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versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.65 São Paulo enero/jun. 2018

 

EM PAUTA | INVEJA

 

Criar inveja

 

To create envy

 

 

Rui Aragão Oliveira

Psicanalista titular com funções didáticas da Sociedade Portuguesa de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor organiza uma compreensão psicanalítica de diferentes expressões do ato criativo, da diferenciação com a vivência criativa e dos recursos egoicos inerentes a ambos os processos. A tolerância à diferença é necessária para o desenvolvimento e para a criatividade. Mas a diferença pode também provocar inveja, e quando experienciada de forma associada aos sentimentos de injustiça e de humilhação pode potencializar a sua destrutividade, que dificulta a mudança no processo psicanalítico.

Palavras-chave: Criatividade. Inveja. Mudança psíquica.


SUMMARY

The author organizes a psychoanalytic understanding of different expressions of creative act and creative experience and of the egoic resources inherent in both processes. Tolerance of difference is necessary for development and for creativity. But difference can also provoke envy, and when experienced in a way associated with feelings of injustice and humiliation can potentialize their destructiveness, which hinders change in the psychoanalytic process.

Keywords: Creative act. Creativity. Envy. Psychic change.


 

 

As expressões "ficar estupidificado" ou "ser pouco esperto" remetem-nos para uma ausência de criatividade, na sua forma momentânea ou mais permanente. Desilusão, tédio ou irritação parecem surgir espontânea e complementarmente na nossa resposta. Ficar estúpido pode significar uma renúncia total na procura de satisfação de forças pulsionais, mesmo que de uma satisfação parcial se venha a tratar.

Freud desde cedo salientou e investigou o mecanismo mental da sublimação, que concebeu como uma função genial para "articular" e dirigir criativamente a atividade pulsional. Porém, a pulsão epistemofílica e o seu manifesto inerente à criatividade traduz um processo mais estrutural do funcionamento psíquico, capaz de definir a relação entre o sujeito, o seu mundo interno e a realidade circundante. E o que nos pode colocar, em última análise, perante as questões "por que razão estupidifiquei?" e "como é possível ser tão estúpido?".

Dessa forma, compreendemos que a pressão da excitação pulsional, mais ou menos disruptiva, e que num primeiro momento é desintegrada e destabilizadora, apresenta-se fundamentalmente como perturbadora da estabilidade egoica, parece procurar alcançar um lugar para si própria na complexidade da estrutura do Ego. Melanie Klein intuiu a sua presença no brincar infantil. Se a pulsão é introjetada, integrada e colocada a serviço da atividade do Ego, nessas condições podemos estar ante o que habitualmente denominamos criatividade.

Numa recente e brilhante discussão teórico-clínica em que comparam os contributos de Donald Winnicott e de Melanie Klein, dois dos mais destacados investigadores britânicos contemporâneos, Jan Abraham e R. H. Hinshelwood (2018) afirmam de forma esclarecedora como em ambos, Winnicott e Klein, a criatividade não se restringe somente ao ato reparador, decorrente de ataques da inveja destrutiva, como é corriqueiramente reconhecido (talvez pelo destaque que Hanna Segal lhe veio a dar num dos artigos mais lidos da história da psicanálise). O uso de simbolização é já uma forma criativa por si mesmo, e que Klein sempre afirmou, como Hinshelwood bem clarifica.

Winnicott referiu-se ainda à criatividade primária como uma pulsão psíquica inata, que parece relacionar-se com a forma como o bebê interpreta o mundo desde o seu começo. Distinguiu também entre ter "vida criativa" e o "ato criativo" - de fato, um artista bem-sucedido pode, no entanto, não viver de forma criativa (Abraham & Hinshelwood, 2018, p. 125).

A criatividade primária assume um lugar determinante na capacidade lúdica de adquirir múltiplas formas no modo do sujeito se sentir, de Ser e se expressar, quer na relação com o mundo exterior, quer na dinâmica de sua vida interior.

