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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.65 São Paulo An./June 2018

 

EM PAUTA | INVEJA

 

Debaixo dos louros caracóis

 

Under the golden locks

 

 

Celia Blini de Lima

Psicanalista, membro associado à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Mestre e doutora em psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo tratamos da inveja, sua importância no trabalho analítico, principalmente considerando quando se apresenta como um ponto central na análise. Procurei tratá-la a partir de uma visão um pouco ampla, trazendo alguns autores que abordam o tema, buscando iluminar aspectos menos evidentes de sua expressão e enfatizando o prejuízo pessoal da convivência dessa presença dentro do eu. Trazemos recortes do trabalho com Guida, mulher de 45 anos, para apresentar os vestígios da sua presença e promover um momento para pensarmos em qual teoria nos apoiamos para compreendê-la, uma vez que essa escolha modifica o encaminhamento na clínica. Ainda que a inveja seja um sentimento que pode criar dificuldades nos relacionamentos, principalmente nos mais íntimos, as marcas internas são profundas e permanentes, criando um sentimento de insatisfação perene.

Palavras-chave: Inveja. Desejo. Frustração. Incompletude. Falha ambiental.


SUMMARY

In this article we deal with the theme of envy given its importance in analytical work, especially when it presents itself as a central point within the analysis. I tried to treat it within a rather broad vision, bringing some authors who deal with the theme, with the purpose of illuminating less obvious aspects of their expression, emphasizing the personal injury of the coexistence of this presence within the self. We bring clippings of the work with Guida, a woman of 45 years, in order to present the traces of her presence and to promote a moment to think about which theory we support to understand it, since this choice, modifies the referral in the clinic. Although envy is a feeling that can create difficulties in relationships, especially the most intimate ones, internal marks are deep and permanent, creating a feeling of perennial dissatisfaction.

Keywords: Envy. Desire. Frustration. Incompleteness. Environmental failure.


 

 

Nossa alma incapaz e pequenina
Mais complacência que irrisão merece.
Se ninguém é tão bom quanto imagina,
Também não é tão mau quanto parece.

(Mario Quintana)

Muita história para contar de uma alma feminina, sofrida, que vagou perdida em busca de acolhimento. E como era portadora de sentimentos que estavam encapsulados dentro do seu Eu e transformados em algo bem "distante" do sentido original, mantiveram-se ocultos por longos anos. E como não somos uma parte, aquela que desejaríamos ser, penso que Quintana, no poema em epígrafe, revela-nos que somos inteiros e imperfeitos, nem tão bons nem tão maus.

Vamos neste artigo destacar o tema da inveja, que tem muita importância no trabalho psicanalítico, embora não seja novo e seja improvável que os analistas não o reconheçam em seu trabalho, principalmente quando se torna destaque no processo da análise. Sem dúvida esse sentimento pode acontecer muitas vezes na análise de pacientes, quando o analista faz uma boa interpretação que satisfaça o paciente ou quando coloca ideias ainda não pensadas, ou para falar de outra forma: torna-se um "seio bom", capaz de nutrir. Nessa situação deixa claro no campo analítico as diferenças entre ambos, tornando-se assim alvo de admiração, um sentimento positivo, que pode fazer emergir a inveja.

A inveja é um sentimento humano que pode a olhos vistos ser identificado em comentários ou atitudes, como no caso do conto "Verba testamentária", de Machado de Assis:

[...] desde os mais tenros anos, manifestou por atos reiterados que há nele algum vício, alguma falha orgânica. Não se pode explicar de outro modo a obstinação com que ele corre a destruir os brinquedos dos outros meninos, não digo os que são iguais aos dele, ou inferiores, mas os que são melhores e mais ricos. (2007, p. 164)

O menino era Nicolau, que ia trocando os brinquedos pela beleza das roupas que rasgava, pelos rostos que arranhava, depois ataques aos mais adiantados da escola.

