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Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.65 São Paulo An./June 2018

 

EM PAUTA | INVEJA

 

Inveja feminina: exploração preliminar1

 

Female envy: preliminary exploration

 

 

Adrienne Harris

Psicanalista, professora/pesquisadora no Programa de Pós-Doutorado em Psicoterapia e Psicanálise da Universidade de Nova York. É docente e supervisora do Instituto Psicanalítico do Norte da Califórnia (PINC). Com Lewis Aron e Jeremy Safron, fundou o Sándor Ferenczi Center na New School University, em 2009

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RESUMO

Considerando imagens, contos admonitórios e situações histórico-culturais relativos ao tema da inveja, a autora contextualiza seu interesse pessoal e fala sobre contratransferências induzidas por essa temática. Analisa a inveja à luz da feminilidade e justifica essa exploração preliminar, teórica e pessoalmente. Seu propósito é que o leitor tenha em mente a complexidade específica da temática.

Palavras-chave: Feminilidade. Contos admonitórios. Manifestações histórico-culturais.


SUMMARY

Considering images, admonitory tales and historical-cultural situations related to the theme of envy, the author contextualizes her personal interest, talks about countertransferences induced by this theme and analyzes envy in the light of femininity. It justifies this preliminary exploration, both theoretical and personal, so that the reader has in mind the specific complexity of the subject.

Keywords: Envy. Femininity. Admonitory tales. Historical- cultural manifestations.


 

 

Meu plano neste artigo é iniciar evocando imagens e contos admonitórios sobre inveja e, assim, abordar o problema por meio de algumas manifestações históricas. A seguir, quero situar em minha própria história adulta meu interesse pela inveja, falar um pouco sobre as contratransferências induzidas por esse tema. A partir daí, talvez de modo não surpreendente demais, passarei a considerar a inveja relacionada à feminilidade. A justificativa para essa exploração preliminar teórica e pessoal, antes de realizar qualquer relação com algum material clínico, é meu desejo de que o leitor tenha em mente sua específica complexidade.

Deve-se abordar a inveja das mulheres tanto do ponto de vista social quanto do intrapsíquico. Ela é uma estrutura profundamente arcaica, um fragmento primitivo de vivência psíquica, mas também é um para-raios para o processo social. A meu ver, a inveja nas mulheres se nutre ou se origina no contexto de condições históricas de constrição e de privação. O que torna interessante a narrativa de desigualdades históricas de gênero para clínicos e psicanalistas é podermos pensar com mais exatidão como essas experiências social e historicamente estruturadas são mediadas e transmutadas em estruturas intrapsíquicas. Na compreensão contemporânea da intersubjetividade como construção conjunta, a partir do instante das nossas primeiras interações, nas descrições de formas primitivas potentes de conhecimento processual em bebês e crianças pequenas, em trabalho sobre a transmissão transgeracional do trauma e sobre as origens sociais da regulação do afeto, temos ferramentas conceituais para estudar a transmissão sutil da dinâmica social e psíquica de pais para filhos.

A respeito da inveja, sugiro que vergonha, ansiedades, uma série de afetos depressivos em relação a muitos aspectos da "feminilidade" podem ser transmitidos por meio de intricadas transações sensoriais e afetivas das díades mãe-filha na situação inicial de apego. Tocar, olhar, maneiras de segurar e de falar são formas de se relacionar baseadas em muitas experiências sociais e somáticas e inevitavelmente são encharcadas de emoção ou ampliadas afetivamente. Essas formas de comunicação transgeracional podem produzir identificações criptografadas ou explícitas, com narrativas e roteiros concomitantes. A inveja e seu inverso, o medo de ser invejado, estão entre os possíveis afloramentos de como se mentaliza, deseja e imagina um filho. Essas fantasias, reveries ou formas de conhecer um filho são transmitidas em interação interpessoal e, claro, absorvidas pelo filho de maneiras únicas e criativas. Se o filho for uma menina e a mãe for mulher, a história carregada e os significados da feminilidade como realidades sociais e psíquicas estão todos na mescla. As construções de gênero são assombradas pela história, ainda que feitas de forma intersubjetiva como territórios singulares e criativos de significado.