Na relação analítica, essa criatividade primária pode potencialmente ganhar corpo, respirar e desenvolver-se, fazendo com que o processo analítico adquira uma vivacidade nem sempre presente ou nem sempre reconhecida anteriormente pelo sujeito. Prende-se com uma espécie de processo alucinatório (Roussillon, 2015) que Winnicott tão bem descreveu associado à "capacidade de jogar", que se inicia primariamente na forma como a criança cria internamente um seio em simultaneidade com o contato estabelecido com o seio materno real. De certa forma, a criança tem a ilusão de ter criado o que de fato encontrou. A estrutura intermediária que unifica o objeto criado e o encontrado na realidade estabelece, assim, uma categoria mental diferenciada, capaz de ligar a realidade interna e a externa, e surge inerente ao processo criativo.

A criatividade deve ser integrada na estrutura egoica, evitando o perigo do processo dissociativo, sendo capaz de responder aos ataques invejosos e destrutivos que a frustração tenha desencadeado por si mesma.

A problemática do fracasso da criatividade parece resultar da impossibilidade de integração de uma dada situação, que, não podendo ser transformada numa experiência "para si própria", suscitará uma maior destrutividade para pensar e para se pensar.

Dessa forma, podemos conceber a inveja e os ataques invejosos como uma reação ao trauma inicial, diretamente relacionado com uma falha nos processos de integração de vivências primitivas. A empatia maternal primária, que Winnicott chamou de "preocupação materna primária", deverá permitir a introdução gradual de uma lacuna tolerável entre o que é criado e o que a criança de fato encontra. Nesse processo crucial, a criança será capaz de criar em parte o que encontra, desde que o objeto real seja suficientemente adaptativo.

No início da atividade criativa temos que a frustração inerente ao contato com a realidade é fundamental, na medida em que, adaptando-se, permite o espaço e o tempo ilusório, sem desencadear uma dissociação.

Como afirma Roussillon (2015), classicamente o que tem sido mais enfatizado é o movimento projetivo - a procura da criança para encontrar o que criou projetivamente. Mas Winnicott salientou também a importância do feedback complementar: os processos de "retorno" através dos quais a criança internaliza a observação e a reflexão do modo como os objetos primários respondem ao seu próprio movimento e estado do seu Ser - a internalização da forma como são vistos, vividos e refletidos pelo ambiente materno, e de como esse processo é integrado.

O encontro com o objeto, remetendo o espaço e o tempo para a ilusão, é inerente ao papel desempenhado no desenvolvimento da capacidade simbólica. Esse encontro deverá apresentar-se suficientemente flexível, para permitir deixar-se transformar pelos requisitos do processo criativo.

Freud esteve essencialmente atento à falta do objeto pós-encontro: sentir e sofrer a sua ausência, negar, alucinar ou simplesmente contar histórias que transformem a relação com a dor depressiva da perda. Psiquicamente, na concepção freudiana o objeto ganha importância quando desaparece (o exemplo do jogo da bobine), e o pênis é invejado quando sentido em falta ou desqualificado (Mitchell, 2018, p. 303).

Mas com M. Klein (1975), o conceito de inveja aplica-se dirigido à mãe presente que tem tudo: onipresente e onipotente, que é capaz de cuidar e de alimentar. Os bons aspectos do seio representam o protótipo da bondade maternal, da generosidade e criatividade para que a criança estabeleça o bom objeto interno. A inveja decorrente ameaça destruir esse bom objeto tornando-se um obstáculo determinante ao desenvolvimento.

O sujeito pode então descobrir-se intolerante para receber a bondade, e identificar-se com o Bom Objeto, vivenciando sentimentos profundos de humilhação. Pode, num registro por vezes agido quase de forma compulsiva, elaborar tentativas repetidas para possuir a invejada qualidade por identificação, aspirando alcançar uma posição em que somente tem de dar e jamais receber de um outro qualquer de quem dependa.

