barbarians?" (que dá título ao capítulo), comentando a projeção do negativo no outro, no diferente, sendo a solução patológica da paranoia, tentação de um Ego que teme cair em confusão.

O sétimo capítulo aborda o filme O criado, de Joseph Losey, em que um jovem aristocrata, à medida que vai se enredando em uma relação cada vez mais perversa com seu mordomo e suas respectivas namoradas, vai se degradando até o ponto de, metaforicamente, "perder a cabeça". O autor comenta que, no decorrer do filme, os personagens estão continuamente refletidos em espelhos, mostrando as diferentes interações que vão ocorrendo entre eles e, pode-se pensar, entre os objetos internos de uma mesma mente. Lembrando os conceitos de estágio do espelho de Lacan e de rêverie e rêverie negativa de Bion, Civitarese considera esse filme um excelente estudo psicológico do processo de construção e destruição da identidade, expondo "a maneira pela qual um reflexo defeituoso na relação primária do recém-nascido com o objeto, o que no filme é transposto para uma história manifesta onde os atores são adultos, pode gradualmente levar à corrupção e perversão da mente" (p. 87).

Um impactante vídeo realizado por quatro artistas e apresentado na 52ª Bienal de Veneza vai ilustrar o tema do oitavo capítulo, "The last riot and the déjà vu decapitations of the AES + F Group". Numa sequência de imagens, em câmera lenta, jovens adolescentes, de aparência andrógina, estão envolvidos em rituais de sacrifício, cujo alvo é realizar decapitações em pessoas imobilizadas, mas que nunca se concretizam. As faces impassíveis, tanto de agressores quanto de vítimas, provocam estranheza e terror no espectador. Os autores propõem essa ilustração como uma alegoria do mundo globalizado, que celebra o fim de ideologias, da história e da ética, da memória pessoal que se perde na nuvem na internet, instaurando o infinito vazio e sem forma. O vídeo pode ser visto como uma rebelião contra o agudo sentimento de vazio de significado, interpretado como a perda do paraíso do útero/mente materno, em que as faces petrificadas em sua beleza são associadas às das crianças perante a beleza da face materna, incapazes de dar significado ao enigma do seu interior. Os quatro artistas, com seu "last riot", tentam emprestar seu déjà vu para ajudar o sonhador a sonhar seu pesadelo.

A leitura de Losing your head nos conduz a paisagens diversas, por caminhos vertiginosos, e ricas conexões com a teoria psicanalítica são realizadas de modo brilhante por Civitarese. Dessa forma, não podemos encerrar sem antes sugerir aos futuros leitores deste livro apaixonante, que o façam desfrutando a literatura e os filmes relacionados.

 

 

Endereço para correspondência:
ALDA R. D. DE OLIVEIRA
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Recebido 13.05.20017
Aceito 28.05.20017

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