Nicolau amava em geral as naturezas subalternas, como os doentes amam a droga que lhes restitui a saúde; acariciava-as paternalmente, dava-lhes o louvor abundante e cordial, emprestava-lhes dinheiro, distribuía-lhes mimos, abria-lhes a alma. (2007, p. 166)

Os olhos que podem ver e desejar o que o outro tem são os olhos da inveja, mas, como diria Mezan: o que é desejado é se apropriar de algo que já pertence a outro. E o que pertence ao outro não necessariamente se refere a algo concreto, que se pode tocar, estragar ou ter:

Não é algo que está no objeto nem no outro, mas na fantasia do que inveja - está no imaginário e ele supõe que quem possui a tal coisa está feliz. (Mezan, 1987, p. 167)

A inveja se alegra com a dor de outrem, mas isso não deixa o invejoso feliz. (Mezan, 1987, p. 168)

Pretendo me deter não na expressão da inveja que é possível ser intuída pelos indícios objetivos e aglomerados com maior alcance, como no caso de Nicolau no conto citado acima, que não consegue segurar seus impulsos e conviver com as diferenças sem destruir.

Há sentimentos de inveja que não são facilmente identificáveis, porque só estão nos olhos de quem os vê e no coração de quem os sente e nem sempre é possível observá-los de fora. Vêm do interior, do mais fundo do ser, e não podem inicialmente ser contidos pelo sujeito, pois emergem como um impulso para, um desejo que pede passagem. E podem se dar silenciosamente, sem cheiro, sem cor, e ainda vividos pelo sujeito como algo condenável ou "feio", podendo gerar vergonha, disfarces e manter-se oculto. Esse é o caso de Guida, hoje uma mulher, a quem vou me referir neste artigo.

Muitos teóricos abordaram esse tema, e se colocaram de forma diferente sobre sua origem ser inata, constitucional ou gerada por uma falha ambiental. Foi Klein quem muito se interessou pelo estudo da inveja, que ela considerava primária, expressão de impulsos destrutivos e de base constitucional, e ateve-se primordialmente a observar os mecanismos primitivos do bebê. Outros autores, como Winnicott, Money-Kyrle, Green, Bion, entre outros, consideraram importante reconhecer uma fase de dependência total do bebê em relação ao meio ambiente, portanto ao seio bom (Klein) ou à mãe suficientemente boa (Winnicott), o que muda o foco para a análise da inveja e coloca a possibilidade de referir-se a uma falha ambiental ou a um interjogo de emoções da mãe e do bebê, uma interface em que falta algo para acomodar as angústias derivadas de alguma privação para o bebê, que poderia ser a incapacidade de reverie da mãe (Bion). Se considerarmos que as projeções do bebê não foram acolhidas pela mãe, por qualquer razão (depressão, ansiedade ou outro estado), essa frustração poderá fazer surgir emoções agressivas que serão dirigidas a ela, por não ter podido transformá-las antes de serem introjetadas pelo bebê.

Todas essas questões são importantes e trazem a chance de abrirmos caminhos à investigação. Se seguíssemos a hipótese de o olhar da mãe conter decepção ou inveja, poderíamos considerar que esse sentimento introjetado pelo bebê o levaria a um conceito distorcido do próprio eu? O bebê, nessa situação, incorporaria uma mãe invejosa e a inveja se tornaria parte do bebê? Estaríamos diante de uma mãe cujas condições emocionais seriam insuficientes para dar conta das angústias de seu bebê diante de um parto difícil, demorado, como foi o de Guida? Como esses fatores interferiram na constituição de seu ser?

Estamos aqui observando como é possível o olhar da mãe refletir as emoções do bebê ou seu próprio desejo e emoções, favorecendo o "falso self" - "Um remete ao Outro". Na troca, Winnicott mostrou o papel do espelho do rosto da mãe, mais precisamente o seu olhar. É necessário que a criança se veja nele antes de ver-se, para formar seus aspectos subjetivos, isto é, narcisistas. O espelho é um plano, uma superfície de reflexão e uma área de projeção. A projeção é capaz de formar uma imagem idealizada (do Um ou do Outro) ou, pelo contrário, persecutória (dos mesmos) (Green, 1988): "A identidade não é um estado, é uma busca do Eu que só pode receber sua resposta reflexiva através do objeto e da realidade que a refletem" (Green, 1988, p. 45).

Winnicott nos chama a atenção para sua concepção dos primeiros momentos de vida de um bebê que viveu uma situação aterradora, colocando que há em situações como essa uma variância entre a mãe suficientemente boa e a mãe suficientemente não boa, o suficiente para que o bebê tenha sabido da existência de um seio bom. Como já me referi anteriormente, o bebê pode projetar seu sofrimento e desconforto e esse conteúdo pode não ser acolhido e transformado pela mãe, então o seio pode deixar de ser um seio gratificante e que acalma o bebê. Pode, portanto, perder sua qualidade de seio bom. Nessa variância do atendimento da mãe, diz o autor, há o suficiente para que "o bebê tenha sabido da existência de um seio bom, mas não o conseguiu, exceto como algo que surgiu como uma invasão ou intrusão (impingement)" (Winnicott, 1994, p. 345).

