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versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.65 São Paulo enero/jun. 2018

 

EM PAUTA | INVEJA

 

A tristeza e a inveja na obrigação de ser feliz1

 

Sadness and envy in the obligation to be happy

 

 

Denir Camargo Freitas

Mestre em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo e membro filiado ao Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo aborda o desenvolvimento do conceito de felicidade considerando algumas ideias dos filósofos gregos, dos psicanalistas e de pensadores contemporâneos. Questiona o que seria a obrigação de ser feliz nos dias atuais e o sofrimento que esta ordem acarreta ao ser humano para lidar com a tristeza e a inveja provocada pela exposição de fotos, selfies e likes na mídia social.

Palavras-chave: Psicanálise. Tristeza. Inveja. Mídia.


SUMMARY

This article approaches the evolution of the concept of happiness considering the Greek philosophers, psychoanalysis and contemporary philosophy. It questions what would be the obligation to be happy in the present day and the suffering that this order entails to the human being to deal with the sadness and the envy provoked by the exposure of photos, selfies and likes in social media.

Keywords: Happiness. Psychoanalysis. Sadness. Envy. Media.


 

 

Eu amo demais a vida para querer apenas ser feliz.
(Bruckner, 2010)

Já há algum tempo que observamos a presença de um dever de ser feliz como nunca existiu antes. Sentimos como se hoje tivéssemos a obrigação de ser feliz. Ser feliz, ou pelo menos demonstrar felicidade, na nossa sociedade atual, tornou-se o valor primordial e quem não o atinge sente-se um "estranho no ninho" ou que obteve algum tipo de fracasso. São inúmeras as mensagens enviadas pelo celular, por e-mail, na mídia social, nos programas de TV, inclusive em alguns jornais televisivos, nas propagandas, para a revalorização da vida cotidiana como receita para ser feliz. Ou seria para a euforia? Soma-se a isso que atitudes como esperar e refletir tornaram-se obsoletas, pois tudo tem de ser realizado rapidamente: pense rápido, leia rápido, coma rápido, durma pouco, decida agora, aproveite já... E para tanto chegam até nós mil receitas garantindo a tão procurada felicidade. Dentre elas algumas chamam a atenção pela condição que impõem: a felicidade está na saúde perfeita, no corpo glorioso, no sexo sem limites, para citar algumas. Curiosamente, também encontramos na maratona de evitar o sofrimento, a busca do prazer sem risco (Zizek, 2003), sem ter que pagar o ônus pelo prazer recebido: o café sem cafeína, a cerveja sem álcool, o sexo virtual (o sexo sem sexo), o pão sem glúten, o leite sem lactose, o creme sem gordura, o bolo sem farinha, o doce sem açúcar, para citar alguns. E consta ainda a ordem de fazer tudo como se fosse a última vez, no sentido de supervalorizar os fatos do cotidiano.

Será mesmo isso possível? Insistem para que façamos tudo com paixão, como se fosse a última vez. Porém, toda vez que ouço "faça tudo como se fosse a última vez" eu associo (com o sinistro?) com uma antiga música de Chico Buarque:

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
[...] E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego. (1971)

Essa busca desenfreada de ser feliz tem como fim apenas a morte ou alcança seu objetivo em vida? O que é a felicidade? Essas e outras questões relacionadas aparecem muito num processo de análise. Tenho observado que se deixar levar por elas, sem uma reflexão, pode ser enlouquecedor.

Foi com o surgimento e enraizamento da filosofia grega, por volta do século IV a.C., que se aprimoraram as linhas de pensamento para que o homem por si mesmo buscasse a felicidade, e não mais justificasse seu destino pelos caprichos dos deuses (Abbagnano, 1971/ 2007).

