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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.65 São Paulo jan./jun. 2018

 

EM PAUTA | INVEJA

 

Quem inveja quem? Uma crítica à noção de inveja inata

 

Rethinking envy

 

 

Gustavo Gil Alarcão

Membro filiado ao Instituto de Psicanálise Durval Marcondes, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutorando no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e colaborador no serviço de psiquiatria do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FM-USP

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RESUMO

O artigo estuda a metapsicologia da inveja. Critica-se a noção kleiniana de inveja inata bem como se demonstram implicações dessa forma de se pensar a inveja, tanto na clínica quanto no uso da psicanálise como ferramenta para pensar o contexto social. Ressalta-se a importância da inclusão da inveja no rol de conceitos psicanalíticos, mas adverte-se para os riscos de seu uso como manutenção de uma visão biológica ou conservadora do homem.

Palavras-chave: Inveja. Metapsicologia. Psicanálise. Cultura.


SUMMARY

The article studies the metapsychology of envy. The kleinian notion of innate envy is criticized. The study presents the implications of this way of thinking envy both in the clinic and in the use of psychoanalysis as a tool to think the social context. The importance of including envy in the list of psychoanalytic concepts is emphasized, but it is pointed the risks of its use as supports to the maintenance of a biological and conservative view of human being.

Keywords: Envy. Metapsychology. Psychoanalysis. Culture.


 

 

Para pensar a inveja, partimos de uma crítica à noção que se estabeleceu, a partir dos anos 1960, via pensamento de Melaine Klein, de que a inveja seria uma característica determinante e inata ao humano. Sem desprezar a riqueza desse aporte teórico para o campo psicanalítico, buscaremos apresentar que o uso da noção de inveja inata produz reificações do status quo, intensificando os mecanismos de conservação das questões examinadas. Por outro lado, se usarmos o conceito de inveja atrelado ao estudo dos contextos, sem estabelecer a priori qual a fonte desse sentimento, temos uma primorosa contribuição para o entendimento de questões individuais e também coletivas. Nessa direção, usaremos um episódio da série Black Mirror, a cena inicial do filme Anticristo, de Lars von Trier, a música As caravanas, de Chico Buarque, e a ideia de Marilena Chauí sobre os "empresários de si mesmos", para discutir o problema apresentado.

O episódio da série Black Mirror, "Arkangel" (2017), mostra uma mãe que instala um chip, no cérebro de sua filha, que lhe permite vigiá-la 24h por dia. O chip funciona como um supervigilante, que controla todos os passos e todos os sinais vitais, além de arquivar indefinidamente todas as informações - é a encarnação do panopticon foucaultiano em tempos pós-modernos e hipertecnológicos.

Partindo dessa ilustração, repensamos a noção de inveja, criticando o viés naturalista no qual a inveja é apresentada como característica inata ao humano.

A inflexão psicanalítica que abriu caminho para a compreensão da magnitude da inveja na constituição da condição humana foi profundamente perspicaz. Contudo, podemos questionar algumas convicções e certezas, dentre estas a proposição metafórica/alegórica de que haveria a priori um seio bom, sobretudo se pudermos indagar com profundidade o que seria "bom". Não podemos predizer de onde emana a inveja a priori. Poderíamos considerar que ela parte do objeto, e não tem o objeto como alvo, e, desse modo, repensar a perspectiva usual de que o bebê inveja o seio, ponderando que a fonte da inveja estaria na mãe?

Dessa forma não precisamos recorrer às categorias de inato, herdado ou natural, mas investigar justamente a configuração da inveja na história de cada pessoa.

Podemos recorrer à epoché suspendendo os julgamentos sobre as fontes e destinos da inveja aprioristicamente. O que nos informam as experiências? De onde parte e para onde é direcionada a inveja? Nossas formulações teóricas podem acompanhar a diversidade dos exemplos humanos e não determinar, sem análise, quais são esses caminhos? E, obviamente, esta discussão só faz sentido porque o modo de pensar resulta no modo de interpretar e agir, seja no plano teórico, seja no plano clínico. Podemos contornar essa dificuldade de forma muito verdadeira, suspendendo a convicção acerca da fonte da inveja, mas mantendo a centralidade de sua importância como um dos mais importantes sentimentos envolvidos no romance familiar que constitui o psiquismo humano.