Assim, a inveja poderia decorrer de um processo de desilusão que começa pela adaptação da mãe e inclui o fracasso gradual dela em adaptar-se, combinado com a capacidade crescente que o bebê tem de lidar com esse fracasso. Seria portanto a inveja um subproduto do relacionamento mãe-bebê em desenvolvimento e da organização do ego do bebê. O ódio que pode aparecer nessas condições pode referir-se ao fracasso em ser atendido. (Winnicott, 1994, p. 340)

Já na visão de Klein, a inveja seria do seio que alimenta e a quem o bebê tem de dar o mérito. Isso poria em curso os impulsos destrutivos e geraria ataques ao seio, uma possível desvalorização e depreciação e o desejo de destituir o objeto (seio) de seu valor.

Money-Kyrle também aponta para uma falha na função de acolhimento da mãe. E o autor apresenta assim sua concepção das primeiras relações do bebê: ele busca encontrar realizações adequadas para parear com sua preconcepção inata e se não as alcança, pelo fato de o objeto não ter a capacidade de acolher seu sofrimento, deflagra-se uma falha ambiental, que talvez revele a presença de uma mãe ansiosa ou narcisista. Poderia então aparecer uma inveja diante da contraparte - bebê que sofre, mãe que está livre do sofrimento. Há grande chance de a inveja ser despertada por uma mãe resistente à introjeção dos estados de mente dolorosos da criança.

Desse modo, os dois fatores - a inveja da criança e a resistência da mãe - podem mutuamente se reforçar, impedindo a formação do conceito de uma mãe boa, sentida como capaz de providenciar tanto o amor como a capacidade de administrar as dificuldades com a ajuda do pensamento. (Money-Kyrle,1975, p. 416)

Há ainda outro tipo de falha que pode ocorrer, segundo Kyrle, que afetaria o reconhecimento dos conceitos ou categorias e a mãe ou o bebê. O reconhecimento errôneo, que coloca o objeto na categoria errada, seria uma falha secundária e uma defesa contra a dor da inveja.

Se abordei um ponto de divergência entre Klein e Winnicott, também encontrei neles e em Green, Money-Kyrle, Bion, entre outros, pontos de convergência: todos dão muita importância às relações iniciais com a mãe e à relevância da qualidade de continência e reverie nesse momento inicial, por serem determinantes na construção do bom objeto interno, da capacidade de restaurar a unidade pré-natal perdida e da sensação de segurança. Se houver qualquer falha nessa circulação de investimento, poderá haver consequências danosas para a formação do Eu. E, devido à chance de generalização desses vínculos iniciais, a desconfiança nas relações amorosas poderá aparecer em outras ligações afetivas.

A escuta psicanalítica nos põe atentos e à espera de outros fatos e relatos, ou indícios em atitudes, para que essa hipótese se confirme. Como todo relato é subjetivo e nos envolve, corremos o risco de sermos levados para longe da origem dos fatos, como acontece num sonho relatado, já modificado pelo contador do sonho. Ter paciência e prudência na interpretação é o melhor a fazer.

Nunca poderíamos supor que os caracóis louros não eram louros, eram de um castanho intenso. Falo de Guida, uma menina que desde criança foi loura. E, como era um segredo entre ela e a mãe, que também a preferia loura, ninguém nunca supôs o que ficara debaixo dos louros caracóis. Essa história ficou encoberta e negada a todos que a conheceram, exceto aos mais próximos de sua família. Somente em análise, depois de estabelecida uma relação de muita confiança, Guida fez essa revelação. Mas não assim diretamente. Contou-me seu drama de menina: que não era aceita pela mãe que a queria de cabelos louros e que passava chá de camomila e a expunha ao sol para clarear os cabelos, até poder levá-la a um salão para finalmente tingi-los, o que Guida faz até os dias de hoje. Uma atitude que sem dúvida gera - em quem se vê diante de uma mãe assim - a hipótese de que ela faz da filha um objeto de seu desejo, sem se preocupar com os danos causados - uma atitude narcísica, intrusiva, sem vacilo. Teria essa menina nascido com cabelo? Seriam castanhos? Como teria se manifestado essa mãe em seus primeiros contatos ao olhar para essa menina? Teria se decepcionado ao se deparar com a cor de seus cabelos? E como teria se estabelecido essa relação mãe-bebê, os primórdios da relação com o seio?