Em grego, felicidade se diz eudaimonia, palavra que é composta do prefixo "eu", que significa "bom", e de daimon, que, para os gregos, é uma espécie de deus de menor importância (na hierarquia dos deuses) que acompanhava os seres humanos, tutelando-os. Ser feliz, nessa época, era desfrutar do favor dos daimones, isto é, daqueles poderes divinos que também poderiam ser hostis. Essa noção aparece muito nos temas da tragédia grega, em que a felicidade humana para os deuses é um brinquedo. A concretização de ser favorecido pelos "poderes divinos", de ser livre da "má vontade divina", é o que é chamado de "prosperidade", "sorte", em termos tanto da riqueza material como do sucesso. O pensamento corrente é "prosperidade dada pelos deuses", para tornar-se próspero por ter sido abençoado (Lauriola, 2006; Olivieri, 2012).

A partir das reflexões filosóficas, grandes pensadores gregos mudam esta relação entre os deuses e a felicidade. Para eles, a felicidade nasce da virtude, que é gerada pelo conhecimento e não está mais à mercê das vontades divinas. É a busca do conhecimento que leva à sabedoria, a sabedoria, à virtude; e a virtude, por fim, concretiza a felicidade.

Seria muito ingênuo pensar que em todas as culturas em todos os tempos a noção de felicidade foi sempre a mesma. Sua definição transitou muito entre sabedoria, autossuficiência e os prazeres do corpo, porém, quando são guiados pelo conhecimento e pela sabedoria convertem-se em moderados e não excessivos. A relação entre felicidade e alma surge com Platão, no século IV, em que a felicidade plena só pode ser alcançada após a morte, quando a alma se separa do corpo que a impedia de concretizar a plena sabedoria nascida da contemplação das ideias (Paula, 2014, pp. 32-37).

Da mesma forma, predominou durante bom tempo a noção de felicidade para os filósofos estoicos que, para serem felizes, não deveriam desejar da natureza nada mais do que é necessário para sua existência e não lutar contra as coisas que acontecem, contra o destino. Para ser feliz, segundo esses filósofos, devemos aceitar tudo, sem oposição a nada, com um mesmo ânimo, ou então com indiferença, evitando o excesso das paixões, que fazem o homem se opor à natureza entrando em desarmonia com ela. Enfim, será apenas pela razão que podemos bem agir não só consigo mesmo como com a natureza. Esta é a virtude, e a virtude é a felicidade (Paula, 2014, p. 57).

Com os hedonistas (do grego hedone, prazer) fica claro que o prazer é essencial à felicidade, levando também em conta os prazeres sexuais. Por outro lado, os epicuristas, nos séculos III e II a.C., tentam aperfeiçoar o hedonismo de forma mais passiva, na busca do prazer pela ausência da dor, enaltecendo a renúncia das coisas que possam originar dor e sofrimento (Olivieri, 2012).

É interessante notar que a definição de felicidade, no dicionário da língua portuguesa atual, mantém uma conotação bem próxima do que pensavam os filósofos gregos, pois, o termo "feliz", do latim felix, significa afortunado, ditoso, sortudo, além de contente, bem-sucedido, próspero e, ainda, abençoado, bendito. O mesmo com a palavra "felicidade", do latim felicitas, substantivo feminino, estado da pessoa feliz, além de sinônimo de sorte e de bom êxito.

Observamos, inclusive, que as diferentes concepções gregas sobre a felicidade têm em comum a noção de que a possibilidade de atingi-la está no poder de cada indivíduo, na satisfação das necessidades pessoais e dos prazeres. A valorização do corpo sempre aparece, mas também os valores éticos como a virtuosidade e justiça. Outro ponto essencial, com exceção de Platão e seus discípulos, é o fato de a felicidade poder ser pensada e alcançada neste mundo e com vistas a esta vida.