Essa consideração é útil na medida em que direciona a escuta da clínica e das leituras psicanalíticas sobre os indivíduos, a sociedade e a Kultur. Pessoalmente, e como hipótese provisória, penso que o uso intenso da inveja como sentimento inato e constitucional retirou psicanalistas de debates mais amplos. A utilização desse conceito para compreender fenômenos coletivos ou sociais é uma das formas de expor essa fragilidade conceitual ou seu uso enviesado. Diante de uma realidade que nos mostra explicitamente a violência conservadora que a todo momento e de vários modos resiste em aceitar a diversidade e a legitimidade de minorias, impondo justamente o seio bom, seria precário e quase ridículo partir deste pressuposto, da existência do bom, aprioristicamente determinado.

 

Inveja inata?

Sugeri anteriormente que a voracidade, o ódio e as ansiedades persecutórias em relação ao objeto originário, o seio da mãe, têm uma base inata. Neste trabalho acrescentei que também a inveja, como expressão poderosa de impulsos sádico-orais, é constitucional. [...] A existência dos fatores inatos, referidos acima, aponta para as limitações da terapia psicanalítica. Embora eu perceba isso plenamente, minha experiência ensinou-me que, não obstante, nós podemos produzir mudanças fundamentais e positivas em vários casos, mesmo com uma base constitucional desfavorável. (Klein, 1991, p. 261)

O mal-estar na civilização (Freud, 2013) ratificou decisivamente uma importantíssima posição para muitos psicanalistas: a certeza, e neste ponto podemos usar esta palavra, de que a vida em comunidade, a vida civilizada, carrega uma dose considerável de mal-estar que jamais será banida. O mal-estar é o preço pago pela própria civilização, na medida em que os tabus, sejam eles quais forem, seriam indispensáveis para nos retirar das selvas e nos inserir no mundo de símbolos, linguagem e representações.

Freud construiu uma teoria para a sexualidade humana apoiado nas observações cotidianas de sua clínica que lhe permitiam formular um pensamento que tomava a biologia como apoio para as vicissitudes das pulsões (Freud, 2016). Como marco fundante e específico da psicanálise, o conhecimento se formava prescindindo das teorias da hereditariedade de sua época. Aproximava-se das vidas encarnadas nas histórias, romances e tragédias da humanidade e dos homens, ontem e sempre. Por que reinvocar a condição constitutiva para entender e utilizar a inveja a partir dos anos 1950, principalmente com a escola kleiniana? Tomar qualquer sentimento humano como inato e determinante da sorte ou do fracasso nas vidas é algo que a própria psicanálise havia abandonado como propósito de conhecimento.

A grande força e criatividade da psicanálise foi sair dos laboratórios e se instalar nas casas das pessoas. Esse foi o caminho de Freud, desde o laboratório do Dr. Brücke, um grande pesquisador cuja admiração e influência ele sempre reiterou, ao seu consultório na Berggasse 19 (Roudinesco, 2016). Com isso, a psicanálise direcionou-se às vidas vividas em seus sonhos, desejos, angústias e infortúnios. Abandonamos a constituição porque encontramos outro eixo de estudos. O constitutivo produzia como consequência a ideia de degeneração, algo que infelizmente se aproxima do excerto acima, quando constata que a inveja é inata e determina o futuro de muitas pessoas.

 

Os contextos são indispensáveis

A cada nova vida que nasce, reinicia-se o caminho das pedras: as potencialidades e limites de cada um entrarão nos romances e tragédias das familien. A vida em potência de cada bebê ativa inconscientemente o bebê vivido por cada adulto e desperta (ou não) as formas de cuidar inscritas no psiquismo, por já terem sido vividas por esses adultos e assim sucessivamente. A cada nascimento, a espécie se sacode porque a rede de identificações é convocada, rede que se estende transgeracionalmente ao passado longínquo.

Ao mesmo tempo, é lícito pensar que o cuidado dedicado ao bebê também é resultado do trabalho psíquico realizado por cada progenitor (ou cuidador) até aquele momento, considerando que o caminho das pedras não se esgota com as nossas identificações primárias, por mais decisiva que elas possam ser. Diante disso, fica impossível analisar a inveja (e qualquer situação humana) sem pensar na vida contemporânea e de que modo ela exerce pressão sobre os indivíduos.

Há uma cena na introdução do filme Anticristo (2009), de Lars von Trier, na qual a mãe observa seu bebê caminhando para a janela enquanto transa com seu marido. Lentamente o bebê caminha em direção à janela aberta, e a mulher envolve-se com o prazer, até que o bebê cai enquanto o casal atinge o orgasmo. O diretor focaliza a mulher, e será sobre sua angústia (porque ela fica devastada após isto) que o filme se desenrolará. O pai, que é terapeuta, colocar-se-á como responsável pelo tratamento da mulher. Objetivo, distante e utilitário ele se mantém à parte do sofrimento vivido, oferecendo maneiras muito contemporâneas de psicoterapia para sua mulher/paciente.