Guida, hoje com 45 anos, é a filha mais velha de uma família com três irmãos: uma irmã dois anos mais nova e um irmão quatro anos mais novo. Sempre teve um relacionamento difícil com a mãe, que, segundo ela, nunca a valorizou e, em contrapartida, com sua irmã mais nova, Berenice, a relação sempre foi afetiva e empática, embora a total preferência da mãe seja o irmão. Ele nasceu com problemas de saúde e exigiu muitos cuidados e atenção de sua mãe. E, mais tarde, quando um pouco crescido, apresentava problemas de comportamento na escola. A irmã era muito extrovertida e apresentava certa dispersão nos estudos, diferente de Guida, mais fechada e com bons resultados na escola. Foi sempre muito difícil para Guida compreender a ligação da mãe com sua irmã, uma vez que ela era a filha comportada, e que na sua visão deveria ser valorizada e querida.

Guida sentia-se injustiçada e julgava sua mãe inadequada pela forma como apresentava e definia a realidade e também por não conseguir tratar de maneira madura e adequada a diferença de afinidade que tinha com os filhos. Deixava transparecer suas preferências ou predileções nos vínculos, promovendo rivalidade, ciúmes e insegurança no amor.

Para nos aproximarmos de aspectos tão encobertos na estruturação de uma pessoa como no caso de Guida, contamos com nossa escuta atenta, livre, flutuante e a nossa relação com a paciente como elementos de ajuda. Temos que ter o cuidado para nos livrarmos do laço com que a narrativa de cada sessão e a sequência delas pode nos envolver. Quando a narrativa é feita para nos confundir ou nos direcionar, isso ainda fica mais difícil. Por isso acredito que a análise, como diria Bion, tem de seguir com cautela, especialmente quando nos põe num caminho tão bem traçado para fecharmos quase um "veredito". Ao contrário, quando tudo leva a crer em algo, penso que é a hora de "abrirmos nossos olhos e ouvidos analíticos" e colocar a dúvida nas certezas que nos conduzem e deixar que a relação que caminha traga fatos ainda não relatados ou vividos para serem confrontados, se for o caso. Assim, poderiam nos levar a outro vértice de observação e interpretação dos mesmos, quem sabe propulsor de mudanças nas narrativas, ou na própria versão dos mesmos fatos, propiciando insights na dupla analítica.

Escolhi não abordar esse caso pelo vértice de uma relação triangular em que o excluído teria ciúme, porque penso em algo que se refere mais a querer ter o que o outro tem do que se sentir excluída. Guida quer ter a atenção que Berenice tem da mãe, e iria mais longe, queria ser Berenice. Isso começa a fazer certo sentido e nos encaminha para esse vértice - a inveja. Um sentimento que, quando emerge, apresenta-se tal qual uma águia, ave de rapina, pronta para pegar e levar consigo sua presa, aquela que deseja, devido a sua astúcia e agilidade. Como os olhos da águia que vislumbram a caça do seu desejo, os olhos de Guida destacam as relações de amor que acontecem próximas a ela. Cabe dizer que Berenice é loura desde que nasceu e tem uma relação empática e amorosa com sua mãe, muito diferente da de Guida, que se esforçou por ser vista pela mãe como alguém especial e só conseguiu dela uma certa indiferença. Isso aproxima nossa compreensão da busca de Guida pelos cabelos louros, uma esperança de ter com a mãe essa relação amorosa.

A inveja não vem sozinha, em geral ela vem acompanhada de voracidade, tem a fome de tudo e tem seu regozijo no mal do outro que inveja. Não basta querer ter o que o outro tem, o prazer é de destituí-lo do que ele tem, mesmo se pudesse ter de outra forma, seu desejo não se aquietaria. A situação se complica quando o que a pessoa deseja e reconhece não é algo material que ela possa vir a ter, mas é o amor no olhar da mãe para sua irmã e irmão e não para ela, Guida.

A história se repete na escolha de seu parceiro, quando ela cresce, pois também escolhe um homem que só tem olhos para sua mãe. É por ele que se apaixona e passa muitos anos desejando ser olhada com amor, o que não encontra em seus olhos, nestes o que mais vê é o ódio.