 

História da inveja

Começo com um olhar para o material histórico sobre a inveja e com uma narrativa que em geral produz um frisson perturbador no ouvinte. A inveja é apreendida em um conto admonitório de William Langland, no grande poema "Piers Ploughman", do século XIV. Um homem invejoso e outro ganancioso, andando em um bosque, encontram um elfo, que promete conceder um desejo a um deles contanto que o segundo receba em dobro. O homem voraz decide deixar o outro formular o desejo para poder receber em dobro. O invejoso pensa com cuidado e diz: "Deixe-me cego de um olho". Ouvimos, embalados nesse conto, muitos medos e fantasias familiares ao trabalho clínico - castigo pela ganância, prazer com o infortúnio alheio, hostilidade misturada à autodestruição e aos riscos de ser objeto ou sujeito da inveja.

A inveja tem uma história complexa como problemática moral e social, muito antes do seu surgimento como constructo psicodinâmico. Ela entra na consciência ocidental como um dos sete pecados capitais, conjunto codificado no século VII, apesar de recorrer a sistemas anteriores, árabe, cristão e cabalístico, para suas metáforas, simbolizações e significados. Na iconografia árabe, muitas vezes é caracterizada como doença ligada a certas cores e deformações do corpo: tom amarelado, icterícia, bochechas faciais e nádegas frias ou amarelas. Pode-se retratar a inveja de diversas formas corporais virulentas: um diabo defecando moedas; um olho protuberante, saliente e assassino; um cachorro sarnento. Uma pintura cristã a visualiza como uma mulher (com frequência, ainda que nem sempre, a inveja é uma forma feminina) com duas espadas surgindo de cada um dos olhos. Uma espada simboliza o ódio ao bem do outro e a outra representa o prazer com o infortúnio do outro; schadenfreude.

A doutrina medieval e teológica da inveja a vincula à fofoca, à ânsia por notícias sobre a angústia alheia, ao cinismo e à incapacidade de acreditar na bondade ou nas boas intenções de outra pessoa. Se os outros parecem plenos de bondade ou de recursos espirituais, isso desencadeia nos invejosos uma vivência de privação seguida de raiva impotente. O grande codificador da inveja, Gregório VII, discorre sobre esse pecado, argumentando que "da inveja brotam o ódio, o boato, a detração, o júbilo com o infortúnio do próximo e a contrariedade por sua prosperidade". E também a inveja gera raiva, "pois se observa o psíquico por meio da ferida interna da inveja; além de perder também a brandura da tranquilidade. A alma infeliz, uma vez aprisionada por esse vício de princípio, volta-se para a loucura por iniquidades multiplicadas": um ciclo de ódio, medo de retaliação e a inevitabilidade da repetição.

A partir do material histórico, tomo a ideia de que é mais provável a inveja surgir como um problema e barreira ao desenvolvimento interno e público em períodos de mobilidade relativa do que em culturas mais tradicionais ou formações sociais em que se administra a inveja de forma institucionalizada. Uma característica interessante da história dos sete pecados capitais é o fato de a sua classificação por ordem de gravidade ter mudado em períodos históricos diferentes. O medievalista Brian Stock (1983) ressalta que a inveja só se torna proeminente na doutrina religiosa do século XII, e essa mudança coincidiu com alterações nas noções de subjetividade, o lugar flutuante do indivíduo em uma ordem social ancorada com menos solidez, a ascensão das cidades e a economia de mercado2. Um marcador do que se descreve como reorganização do interesse no indivíduo é a mudança da confissão geral para a individual, movimento que identifica e constitui a individualidade e a subjetividade de maneira nova e intensa.

Com exceção da tradição kleiniana, pouco se teoriza a inveja em psicanálise. Esse relativo silêncio e a desatenção também ocorrem fora da psicanálise. A inveja é tratada de forma extensa e profunda em antropologia, na literatura etnográfica em que magia, bruxaria e rituais para se proteger do mau-olhado (preocupações e temores com onipotência e inveja destrutiva) formam um componente potente de muitas culturas ditas primitivas. Mas, na filosofia e na teoria social de sociedades avançadas modernas, a inveja é trabalhada de modo bastante inadequado. Talvez Klein tenha sido forçada a retornar ao valioso trabalho descritivo de Chaucer ou de Dante.

Ao surgir no discurso moderno, muitas vezes se confunde inveja com ciúme, outras vezes com admiração e se emaranha com relatos de hostilidade e de justiça moral. Ela é o vício do forasteiro e, na teoria social, frequentemente transmite anseios patologizados e sentimentos moralmente ambíguos sobre desigualdade. Mais do que nos teóricos sociais modernos, a imagem medieval da inveja tem maior profundidade psicológica.