A vida do bebê e o prazer dos adultos. Lars von Trier capturou em uma cena uma situação que é realmente emblema da vida contemporânea. Um bebê demanda cuidados absolutos ontem e hoje. Escutando os pais de hoje podemos notar algumas das principais dificuldades: muito trabalho, poucas ajudas, custos afetivos, planos pessoais, ansiedades de toda natureza, questões práticas do cotidiano etc. A redução nos índices de natalidade em praticamente todos os países que se industrializam indica questões a serem pensadas.

Como pensar essas questões? Uma paciente, que sempre quis muito ser mãe, viu-se envolvida em muitas angústias quando precisou voltar ao trabalho. Realmente precisava voltar ao trabalho? Colocou-se esta questão. Sim, precisava. Mas, também, percebeu que queria voltar ao trabalho, não queria abandonar sua carreira. Para o pai, a questão era mais fácil, não sendo demandado diretamente na amamentação, já tinha voltado ao trabalho. O trabalho, esta questão central da vida contemporânea para a grande maioria das pessoas, cujos espaços de intimidade, vínculo e trocas pessoais se virtualizam.

Na cena de Anticristo, a questão é lançada pelo diretor: o bebê caminha para a janela, o ambiente livre para o prazer sexual dos pais. O bebê caminha para a janela aberta e cai; o casal não interrompe a relação sexual. O bebê cai. Bebês e adultos, liberdades, cuidados, riscos, limites, prazeres, culpa: diversos elementos para pensarmos. A liberdade da criança em explorar o mundo e guiada por seus desejos é colocada em paralelo ao desejo sexual dos adultos e à restrição de suas liberdades, ante as responsabilidades que assumem.

Difícil não pensar que a inveja da cena parte dos adultos, que se sabem limitados pelas responsabilidades de sua posição em relação à criança. No mundo que mostra diariamente a difícil fatura de se negociar com os próprios desejos, seja em sua aceitação como também em sua contenção, não parece tão estranho conceber que adultos possam invejar alucinatoriamente e constantemente esta liberdade experimentada pelas crianças. Não se trata de uma explicação banal (infantil x adulto, ou qualquer coisa na linha de uma psicologia adaptativa), mas de pensar que se vivem dilemas que não podem ser simplesmente negados ou desviados nos caminhos da maturidade necessária na história de cada pessoa.

 

Inveja e liberdade

Marilena Chauí (2014), pensando sobre as questões da contemporaneidade, cunhou a expressão "empresário de si mesmo" para demonstrar a penetração do modo neoliberal da economia na vida de cada um. O Markt requer cada vez mais indivíduos superpreparados em todos os aspectos pensáveis (técnico, acadêmico, físico, mental, estético, utilitário etc.), que gerem menos custos possíveis (saúde, previdência, segurança, moradia etc.) e que se pensem dotados de uma liberdade quase irrestrita. Dessa forma, o balanço compensaria e as pessoas, "empresárias de si mesmas", tornar-se-iam ativos atraentes para as empresas maiores, business e enterprises, que assim as contratariam.

Aparentemente mais livres para transitar entre as ofertas de trabalho, as pessoas estão cada vez mais imersas nesta lógica, que não questiona mais o mercado e as condições de trabalho, mas propõe a competição e o mérito como chaves de explicação. Nessa direção precisa-se de fato insistir na ideia de liberdade das pessoas para que as competições propostas pareçam justas, quando não são.

Submersas em demandas que sequer atingem a consciência, as pessoas sofrem. Alucinadamente livres, os empresários de si mesmos buscam as razões para seu sofrimento em lugares cada vez mais deslocados e obviamente não conseguem se dar conta de que estão imersos em lógicas que, muitas vezes, ultrapassam suas questões individuais.

A ingenuidade para tratar a liberdade humana é delicada, sobretudo quando, além das problemáticas coletivamente compartilhadas e das intimamente sentidas, associamos os efeitos inconscientes do psiquismo humano. Nessa complexa inequação, a liberdade seria justamente o saldo possível para cada um. Saldo que não se equaciona alucinatoriamente, mas que se produz mediante o trabalho psíquico de pensar e sentir os encontros e desencontros da vida, abrindo as portas para aquilo que não é consciente, mas que atua desde sempre.

