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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.65 São Paulo jan./jun. 2018

 

EDITORIAL

 

Inveja

 

 

João A. Frayze-Pereira

Editor

 

 

Como sabemos, na "cultura do espetáculo" (ide 63, 2017), a imagem impõe-se sobre o fato. Não apenas mascara-o, como acaba substituindo-o. Nesse contexto, mediante o princípio do "cada um na sua", do viver livremente sem limites, relativizam-se todas as imagens, o "mesmo" triunfa sobre o "outro" e, paradoxalmente, a possibilidade de o indivíduo ser singular torna-se uma grande ilusão. Mais ainda, os valores associados às experiências de cada um são uniformizados como objetos de consumo e estes são confundidos com objetos de desejo. E como o indivíduo não vai ao shopping somente para comprar mercadorias, mas para consumir comunicação, para se exibir e para encontrar pessoas, pálidos reflexos dele mesmo, o produto não é mais um produto, mas um ser: "eu acredito que, associando-o à minha identidade, essa identidade muda" (Canevacci, 2007). Assim, o que se compra não é apenas um produto, mas um estilo de vida. No entanto, a paixão pelos símbolos de status proporciona disfarces patológicos, formas fixas da representação de si mesmo, que levam o indivíduo a experimentar uma desorientação vital quando despojado de tais símbolos. Nessas condições, ocorre o esvaziamento da vida psíquica e a própria busca da riqueza acaba não tendo outro objetivo a não ser excitar a admiração ou o desprezo - atitudes que subjazem à conversão dos objetos de consumo em signos de distinção (Lipovetsky, 2005). Porém, se ficarmos no plano da oposição entre admiração e desprezo não será possível perceber o vínculo emocional mais profundo que existe entre admiração e inveja (Perniola, 2005). E por que seria importante considerar essa vinculação? Ora, se a admiração tem um papel determinante na economia da cultura, como afirmam os autores mencionados, deve-se considerar o seu campo total de sentidos - desde o luminoso entusiasmo até a sombria inveja. E, nesse campo, a inveja e a voracidade devem ser consideradas, em particular, porque elas têm relação com o vazio mental a que nos referimos há pouco. Mas, o que é exatamente a inveja? E qual a sua relação com a cultura?

É bom lembrar, inicialmente, a apresentação da inveja feita por Ovídio nas Metamorfoses, descrição na qual se baseou Dante para escrever sobre ela na Divina Comédia. Diz Ovídio:

A inveja habita o fundo de um vale onde jamais se vê o sol. Nenhum vento o atravessa; ali reinam a tristeza e o frio, jamais se acende o fogo, há sempre trevas espessas [...]. A palidez cobre seu rosto, seu corpo é descarnado, o olhar não se fixa em parte alguma. Tem os dentes manchados de tártaro, o seio esverdeado pela bile, a língua úmida de veneno. Ela ignora o sorriso, salvo aquele que é excitado pela visão da dor [...]. Assiste com despeito aos sucessos dos homens, e este espetáculo a corrói; ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si mesma, e este é seu suplício.

A partir desse texto, Renato Mezan (1987) desenvolve o tema e ressalta alguns aspectos definidores da inveja: 1º) associação da inveja com o olhar; 2º) a alegria do invejoso corresponde à dor do outro; 3º) a realização de seus propósitos não deixa o invejoso feliz e realizado (ao atacar os felizes, ataca a si próprio); 4º) a inveja contém desejo, mas nele não se esgota; 5º) o desejo de privar o outro da felicidade é essencial, muito mais importante do que obter a posse da coisa invejada. Mas, considerando o conjunto dessas características, o que seria o objeto invejado?