O retorno ao interesse pela inveja é um aspecto central da teoria kleiniana, que a caracteriza como um sentimento profundamente destrutivo que surge do vazio e de mundos internos devastados, pois esvaziar o leite e a bondade do outro deixa o self envenenado e danificado, gerando também um ciclo de ódio, de medo de represália, e a inevitabilidade da repetição. Como uma correnteza turbulenta bastante perversa, a inveja, em seu ir ou vir, pode derrubar se a pessoa for objeto ou sujeito dela.

Se os outros parecem repletos de bondade ou de recursos espirituais, no invejoso isso desencadeia uma vivência de privação seguida de raiva impotente. Melanie Klein vinculava a inveja à oralidade, ao complexo amor e ódio intensos ao seio nutridor. Mas associar a inveja ao desespero e ao vazio é igualmente convincente. Quando Klein começou a escrever sobre a temática, ela recordou Chaucer: "Com certeza, a inveja é o pior pecado que existe, pois todos os outros são pecados apenas contra uma virtude, enquanto a inveja é contra todas as virtudes e contra toda bondade" (1957/1980, pp. 176-235). Nisso, Chaucer evoca o ponto de vista medieval popular sobre a inveja - o pior pecado por ser um ataque direto à generosidade de Deus, a toda bondade. Seria um pecado "perene" por conter ódio à caridade e à generosidade, uma paixão obsessiva insaciável até que o mundo externo possa se mostrar tão arruinado e devastado quanto o mundo interno.

Em palestra radiofônica, em 1937, Joan Riviere resume de forma vívida o poder da inveja, seu domínio sobre as primeiras experiências de privação e vulnerabilidade e sua pesada carga de agressividade. A agressividade destrutiva pode ser incitada em situações em que a mágoa, a privação ou a perda real ou suposta forem sentidas de forma intensa. "Um desejo não realizado dentro de nós, se for suficientemente intenso, pode criar uma sensação semelhante de perda e, assim, despertar agressividade. Sente-se a dependência como perigosa, pois envolve a possibilidade de privação". A inveja flui como resposta agressiva à perda e à imobilização, ambas envolvidas na dependência inicial.

Como a inveja é incitada por experiências conjugadas de hierarquia, exclusividade, escassez e relativa imobilidade, certos grupos ou indivíduos podem sentir seu aguilhão de modo mais agudo. Na medida em que as mulheres se sentem especialmente marginalizadas e imobilizadas em relações de dependência, a vivência debilitante da inveja parece inevitável. Entre elas, a hierarquia, em condições gerais de desigualdade e de acesso escasso a muitos tipos de poder, provoca e exacerba a inveja. Apenas algumas situações mais bem estruturadas permitem certa realização e exercício da ambição, deixando uma toxicidade especialmente intensa para a impotência relativa. Em circunstâncias de possível mobilidade, o fracasso ou a incapacitação parece um problema excessivamente pessoal. Pode-se rastrear isso em mudanças aceleradas específicas da cultura de imigrantes, em que, às vezes, séculos de transformação social ficam encapsulados em uma ou duas gerações. A mobilidade de classe também pode causar um tipo de dor intensa entre gerações.

 

A marca registrada da inveja na contratransferência

Meus encontros pessoais com a inveja decorrem de uma história em grupos de trabalho e políticos e da prática clínica. Eu situaria minha preocupação profissional com a inveja no interesse de longa data pela relação complexa, e muitas vezes problemática, das mulheres com sua própria agressividade (Harris, 1997; Harris & King, 1989). Isso levou-me a escrever sobre a ambição das mulheres, as batalhas das mulheres com a criatividade, a dificuldade entre elas em relação à tutoria e à capacidade criativa e, mais recentemente, às narrativas do desenvolvimento de meninas masculinizadas. Na base de todo esse trabalho está a sensação de que as mulheres elaboram seu fascínio e medo da própria agressividade em uma variedade ampla de maneiras conflituosas e contraditórias. As transgressões de gênero de meninas masculinizadas e a masculinidade fetichizada podem mascarar variações de conformidade e de dilema. Contudo, aquelas ligadas de modo mais convencional ao gênero, presas em circuitos de invejar e de serem invejadas, enfrentam as mesmas inibições e conflitos a respeito de ação e domínio. A agressividade ainda é uma espécie de batata quente psíquica com a qual as mulheres, assim como os homens e as mulheres ao seu redor, lidam de for-mas diversas, distorcidas e deslocadas.