Pensamos numa certa hipótese que recolocaria a inveja como recurso metapsicológico: o bebê não seria portador de uma inveja inata, mas preservaria uma "dose de liberdade" que, quando desejada, se tornaria fonte de inveja, desde que o modo de desejar não incluísse a "dose de renúncia" necessária para tornar essa liberdade real e factível.

Essa inveja se manifestaria tanto pelos efeitos diretos dos descuidos cada vez mais observáveis com os bebês quanto pelos efeitos diretos da idealização radical desta "liberdade in natura", que não deve ser contaminada pelo mundo (e aqui o episódio "Arkangel" é ilustrativo). Descuido direto e idealização radical tornariam o cuidado suficiente algo muito difícil e adubariam o terreno para a inveja.

 

Um efeito do uso da noção de inveja inata

Se os impulsos destrutivos, a inveja e
a ansiedade paranoide são excessivos,
o bebê distorce e amplia crassamente
todas as frustrações de fontes externas,
e o seio materno transforma-se
predominantemente em um objeto
persecutório, interna e externamente.

(Klein, 1991, p. 267)

Do ponto de vista clínico, a psicanálise avançou para o campo das psicoses, perversões e estados limites. Sabemos que, em geral, tais situações psicopatológicas incorrem em muitas dificuldades para as pessoas. Elas passaram a procurar cada vez mais análises ou, como vemos e experimentamos na clínica, a ser "encaminhadas" para psicanalistas. Sabemos também que são processos difíceis.

Se consideramos a inveja como constitutiva ou inata sepultamos as questões: retiramos toda a historicidade de suas vidas, todas as vicissitudes identificatórias e todo romance familiar como parte integrante da formação do psiquismo.

Assim, nada teríamos feito a não ser repetir a fórmula dos séculos anteriores, já usada, por exemplo, pela psiquiatria organicista para entender o psiquismo humano. O problema é que dessa maneira utilizaríamos a metapsicologia como uma bonita moldura para as situações psicopatológicas, na invariância do destino das hereditariedades, sem esmiuçar a intimidade das vidas e de suas histórias.

O estudo das razões da emergência da inveja nesse momento da história da psicanálise e da emergência dessa concepção de inveja é trabalho a ser feito e de muito interesse. As biografias de Melanie Klein bem como seus trabalhos dão boas pistas, mas não encerram a questão.

O que haveria de contextual na época que pudesse dialogar com as proposições da autora sobre a inveja? Segundo Hobsbawm, "A nova autonomia da juventude como uma camada social separada foi simbolizada por um fenômeno que, nessa escala, provavelmente não teve paralelos" (2014, p. 318). Nos anos 1960 eclodiu uma série de manifestações da juventude mundial. Woodstock (1969), Maio de 1968, a contracultura, os anticoncepcionais (1960) são alguns dos acontecimentos que marcavam o contexto.

Inveja e gratidão foi publicado em 1957, quando Melanie Klein (1882-1960) estava com 75 anos de idade. Como os contextos sociais e biográficos da autora dialogam com os conceitos que formulou? De acordo com Pyhllis Grosskurth (1992), biógrafa de Klein, a inveja foi usada em discussões e debates entre psicanalistas como forma de desacreditar determinadas posições e mesmo pessoas. São conhecidas as contendas pessoais da autora em diferentes momentos de sua história pessoal, além de sua arrastada e turbulenta relação com sua filha. São pouco examinadas as implicações dessas situações em suas formulações teóricas, principalmente se levarmos em conta quão capciosa é a própria inveja e quão complicada é sua compreensão. Em suma: quem inveja quem?

Poderíamos conjecturar alguma correlação entre essas questões? As reverberações do conceito de inveja foram muito significativas para o meio psicanalítico.

 

A inveja, os contextos e o status quo: quem inveja quem?

A escuta e a compreensão da inveja veiculadas às histórias incorrem em análises que se estendem, mesmo que minimamente, para os contextos. Por outro lado, a escuta da inveja como característica encarcera o sujeito numa trama de causalidades e culpabilizações incontornáveis e praticamente irrevogáveis, reforçando o status quo. Nessa perspectiva, a causa e a consequência são dados, conhecidos e inatos, resta assumi-los e reconhecê-los, mas não questioná-los. A história e, portanto, os contextos, incluem o mundo mais íntimo e pessoal mas não se restringem a ele.