No entanto, muitos séculos depois, sob a influência das religiões, como o cristianismo2, o tema da felicidade altera tal situação, pois felicidade passa a ser um bem,

[...] mas tratado como um bem perdido por conta do pecado original. Pior do que uma não felicidade é uma felicidade perdida por um ato culposo. [...] felicidade e tragédia se articulam [...] lembrete amargo de uma falha [...] Deus ofendido, que oferece aos homens [...] uma "esperança de felicidade" a ser vivida num outro Reino. (Mello, 2009, p. 185)

Em outras palavras, viver aqui na Terra é para reparar um erro que macula nós todos desde o nascimento, até mesmo o feto no ventre da mãe, como descendentes de um pecado cometido por Adão e Eva.

Santo Agostinho (354-430) é emblemático para a representação do pensamento filosófico cristão, porque para ele a felicidade está na comunhão com Deus: procura a verdade, não simplesmente para ser sábio, mas para ser feliz, e coloca tal felicidade onde realmente ela se encontra, a saber, "[...] na posse de um bem imutável [...] a verdade - Deus" (Ep., 118, 1:6). Desse modo, quem procura a felicidade busca a Deus, e, somente ao encontrar Deus, encontrará a felicidade (Costa, 2014).

Para a filosofia cristã, mais do que a felicidade, o que irá contar é a salvação da alma.

Na Idade Média, sabemos que a Igreja católica fornecia "chaves" aos seus devotos com o intuito de alcançarem a felicidade e obterem um acesso rápido ao Paraíso, porém, não mais neste mundo. A felicidade ficou para trás ou para amanhã, na nostalgia ou na esperança, nunca no tempo presente, enquanto esta fase durar.

Com o surgimento da psicanálise, a partir de 1900, o conceito de felicidade é compreendido de uma forma totalmente diferente, tendo em vista, dessa vez, o funcionamento do psiquismo, com o uso dos conceitos de consciente, inconsciente e de repressão.

A religião em geral nos propõe uma modalidade de adaptação à realidade realizando os mais antigos anseios da humanidade sem para isso termos que suportar as limitações e as privações trazidas pela civilização, explica-nos Freud (1930/1987), porém, conclui que esse resultado é impossível, pois tal promessa só pode tratar-se de uma ilusão. Mas a ilusão não é necessariamente falsa, caracteriza-se pelo fato de ser um produto dos desejos humanos e sempre há uma ínfima chance de ser realizada, por isso é tão impossível refutá-la quanto prová-la. A ilusão, para manter-se, não precisa ser confirmada pelo real, ela não é necessariamente falsa, mas caracteriza-se pelo fato de ser um produto dos desejos humanos.

Ilusão e busca pela felicidade sempre andaram juntas. Elas acompanham o ser humano há muito e fazem parte de sua história.

O conceito de felicidade, para Freud, não tem nenhuma ligação com a sorte, com deuses, ou com Deus, é tido como um objetivo humano irrealizável do ponto de vista do funcionamento psíquico e das exigências culturais. Ele afirma (1927/1987) que os homens se esforçam para alcançar e preservar um estado feliz, mas no máximo o que a sua constituição psíquica vai lhe permitir "corresponde à satisfação mais repentina de necessidades retidas [...] e somente é possível como um fenômeno episódico". Para esse grande pensador, os homens "querem a ausência de dor e de desprazer [...], vivenciar intensos sentimentos de prazer". Essa bem parece ser, mais do que nunca, a forma de viver na atualidade, a busca incessante de ser feliz.

De outra forma, o filósofo francês contemporâneo Bruckner (2010) faz um alerta para este clima de obrigação de ser feliz, que ele também captou de modo muito interessante: "a felicidade não é mais um acaso que nos acontece, um momento favorável em relação à monotonia dos dias, ela passa a ser nossa condição, nosso destino". Pode ser um mecanismo de autopersuasão, de autoconvencimento da felicidade da própria existência para negar a frustração que causaria a tristeza. Assim descreve a noção de felicidade em voga hoje:

Mais que o dinheiro, ela [a felicidade] é a nova ostentação dos ricos. Eles estão na mídia e exibem seus carros de luxo, sua vida amorosa extraordinária, seu sucesso social, financeiro ou mesmo moral, quando colaboram com instituições beneficentes. A felicidade virou parte da comédia social. (Bruckner, p. 163, 2010)