Comecei a escrever sobre mulheres e agressividade em um livro editado sobre políticas de paz em que vários autores argumentavam que, ao longo do século, na vida pública, as mulheres faziam seu trabalho político sob diversos disfarces (Harris & King, 1989). Maternidade, natureza pacífica e irmandade "natural" eram as máscaras com as quais gerações de mulheres abriram seu caminho no mundo. Esses disfarces seriam tentativas de gestão de imagem e de negociação social, que enfatizam a receptividade e a maternidade benignas, mascarando a ambição, a rebeldia e a oposição3. As dificuldades da liderança feminina com gestão de imagens devem ser evidentes para qualquer pessoa que observe as respostas do público e da mídia a Hilary Clinton.

No interior de grupos políticos de mulheres, muitos outros tipos de divisões letais e proibições da agressividade se desenvolviam de forma mais encoberta. Projetos recentes sobre feministas dos anos 1970 (Snitow & Duplessis, 1998) documentam o alto custo, para muitas mulheres, das profundas (e, muitas vezes, inconscientes) barreiras ao domínio e à liderança. A empolgante agitação da democracia e da prática anarquista na década de 1970 provocou mudança social e pessoal efervescente. Mas o impulso democrático também poderia encobrir uma história mais cruel. Em nome de princípios muito idealizados de compartilhamento, igualdade e receptividade feminina, muitas vezes a capacidade de agir e a ambição eram punidas com severidade e sancionadas do ponto de vista social. A inveja sem dúvida era o verme escondido nas maçãs brilhantes da vida feminista.

Nenhum desses dilemas seria novidade para alguém imerso na análise de processos de grupo. Ao longo dos anos, escutei meu colega Zeb Schachtel falar sobre o caos de gênero em grupos ao estilo de A. K. Rice Tavistock. As mulheres na liderança são sempre extraordinariamente passíveis de ataques e ressentimentos. A expectativa ininterrupta da maternidade desinteressada e o medo de retaliação da mãe-monstro acabam prejudicando. A negociação da criatividade, a afirmação, a autoridade e muitas formas de vida profissional baseadas na agressividade ainda exigem das mulheres reviravoltas na imagem e diversas maneiras de andar na corda bamba. Observando a política em minha e em outras instituições psicanalíticas, aprisionadas a uma gama de encenações, adquiri uma espécie de radar para a inveja. É claro que também tenho minha cegueira para a inveja quando o problema é meu.

Talvez não seja surpresa que, ao escrever sobre inveja, é muito mais fácil nomeá-la como um aspecto da transferência. Não obstante, nossa inveja pode ser estimulada por diversos aspectos dos analisandos: juventude, recursos, poder e, talvez de forma mais aguda, esperanças de mudança. Se alguns elementos da prática analítica surgem da compreensão da perda e de limites, para dizer de forma abreviada, de uma posição depressiva vivida, a oferta de segundas oportunidades, ou de perspectivas de movimento ou crescimento, deve trazer certa parcela de inveja. Quiçá alguma inveja deva ser administrada para conduzir o que alguns autores argumentam como característica no manejo do desenvolvimento pós-edípico. Eles identificam a tolerância à decepção e a renúncia à condição de ser especial e ao amor primário como condições necessárias para permitir que o paciente ame em outro lugar. Certamente deve haver grande medida de inveja nos processos de término. Há uma espécie de dor nessa odisseia pessoal.

A inveja viceja em muitos cenários institucionais e coletivos. O feminismo, por todas as suas esperanças utópicas ou talvez exatamente devido a elas, não é uma prótese suficiente para o tipo de impacto corrosivo e inibidor da agressividade recusada e da capacidade de ação frustrada. Esses processos, em sua maioria ocultos, afetam as questões de liderança para as mulheres, podendo comprometer o fato de dar e de receber tutoria. Os problemas são bidirecionais, contudo, essas análises sociais de inveja e de agressividade são insuficientes, precisando ser aprofundadas e elaboradas por meio da avaliação dos fundamentos intrapsíquicos e inconscientes da inveja.

 

Inveja e feminilidade

Para compreender a inveja das mulheres é preciso ter um pé na história e outro na dinâmica do apego inicial e da vulnerabilidade do bebê. Penso que essa preocupação com a vida psíquica construída de forma histórica e social, mas com intensa motivação dos processos inconscientes, é uma característica da abordagem relacional. Especialmente as teóricas relacionais/feministas (Benjamin, 1988, 1995; Flax, 1990; Dimen, 1991, 1995; Chodorow, 1976, 1992) honraram de diversas maneiras o compromisso de integrar o histórico ao intrapsíquico, de observar como agem na vida consciente e inconsciente as barreiras ao desejo, as sanções à agressividade feminina, a estrutura de mobilidade diferencial e o acesso ao poder sob o patriarcado.

