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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo jul./dez. 2017

 

RESENHAS

 

O ser interior e a arquitetura do self

 

 

Walter José Martins Migliorini

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), docente do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Assis - SP

 

 

Trinca, Walter. As múltiplas faces do self. São Paulo: Vetor, 2016. 142 p.

Em seus últimos trabalhos, Walter Trinca vem se dedicando à apresentação de uma visão de conjunto da psicanálise com a finalidade de nortear o pensamento e a intervenção clínica. Nas últimas publicações, apresentou uma espectrografia dos estados mentais, focalizando as perturbações psíquicas em Psicanálise compreensiva: uma concepção de conjunto (Trinca, 2011), e, no outro extremo do contínuo, os estados de expansão da consciência em Viagem ao coração do mundo: a apreensão da imaterialidade (2014). Nesse percurso, o autor vem desvelando o lugar do ser e da interioridade na psicanálise.

Via de regra, o conceito de self é utilizado na literatura psicanalítica e psicológica de modo a abarcar a experiência de contato com o próprio ser, sem discriminá-la dos estados mais imediatos e mutantes da apreensão subjetiva de si mesmo. Enquanto as definições de self são variáveis e, muitas vezes, inconciliáveis, o elemento fundamental do conceito de ser interior é, precisamente, a experiência de presença de um ser em cada indivíduo humano.

Nessa direção, em As múltiplas faces do self (2016), Walter Trinca retoma e aprofunda a reflexão - antropológica, epistemológica e metodológica - de como se distinguem e relacionam self e ser interior. Em sua perspectiva, desenvolvida ao longo das últimas décadas, há um núcleo primordial do ser, diferenciado do self, com o qual podemos manter diferentes graus de contato ou distanciamento, de modo que suas manifestações podem ser investigadas na clínica. O livro é uma reapresentação da psicanálise compreensiva, desta vez, focalizando o eixo self e ser interior, suas vicissitudes, definições e implicações clínicas. Nessa reapresentação, a espinha dorsal do pensamento do autor ganha nitidez.

Diferente de outros psicanalistas que também se referem a um núcleo central do self, Trinca define o ser interior não apenas como núcleo dinâmico, mas como "uma entidade psíquica com existência e dinâmica próprias" (Trinca, 2016, p. 11). Do ponto de vista da experiência, é a forma única como a sensibilidade de uma pessoa se apresenta no mundo e também a possibilidade de uma pessoa apreender em si mesma princípios de organização harmônica da natureza presentes na interioridade do ser humano. Assim, a presença do ser interior no campo psíquico se converte em estados de self de inteireza e expansão, enquanto o distanciamento de contato com o ser interior estaria na base do sofrimento psíquico.

Originariamente, ao vislumbrarem e se relacionar com a pessoa do bebê, as mães estariam também reconhecendo nele o ser interior, distinto dos estados de self mais passageiros. Nesse processo, "ser vista, distinguida e amada pelo que ela fundamentalmente é constitui, para a criança, a matriz original do contato consigo própria" (p. 41). Há, portanto, um núcleo que se distingue das várias manifestações da pessoalidade e, por esse motivo, o processo de identificação com o outro não representa "a essência original da pessoa, uma vez que [...] há alguma coisa que é original e própria do indivíduo, escapando totalmente aos jogos identificatórios" (Trinca, 2016, p. 44). Tampouco é a pulsão de morte que, reativamente, leva a criança a descobrir-se como ser. Ao contrário, a pulsão de morte exerce um poderoso papel na obstrução do contato com a própria interioridade e, consequentemente, nas diversas formas de perturbação do self.

Do ponto de vista clínico, o distanciamento do contato com o ser interior se presentifica de duas maneiras fundamentais: como esvaziamento ou como preenchimento do self. No primeiro caso, por experiências de profunda fragilidade acompanhadas de angústia de dissipação e aniquilamento. No segundo, por vivências de saturação provocadas pela sensorialização do psiquismo, com a finalidade de se evitar o contato com o próprio sofrimento. Em tais processos, a pulsão de morte é o elemento desencadeante primário (embora não único), cujas manifestações clínicas são descritas, fenomenologicamente, como constelações do inimigo interior. São exemplos destas últimas, os ataques carregados de crueldade voltados contra si mesmo e ao outro; a inveja; os entorpecimentos por excesso de trabalho ou drogas; a adesão irrefletida a sistemas religiosos ou a ideologias totalitárias; a corrupção, o consumismo etc. No trabalho terapêutico, o recurso figurativo vívido do inimigo interior facilita o reconhecimento das configurações da destrutividade no self e torna-se um elemento valioso nos estudos de caso. Nessa direção, o autor assinala que o conceito de constelação possibilita a operacionalização do trabalho psicanalítico ao concentrar "numa base comum a multiplicidade dos elementos dispersos em vários tipos de ataques destrutivos contra a realidade interna e externa" (Trinca, 2016, p. 64).

O coração do método é o princípio de que o grau de contato de uma pessoa com a própria interioridade determinará diferentes modalidades de organização e de estados de self. Essa perspectiva inaugura na psicanálise a possibilidade de investigação dos estados de ampliação psíquica, tais como os de plenitude e encantamento com o mundo, e equaciona as perturbações psíquicas no campo mais amplo das distorções do self e da fenomenologia de suas manifestações e organizações. Também as condições da vida cultural e social são passíveis de análise por esse modelo, quando implicam em uma coisificação e sensorialização da vida que apartam as pessoas de si mesmas e do outro.

A proposta de uma síntese compreensiva fundamentada no ser e de seu lugar na arquitetura do self é um outro olhar sobre o caminho das pedras que conduz uma pessoa ao encontro ou ao reencontro de si. A formação clínica nos leva a antessentir a interioridade única de cada paciente e sua revelação, ou ocultamento, durante o processo terapêutico. É esse o fenômeno apresentado no livro, cuja leitura também conecta o leitor - clínico ou não - às experiências de apreender os próprios estados de self e de estimar, em dado momento, as possibilidades pessoais de sentir inteireza e abertura suficientes para vivenciar a imaterialidade mais profunda do mundo e do próprio ser.

 

REFERÊNCIAS

Trinca, W. (2011). Psicanálise compreensiva: uma concepção de conjunto. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

______. (2014). Viagem ao coração do mundo: a apreensão da imaterialidade. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
WALTER JOSÉ MARTINS MIGLIORINI
Alameda Marselha, 50
19815-606 – Assis – SP
tel.: 18 99611-2227
wjm.migliorini@icloud.com

Recebido 15.05.2017
Aceito 28.05.2017

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