E a tristeza, onde foi parar? Vemos que hoje a tristeza não está na moda, diferentemente do final do século XIX e início do século XX, em que certo ar de tristeza e melancolia tinha o seu charme, principalmente entre os poetas que cantavam "tristeza não tem fim, felicidade sim"3 (Fortes, 2009). Atualmente, a regra vigente é a de "pensar positivo", ou melhor, ter a felicidade como o horizonte de todos os acontecimentos da vida. A subjetividade é caracterizada pelo hedonismo, isto é, o dever de ter prazer e evitar a dor, o sofrimento. Esse modo de posicionar-se diante da dor é uma marca do nosso tempo - o que Lasch chama de "cultura do narcisismo" e Debord de "sociedade do espetáculo".

No entanto, a meu ver, está se formando um paradoxo. A sociedade da felicidade, do espetáculo, pouco a pouco está se tornando uma sociedade perseguida pelo medo da morte, do envelhecimento, da doença, e isto, quer queira ou não admitir, traz um grande sofrimento que precisa ser negado a qualquer custo.

Sentar-se à mesa não é mais um lugar de convívio familiar onde a comida era classificada em boa ou ruim e os acontecimentos diários compartilhados:

A mesa não é mais somente o altar das suculências, um momento de partilhas e de trocas, mas também virou um balcão de farmácia onde se pesam, minuciosamente, gorduras e calorias, onde se mastigam com consciência alimentos que passaram a ser agora apenas remédios. É preciso beber vinho não por prazer, mas para reforçar a elasticidade das artérias, comer pão integral para acelerar o trânsito intestinal, etc. (Bruckner, 2010, pp. 64-65)

Por outro lado, as seduções do avanço tecnológico através do uso excessivo dos smartphones e das redes sociais têm contribuído muito para evitar o contato com a tristeza, a frustração, a solidão, causadores de sofrimento, pois atendem a essas vulnerabilidades humanas. Propiciam a criação de uma vida virtual trazendo um conforto por estar em contato com um monte de gente de quem também é mantida uma distância. Porém, o preço é a redução da empatia dos usuários porque elimina o tempo de reflexão e autocrítica, gerando pessoas cada vez mais egoístas e consequentemente menos capazes de manter as vicissitudes de um relacionamento "ao vivo", que é bem diferente do relacionamento online. A conectividade com a internet oferece a ilusão de companhia sem as exigências de trocas da amizade. A tela do celular é usada para desfocar a atenção de si mesmo, porque ficar só tornou-se um problema hoje em dia, no entanto sabemos que os momentos de solidão são importantes para entender nossos comportamentos, encontrando ações que devem ser modificadas nas diversas áreas, a saber, romântica, familiar, pro-fissional ou de relacionamento com os amigos (Turkle, 2015).

Sempre detestamos o sofrimento, é normal. A novidade é que agora as pessoas não têm mais o direito de sofrer, ou de mostrar o sofrimento, pois correm o risco de serem taxadas de looser, perdedor, de fracassado. Então, sofre-se em dobro. Querer que as pessoas se calem sobre a dor é apenas agravar o mal. Freud percebeu isso há muito tempo, em 1895, quando estudou a histeria, o mal do século XIX, cujas raízes estavam não só na proibição de falar sobre sexo como também de fazê-lo. Hoje, é permitido não só falar de sexo como há incentivos para fazê-lo e não há mais proibições, pelo contrário, busca-se ser feliz no sexo e com o sexo. No entanto, constata-se a existência de outros males dos séculos: o mal do século XX foi a depressão e no início do XXI vem a euforia para combater a depressão.

Todo ser humano tem momentos de tristeza, querer esconder isso é enganar a si mesmo antes de qualquer coisa, é iludir-se. A tristeza e a frustração podem ser usadas como molas propulsoras para realizações que podem trazer felicidade.