Como enfocarei a inveja em sua relação com o gênero, em particular com a feminilidade, desejo manter em ação outra contradição. Muitos aspectos da vida psíquica e muitas vivências de inveja e de competitividade, em teoria, não dizem respeito a gênero. Mesmo assim, acredito que falar de gênero de forma hegemônica, ou seja, como categoria, ainda conserve experiência significativa. A transmissão da experiência de gênero, uma espécie de assombração transgeracional, constitui uma das problemáticas mais interessantes da psicanálise, ao mesmo tempo que desconstruímos o gênero como essencial, natural ou monolítico4.

Apesar de a inveja não ser a prerrogativa única ou traço da falha em um gênero, inúmeras vezes é uma questão delicada na feminilidade e uma fonte de perigo e de dor entre as mulheres, através ou dentro das gerações. Invejar ou ser invejada está emaranhado às lutas de muitas meninas e mulheres com ambição e realização, estragando de maneira muitas vezes singular e diabólica inúmeros progressos para a fartura ou lazer, ou prazer ou poder. Baseio-me na obra de Joan Riviere para pensar no aguilhão específico da inveja das mulheres. O medo de ser objeto de inveja requer a renúncia a qualquer sadismo, agressividade e competividade, encobrindo esses sentimentos intensos e perigosos com estilos de reverência, cuidado ou flerte. Curiosamente, várias mulheres parecem fazer pouca distinção entre ser ativa, ambiciosa, sádica, destrutiva ou estar com raiva. Essas experiências distintas do ponto de vista conceitual se confundem e se misturam, como é possível notar no campo da competição e, mais profundamente, na competição entre mulheres.

Também quero argumentar contra o texto de Riviere e sugerir que a inveja em si pode ser um disfarce, em particular, pode mascarar o desejo homossexual das mulheres. A inveja transmite não só destrutividade e ódio, como também anseios, especialmente os que são ocluídos no amor corporal mãe-filha. A inveja materna inclui os desejos da mãe, as ansiedades concomitantes, bem como a força repressora punitiva e perigosa pela qual essa figura geralmente é mais conhecida.

Se a expressão frustrada do amor homossexual feminino estiver entremeada por inveja, é possível considerá-la como o tipo de solução defensiva que Emmanuel Ghent descreveu, quando anseios de entrega e de ligação criam ansiedades intoleráveis e, assim, tornam-se padrão para a submissão e o masoquismo (Ghent, 1990). Esse é um dos efeitos letais das ansiedades mediadas pela cultura que podem perturbar ou macular a experiência mãe-filha. Ou, para pensar de outro modo, fazer parte dos elementos conflitantes da vergonha e do prazer, conscientes ou inconscientes, na sedução enigmática da mãe em relação à filha.

Com base em material clínico, tem sido possível verificar e discutir esses aspectos. Tenho argumentado que laços invejosos contêm uma espécie de cinza vulcânica amarga, resíduo do amor bem como registro do ódio e da competição. Faz parte das anti-gas condições sociais das mulheres a transmissão transgeracional do trauma que esse processo esteja tão implicado na vida de mãe-filha. Sobrecarregada por medos de onipotência, de causar dano e de ser abandonada, a relação passiva demais de certas mulheres com sua inveja e a inveja dos outros marca o laço inicial com a mãe. É um laço em que a excitação é rejeitada com frequência e em que formas encobertas de ódio e de agressividade podem velar o vazio e a negligência.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
ADRIENNE HARRIS
University Place, 80/5
10003 – Nova York – Nova York
adrienneeharris@gmail.com

Recebido 19.06.2018
Aceito 30.06.2018

 

 