Os sentimentos invejosos ficam particularmente afastados, mediante mecanismos projetivos, bem como o objeto que o exerce, num registro que reconhecemos associado a organizações em retiros psíquicos defensivos (Steiner, 1993 e 2011). O sujeito fica supostamente identificado à generosidade e à idealização.

Sabemos que a tolerância à diferença é necessária para o desenvolvimento e para a criatividade. Mas a diferença pode também provocar inveja, e quando experienciada de forma associada aos sentimentos de injustiça e de humilhação pode potencializar a sua destrutividade.

O sentimento de indefesa e desamparo interno, promovido por uma intensa inveja, relativamente integrada egoicamente, pode levar o sujeito a resguardar-se numa espécie de mecanismo narcísico compensatório. Ele procura exercer a sua influência nas relações, fazendo-se sentir presente através das reações que desencadeia, mediante o sorriso, o choro, a sedução, a compaixão, procurando a confirmação de uma imagem boa refletida no olhar do outro.

De forma sutil e por vezes bem criativa, o sujeito pode inconscientemente fazer com que uma plateia, mesmo que com relutância, atenda as suas necessidades mais primitivas de desamparo. Empenhado, esforçado e investido, ele faz uso das suas funções egoicas para criar sentimentos invejosos que necessita presentes e confirmados recorrentemente em seu redor.

São processos inconscientes criativamente desenvolvidos para alcançar a admiração e a inveja que lhe confirmam suas qualidades de forma coerciva e poderosa, que podem mesmo originar uma estrutura de organização narcísica (Steiner, 2011).

Numa outra formulação, esses processos inconscientes podem ainda originar uma forte inibição, com receio de provocar destrutividade, sentimentos invejosos ou mesmo o roubo de pensamentos, sentimentos e ideias pelo outro, e que temem de forma particularmente angustiante e com enorme sofrimento. Resultam frequentemente num retraimento que semeia insatisfação e o sentimento de ter mais para dar do que demonstrado ou reconhecido - e de ter sido "pouco esperto".

Quando no processo analítico, impedem a mudança que o sujeito tanto ambiciona, instalando um impasse em que o sujeito organiza o seu investimento, com esforço e empenho, para estar atento, presente e cooperante para procurar paradoxalmente que nada mude internamente. Abriga o desejo secreto de que o analista promova a expectante mudança, porém somente centrada no terapeuta: parece apenas aguardar que o analista mude e o gratifique narcisicamente.

 

REFERÊNCIAS

Abraham, J. & Hinshelwood, R. H. (2018). The clinical paradigms of Melanie Klein and Donald Winnicott: comparison and dialogues. Londres: Routledge.         [ Links ]

Klein, M. (1975). Envy and gratitude. In ______. The writings of Melanie Klein (Vol. 3). Londres: Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1957).         [ Links ]

Mitchel, J. (2018). The question of femininity and the theory of psychoanalysis. In G. Kohon. British psychoanalysis: new perspectives in the independent tradition (pp. 290-305). Londres: Routledge.         [ Links ]

Roussillon, R. (2015). Pour une métapsychologie de la créativité chez D. W. Winnicott. Journal de la psychanalyse de l'enfant, 5(2),159-180.         [ Links ]

Segal, H. (1986). The work of Hanna Segal: delusion and artistic creativity and other psychoanalytic essays. Londres: Free Association Books.         [ Links ]

Steiner, J. (1993). Refúgios psíquicos: organizações patológicas em pacientes psicóticos, neuróticos e fronteiriços. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

______. (2011). Seeing and being seen: emerging from a psychic retreta. Londres: Routledge.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
RUI ARAGÃO OLIVEIRA
Largo de Andaluz, 15/2
1050-002 – Lisboa – Portugal
raragao20@gmail.com

Recebido 29.05.2018
Aceito 16.06.2018

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