Sem sentir a dor física a pessoa não aprende o que lhe faz mal, o que deve evitar para não se machucar ou até morrer. O mesmo acontece no psiquismo, se evitarmos a dor psíquica, não pensando sobre esta, não aprenderemos com ela, e terá sido um sofrimento em vão. Ao passo que se a enfrentarmos para entendermos porque estamos tristes, seja sozinho ou com ajuda de uma análise ou psicoterapia, seria uma forma de não repetir sofrimentos que foram impensados.

No seu modo de entender o psiquismo, Freud (1927/1987) afirma que nascemos "selvagens" com relação aos impulsos inatos, ou seja, possuímos desejos jamais condizentes com as leis dos homens ou as de Deus. Na infância, ao passarmos pelo processo civilizatório na relação com nossos pais, acontece a repressão desses impulsos - tais como canibalismo, incesto, sexual, agressividade e ânsia de matar - e acabamos desenvolvendo um sentimento de culpa, que originará uma tristeza: seja pela realização de desejos que entram em conflito com a civilização, com a cultura; seja pela não realização de desejos, o que ocasiona, nesses casos, uma pressão vinda de dentro, do mundo interno. Diante disso é possível entender que pagamos um preço por perdermos a "selvageria" com a qual nascemos e nos tornarmos seres civilizados: o mal-estar. Porém, esse sacrifício constitui uma condição necessária para a manutenção da vida na sociedade, na cultura do indivíduo. Em troca, esta nos oferece a proteção ante a natureza e a regulação dos vínculos recíprocos entre os homens, porque o homem, livre da ação da repressão de tais impulsos, revela-se como uma "besta selvagem". Juntem-se a isso os sofrimentos, advindos principalmente dos relacionamentos interpessoais, as decepções e as tarefas impossíveis que a vida nos impõe inúmeras vezes tal como a encontramos e teremos a infelicidade (Freud, 1930/1987).

Além de nascermos "selvagens", existem dois princípios que regem o funcionamento do aparelho psíquico. São eles, o princípio do prazer e o princípio de realidade, que vão mediar a realização dos nossos desejos (Freud, 1911/1987).

Como já mencionamos anteriormente, para o convívio razoável entre as pessoas há a necessidade de restrições ou o controle das tendências destrutivas (os impulsos "selvagens"), o que produz um conflito em cada ser humano entre as exigências dos impulsos ligados ao princípio do prazer a serem realizados plenamente e as restrições impostas pela civilização (princípio da realidade), gerando um sentimento de culpa. E, num ser culpado, o projeto de ser feliz está comprometido. Por isso no consultório continuamos sendo procurados, muitas vezes, por pessoas que pretendem o alívio de suas dores ocasionadas pelo sentimento de culpa. Com efeito, vamos sempre nos deparar com algum momento que na tentativa de ser feliz ignoraremos como conciliar os dois modos de funcionamento mental.

Penso que até aqui esta reflexão reuniu elementos para oferecer uma breve compreensão sobre o tema da obrigação de ser feliz que leva à busca frenética da felicidade e à negação da tristeza, aproximando-se mais, isto sim, da euforia. Vimos como no afã de ser feliz a felicidade chega ao ponto de tornar-se uma prisão, pois ser feliz torna-se uma obrigação. Atitudes como esperar e refletir tornaram-se obsoletas, pois tudo tem de ser realizado rapidamente: pense rápido, coma rápido, durma pouco, decida agora, aproveite já... Sem pensar, as chances de erro são maiores. Além do erro, o medo de errar também provoca a tristeza, e a tristeza tem de ser abafada, negada. Então, surge a busca por artifícios astutos para suplantar a tristeza, como o excesso de tempo em conectividade com a internet e os aplicativos, como o WhatsApp, e as redes sociais, como o Facebook, que dão a ilusão a seus usuários de que não estão sós.