Tradução: Tania Mara Zalcberg.
1 Este artigo é parte de um extenso trabalho apresentado em reunião científica do Instituto de Psicanálise de São Francisco, em 08 out. 2001. Uma versão anterior foi apresentada no painel To Have and Have Not: Clinical Uses of Envy, na American Psychoanalytic Association, na cidade de Nova York, em dez. 2000. Escrito para ser falado, mantivemos o tom coloquial (informal) da narrativa, inclusive no tocante a certas referências bibliográficas. Agradecemos à autora a autorização para publicarmos apenas uma parte do seu texto (N.E.).
2 No período mais antigo de codificação dos sete pecados capitais, a inveja estava quase no final da lista. A prioridade era para as preocupações com o corpo, a gula, a luxúria etc. Aparentemente isso se ligava à antiga tradição de práticas religiosas e espirituais que envolviam meditação, transe e ascetismo. Antes de sua codificação como inveja, provavelmente esse pecado era "tristeza", tristitia, por isso, podemos notar os sombrios elementos de depressão envolvidos tanto na inveja quanto na agressividade.
3 Por volta da Primeira Guerra mundial, o partido Women's Peace muitas vezes defendeu posições políticas como questões morais em nome da maternidade, mesmo que suas principais porta-vozes não fossem mães. A capacidade feminina e a afinidade "natural" assumida pela paz deram impacto moral ao ativismo e à defesa da paz. Essa postura diminuiu os aspectos mais assertivos e agressivos do trabalho político dessas mulheres. Com efeito, elas envolveram suas demandas políticas em uma garantia tranquilizadora para homens e mulheres. "Não se preocupem, estamos apenas dando continuidade à função materna em geral agora ampliada para cuidar do mundo social mais amplo." Esta estratégia política, de ver alguma afinidade das mulheres com a paz, continuou no Women Strike for Peace (WSP), um grupo da Segunda Guerra Mundial que prosseguiu na era do Vietnã. Hoje é com um olhar moderno, na verdade pós-moderno, que se revisita esse grupo, organizador de protestos intensos e ruidosos contra a proliferação de armas nucleares e que procurou causar impacto no cenário mundial durante as lutas internacionais por tratados e pela proibição de testes nucleares. Mas elas o fizeram transmitindo continuamente uma visão muito estereotipada das mulheres: rolaram um pano de prato repleto de assinaturas pela Avenida Pensilvânia. Uma mulher, em testemunho na audiência do Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara, alegou sua preocupação, como mãe, com o estrôncio 90 no leite do cereal das crianças. O WSP era apenas um grupo de mulheres e mães tentando fazer os homens prestarem atenção à segurança e ao futuro das crianças. Ao testemunharem diante do Comitê, agiram como cabeças de vento. Vestiam estolas de pele e luvas na audiência, traziam rosas e aplaudiam cada uma que testemunhava. Comentaristas da época descreveram a cena no Comitê como uma confusão, todas as tentativas de farejar comunistas e bêbados foram desviadas com um toque levemente feminino. Quando um membro do comitê perguntou a respeito de comunistas nas fileiras do WSP, uma das mulheres alegou que desenvolvera seu grupo a partir da lista de cartões de Natal de outra mulher.
4 Embora este trabalho trate da inveja em mulheres, quero abordar rapidamente as diferenças de gênero, vinculando-as à inveja, em relação à agressividade. Admitindo que as generalizações têm seus limites, eu diria que, em minha experiência, os homens geralmente receiam prejudicar as mulheres e, com certeza, as temem. Acho que os homens são suscetíveis à vergonha muito aguda no que se imagina como lapsos "fálicos", ainda que com frequência existam ternura e vulnerabilidade sob forma de recusa e excisão. Sentir-se em risco de agressão de outros é menos proeminente para as mulheres, um fenômeno interessante, das as condições reais de risco para as mulheres tanto na família quanto no mundo. É mais provável que as mulheres sintam vergonha e ansiedade naquilo que se pode chamar de impulsos "fálicos", expressos como medo de ser ou de ter demais. Devido a todas as mudanças e movimentos sociais e históricos do século passado, há algo a respeito da agressividade que codifica a experiência como "masculina" e, portanto, local potencial de acusação e de autocensura para homens e mulheres, embora as condições de censura possam ser bastante específicas quanto ao gênero. Não se trata de argumento em favor do pacifismo inerente às mulheres nem que as diferenças de gênero nos níveis de agressividade sejam tão globais. Eu diria que, até certo ponto, todas as experiências de gênero são assombradas pela história, transmitindo resíduos traumáticos que se integram em traduções específicas singulares. Não obstante, ainda é surpreendente que a agressividade sirva tantas vezes como marcador de limites, ponto psíquico em que o gênero parece importar e é diferenciado. Nesse contexto, a inveja pode ser expressão secreta da agressividade (com mais frequência um veículo para mulheres) ou manifestação de frustração (com mais frequência uma fonte de vergonha e humilhação para os homens).

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