A inveja analisada sob a perspectiva histórica colocaria em cena justamente o contexto, ajudando a questionar o status quo. Em vez de respostas e confirmações de teses anteriormente formuladas sobre a origem e o destino da inveja, introduziríamos a pergunta, propriamente, quem inveja quem?

Sem essas considerações corre-se o risco de que o emprego da inveja reforce posições já estabelecidas. Quem é o seio, quem é o bebê e o que seria invejar um seio bom seriam questões que, quando formuladas, ampliariam significativamente o horizonte interpretativo. Se partirmos de posições cristalizadas, as ordens preestabelecidas e consequentemente a maneira de qualificar e valorar determinada experiência raramente sairão do senso comum. E, assim, um conceito pertinente que pode contribuir para transformações pode ser usado como um conceito vulgarizado que reitera situações já estabelecidas.

Chico Buarque compôs "As caravanas'' (2017), na qual lemos:

É um dia de real grandeza, tudo azul
Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos
Um sol de torrar os miolos
Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Não há barreira que retenha esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alá
É o bicho, é o buchicho, é a charanga

Diz que malocam seus facões e adagas
Em sungas estufadas e calções disformes
É, diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré

Com negros torsos nus deixam em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné

Sol
A culpa deve ser do sol que bate na moleira
O sol que estoura as veias
O suor que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto-mar

Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana do Arará
Não há, não há

Sol
A culpa deve ser do sol que bate na moleira
O sol que estoura as veias
O suor que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão

De caravelas no alto-mar

A música é uma ampla crítica social à sociedade atual, em particular à sociedade fluminense, que se mostra preconceituosa com a invasão dos espaços pelos negros e pobres das favelas, subúrbios e navios negreiros. O status quo difunde que riqueza, virtude e ordem são valores admirados pelo senso comum. Pobreza, negritude, comboio de ônibus ou trens do subúrbio não são elementos veiculados com sinais de admiração. Percebe-se a norma social em voga e o uso da inveja pode permitir tanto uma interpretação que reifica essa norma (os negros e pobres invejam a gente ordeira e virtuosa) ou que a transforma (é a gente ordeira e virtuosa que inveja negros e pobres).

Nessa linha não se recusaria o uso da inveja como categoria metapsicológica. Recusar-se-iam leituras normatizadoras e conformistas da ordem estabelecida. Esta ordem colocaria o populacho na posição invejosa sem permitir, por exemplo, outras hipóteses interpretativas. Uma dessas hipóteses poderia ser a de que a gente virtuosa e ordeira sente-se no direito de mandar bater e matar pela sensação de que pagam um preço muito alto por sua ordem e virtude, que são perturbadas pela presença desses negros torsos. O compositor é sagaz, porque esses negros torsos mexem com as fantasias da gente ordeira: sungas estufadas, calções disformes, picas enormes e sacos que são granadas. A inveja não seria um sentimento possível nesse contexto? Mas, partindo da gente ordeira e virtuosa e não do populacho.

Como dito acima, ao chamar a inveja para o centro das atenções, a psicanálise mais uma vez alargou seus limites para territórios pouco explorados da condição humana. Por outro lado, a afirmação de uma inveja inata promove um retrocesso na no entendimento psicanalítico, uma vez que o salto psicanalítico foi a introdução de um campo que tem a biologia como apoio, apenas como apoio. Desafiador seria repensar o uso desse conceito e considerar o que mostra a experiência cotidiana, na qual a inveja não pode ser afirmada como a priori e inata mas veiculando-se aos contextos.

 

REFERÊNCIAS

Buarque, C. (2017). Caravanas. Rio de Janeiro: Biscoito Fino.         [ Links ]

Chauí, M. (2014). A ideologia da competência. Belo Horizonte: Autêntica.         [ Links ]

Foster, J. (2017). Arkangel (4ª temporada, 2º episódio). In Black Mirror. Londres: Netflix.         [ Links ]

Freud, S. (2013). O mal-estar na civilização. Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). In ______. Obras completas (Vol. 18). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

______. (2016). Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1901-1905). In ______. Obras completas (Vol. 6). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Grosskurth, P. (1992). O mundo e a obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Hobsbawm, E. (2014). Era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. São Paulo: Companhia da Letras.         [ Links ]

Klein, M. (1991). Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Roudinesco, E. (2016). Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. São Paulo: Zahar.         [ Links ]

Trier, L. von (2009). Anticristo. Estados Unidos: Califórnia Filmes.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
GUSTAVO GIL ALARC ÃO
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Recebido 10.06.2018
Aceito 16.06.2018

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