Foi no final dos anos 1950, quando Melanie Klein publicou o magistral Inveja e gratidão (1957), que o significado desse sentimento foi mais plenamente compreendido e que, após sessenta anos de existência, continua atual. À primeira vista, inveja-se o que o outro supostamente possui, isto é, suas capacidades, conquistas e qualidades. Entretanto, mais do que isso, a inveja envolve uma qualidade espoliadora, uma hostilidade para com as boas capacidades do outro, ainda que isso não possa ser reconhecido. Quer dizer, ela envolve mortificação e malevolência ocasionadas pela visão das qualidades tidas como boas e superiores do outro que, portanto, precisa ser deletado. A inveja funda-se no ódio e a espoliação se faz com agressividade. E, embora esteja ligada à voracidade, não se confunde com ela, pois o voraz quer obter algo para si, o indivíduo tomado pela dinâmica da inveja, não. O que este visa é tirar algo do outro, isto é, ele não inveja o que precisa para si, mas algo que precisa tirar do outro. Nesse sentido, especificamente, sob o regime da inveja, o indivíduo não pode suportar que algo de bom seja motivo de fruição, de prazer do outro, e que algo de bom lhe seja dado por outra pessoa. Não poderá usufruí-lo, reconhecerá de má vontade as suas qualidades e será incapaz de experimentar e de expressar gratidão. Portanto, não pode reconhecer que o outro tenha algo para lhe dar construtivamente. E isso surge claramente na forma de uma verdadeira incapacidade de receber informação ou ajuda, na verdade, de percebê-la. O que significa que uma pessoa dominada pela inveja terá grandes dificuldades com o saber do outro, saber que sobre ela pesa como ameaça e humilhação. Não lhe será possível, então, tolerar ver ou ouvir narrativas prazerosas, experiências boas e pensamentos interessantes que provenham do outro. E o outro, aqui, pode ser outra pessoa, um objeto cultural, um acontecimento... Quer dizer, na medida em que tal indivíduo é incapaz de aproveitar o que vem do outro e de sentir gratidão, sua curiosidade e capacidade de conhecer, de ter prazer e de amar sofrem graves interferências (Joseph, 1992, p. 189). Nessa medida, o vazio psíquico pode ser uma das consequências. Ora, espoliar o ser da capacidade de criar, atacando-o, é retirar dele a própria vida. E, com efeito, Melanie Klein (1991, p. 234) escreveu - "a criatividade é a causa mais profunda da inveja". Não por acaso, a clínica psicanalítica constata a inibição da curiosidade por tudo aquilo que é outro em indivíduos marcadamente invejosos cujo mundo mental re-vela-se empobrecido, empobrecimento que subjaz às relações de competição e de rivalidade, ao preconceito, à negação do outro e à afirmação do mesmo. Porém, a falta de interesse autêntico por aquilo que os cerca relaciona-se à indiferença ao funcionamento de suas próprias mentes, o que os leva a um saber abstrato, alheio à realidade em que estão situados, e a uma racionalidade onipotente que manipula essa mesma realidade. Mas, o que motiva a falta de curiosidade? Ela pode ser entendida como uma defesa do indivíduo contra a sua própria inveja, evitando inconscientemente o impacto de experiências novas que possam despertar o próprio interesse pelo outro e, portanto, mais inveja e rancor (Joseph, 1996, p. 24). Contudo, se "a inveja da criatividade é um elemento fundamental na perturbação do processo criativo" (Klein, 1991, p. 234), o que seria a criatividade? Seria ela um processo que leva o indivíduo curioso ao encontro com o outro, à proposição do novo, ao desconhecido, às transformações? E, considerando as características da inveja, opostas às da criatividade, e o modo de funcionamento das relações humanas na atualidade, tal como costuma ser descrito pelos estudiosos da chamada era do vazio, pode-se ainda perguntar - até que ponto não seria a inveja um dos determinantes da indigência psíquica de nosso tempo? E, nessa medida, até que ponto não poderia ser a inveja um obstáculo psíquico para a instauração de certas transformações culturais?

Tendo essas indagações como pano de fundo, os artigos reunidos neste volume da ide oferecem aos leitores um conjunto polifônico de perspectivas voltadas à temática em pauta, assim como ao tema da criatividade e questões correlatas, pertinentes à psicanálise e à cultura contemporânea.

 

REFERÊNCIA

Canevacci, M. (2007, 25 de novembro). Consumo contemporâneo é fetichista e performático. Folha de S.Paulo, São Paulo, Caderno Dinheiro, p. B33.         [ Links ]

Joseph, B. (1996). Acerca de la curiosidad. Psicoanálisis, 18(1),13-25.         [ Links ]

______. (1992). A inveja na vida cotidiana. In M. Feldman & E. B. Spillius. Equilíbrio psíquico e mudança psíquica (pp. 185-194). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Klein, M. (1991). Inveja e gratidão. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Lipovetsky, G. (2005). A era do vazio. Ensaios sobre o individua lismo contemporâneo. Barueri: Manole.         [ Links ]

Mezan, R. (1987). A inveja. In A. Novaes (Org.). Os sentidos da paixão (pp. 117-140). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Perniola, M. (2005). L'arte tra parassitismo e ammirazione. In L. R. Gonçalves & A. Fabris (Orgs.). Os lugares da crítica de arte (pp. 109-129). São Paulo: ABCA; Imprensa Oficial do Estado.         [ Links ]

 

 

*As ideias contidas nos artigos, assim como o uso das imagens como ilustrações, são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores.

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