Guida cresceu nesse lugar e, parafraseando o conto de Machado de Assis, parecia ter um vício - o de conseguir ver o amor nas relações próximas a ela, mas não sentir esse amor nas suas relações interpessoais e significativas. Quem sabe por ter se desenvolvido assim, seu vértice de observação, distorcido por esse sentimento de inveja, a tivesse colocado afetivamente distante nas relações e num papel de observadora compulsiva na percepção do amor nos vínculos primordiais e importantes de sua vida. Ela era capaz de identificar o amor para os outros, mas não sabia como conquistá-lo para si. Poderíamos conjecturar que a inveja é um elemento que dificulta o sujeito desenvolver sua capacidade de amar? Por isso, ao seu redor se constroem vínculos sem amor, talvez mais de conveniência e de racionalidade?

Temos aqui a possibilidade de nos aproximar da saga do invejoso - ficar preso a "uma vida não vivida", que não aconteceu de fato, mas somente na imaginação de Guida. Com certeza esse olhar dela para o que lhe falta tornou-se um fato recorrente em sua vida e "pode ter se tornado um luto prolongado ou uma interminável e enfurecida lamúria do que ela não foi capaz de viver" (Phillips, 2013, p. 12).

Outro ponto que podemos abrir, ao nos referirmos à inveja, é a busca do ideal, que restabelece a perfeição do narcisismo per-dido na infância ou leva a uma busca de "ser especial", uma necessidade que impede de enxergar a nós mesmos. Torna presente um sentimento de incompletude, próprio do "mito do potencial": "O mito do potencial faz com que reclamar e sofrer pareçam as atitudes mais reais que tomamos na vida, transformando nossa frustração numa vida secreta de rancores" (Phillips, p. 13).

Guida, pela dificuldade de aceitar suas frustrações e substituí-las, carregava essa dor de acreditar que tinha esse poder de realizar transformações no mundo e nas pessoas, um pensamento recorrente e delirante que tomava grande parte de sua vida. Relaciono a inveja como um possível motor da continuidade desse seu modo de ser.

Assim, de olhos abertos, Guida pode ter construído uma vida de ilusão, a ilusão do próprio potencial, a ilusão de mudar o mundo, presa a ideias fixas, pensamentos recorrentes e quem sabe delirantes. Talvez tenha sido essa dor do que os olhos veem - o que deseja estar endereçado a outro - sua certeza de existir. Ela parece, muitas vezes, desejar pensar e conservar assim uma conclusão do mundo - um mundo injusto.

No que diz respeito ao desejo, tão frequente na inveja, de despojar o invejado do que ele tem, não pude observar nenhum desejo explícito desse tipo nas relações mais próximas de Guida. O que pude perceber foi certo regozijo quando essas pessoas estavam enfrentando situações difíceis na vida ou vivendo fracassos, como se a vida se encarregasse de dar o troco.

Debaixo dos louros caracóis...

Muita história para contar...

Nossas vidas imaginárias não são - ou pelo menos, não necessariamente - alternativas ou refúgios para as vidas reais, mas sim uma parte essencial delas. (Phillips, 2013, p. 18)

 

REFERÊNCIAS

Assis, M. de (2007). Verba testamentária. In J. Gledson (Org.). 50 contos de Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Bion, W. R. (1967). Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Civitarese, G. (2010). "Cesura" como discurso do método de Bion. In Livro anual de psicanálise (Vol. XXIV, pp. 145-163).         [ Links ]

Freud, S. (1974). Sobre o narcisismo - Uma introdução (Vol. XIV). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Green, A. (1988). Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Klein, M. (1975). Inveja e gratidão e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Mezan, R. (1987). Inveja. In A. Novaes (Org.). Os sentidos da paixão (pp.117-140). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Money-Kyrle, R. (1975). Sucesso e fracasso na maturação mental. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Phillips, A. (2013). O que você é e o que você quer ser. São Paulo: Benvirá         [ Links ].

Quintana, M. (2001). Mediocridade. In ______. Poesias. São Paulo. Editora Globo.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1994). Melanie Klein: sobre o seu conceito. In ______. Explorações psicanalíticas (pp. 338-347). Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
CELIA BLINI DE LIMA
Rua Leopoldo C. Magalhães Jr., 1098/22
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tel.: 11 99972-1166
celiablini@gmail.com

Recebido 02.05.2018
Aceito 28.05.2018

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