É tudo muito novo e complexo demais para poder entender sob um único vértice, pois hoje também sabemos por meio de fatos e pesquisas bem atuais que se criou um infeliz paradoxo. É exatamente na busca por comunicação em redes sociais virtuais que o internauta depara-se com uma "vitrine" que pode causar inveja, muita inveja! Há nesse meio uma corrida por maior e melhor status,o que leva as pessoas a compararem seu dia a dia com manifestações exageradas de felicidade editadas com o auxílio de Photoshop, o feed de notícias lotado de viagens para lugares paradisíacos, convites para baladas, likes supervalorizando a popularidade. Pode instalar-se, então, uma competitividade por um bem-estar irreal e inalcançável, produzindo uma geração frustrada e descontente consigo mesma como consequência de sentimentos invejosos.

Hoje, a sociedade do espetáculo invadiu nossa realidade cobrando objetivos muitas vezes inconcebíveis que podem levar a uma vida de mentiras, sem entrar em contato com as emoções, e de dor sufocada, negada. Alguém já disse que estamos convivendo com a "incrível geração de fotos sorridentes e travesseiros encharcados".

A tristeza, assim como a inveja, é a vilã da qual todos procuram fugir, porque entristecer é doloroso e sentir inveja tanto quanto. Estar triste é não estar feliz, então vem a sensação de fracasso. Quantas e quantas vezes ouvi pacientes reclamarem de que prefeririam mil vezes ter uma dor física do que uma dor psíquica tal como a causada pela inveja.

Porém, a tristeza, desde tempos remotos, sempre acompanhou o homem porque faz parte de sua constituição psíquica, de sua vida emocional, e tentar negá-la resulta apenas em sofrer em dobro ou postergar o sofrimento.

É interessante observar a busca da humanidade em suas opções para afastar a tristeza e alcançar a felicidade, entretanto, Freud deixa claro que nenhuma delas é capaz de oferecer a felicidade absoluta e constante, mas, por outro lado, proporcionam uma felicidade "efêmera", devido ao prazer que provocam ou ao desprazer que evitam, pois esta é a constituição psíquica do ser humano.

Hoje, a meu ver, assim como com o gregos e romanos na antiguidade, o conceito de felicidade continua associado ao corpo esbelto, em ser autossuficiente, afortunado, chegando ao hedonismo. E, ainda, querer parecer o que não é para impressionar, cativar, ser aceito e bem-amado, ou será que apenas mais popular?

Não se trata de fazer apologia à tristeza ou de ser contra a felicidade, mas, sim, contra a busca frenética sem reflexão à qual muitos e muitos se entregam, em suas modalidades religiosas, químicas, espirituais, psicológicas, internet e redes sociais virtuais.

A sociedade atual, no meu entender, está sendo regida pela negação da tristeza, em contrapartida a psicanálise acolhe a dor para extrair desta o autoconhecimento e o crescimento psíquico.

Enfim, concordo com aqueles que acreditam existir outros valores que possam suplantar a busca pela felicidade, tais como liberdade, justiça, amor, amizade e trabalho.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
DENIR CAMARGO FREITAS
Rua Celso de Azevedo Marques, 395 - sala 101
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tel.: 11 2606-7561
decafrei@uol.com.br

Recebido 19.06.2018
Aceito 30.06.2018

 

 

1 Este texto, com alguns acréscimos e revisões, teve como base o capítulo 9, escrito pela autora, do livro Por trás dos fatos: a psicanálise pode explicar (Freitas et al., 2017).
2 Foge aos propósitos do presente artigo explanar sobre a noção de felicidade em todas as religiões existentes, mas apenas mostrar que o conceito é dependente não só da cultura como do projeto de vida particular em que está inserido. Como representação de uma cultura religiosa, optamos pelo cristianismo por contar com o maior número de adeptos no Brasil (IBGE/Censo de 2010). Caso o leitor se interesse, fica a sugestão para uma interessante pesquisa sobre a noção de felicidade em sua própria religião.
3 "Felicidade" - música composta por Tom Jobim e Vinicius de Moraes em 1959.

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